Seguiu o pedido do ‘chefe’ dos jesuítas e foi para Jerusalém estudar o Antigo Testamento, onde se doutorou em Estudos Bíblicos na Universidade Hebraica. O padre Francisco Martins lançou agora o livro ‘A Bíblia tinha mesmo razão? A história de Israel e o Israel da História’, que nos ajuda a compreender o que está em causa no atual conflito.
No livro, ‘A Bíblia tinha mesmo razão? A história de Israel e o Israel da História’ não podia ser mais atual para o momento em que estamos a viver. Mas, já agora, antes uma curiosidade por que é que o subtítulo é ‘O Israel da história’?
É uma espécie de jogo de palavras. É verdade que em português não funciona muito bem, em inglês dá para perceber a diferença entre story e history. O primeiro seria mais as histórias, seria mais stories no sentido das histórias contadas, o que se conta, e aqui seria mais a História no sentido do que realmente aconteceu. É um jogo de palavras entre contar a história e o que realmente aconteceu.
O livro foi escrito, obviamente, antes do início deste conflito, ou nova vaga que teve início a 7 de outubro. O livro tenta desmistificar um pouco a Bíblia, isto é, na Bíblia quem faça uma leitura literal está a dar um tiro perfeitamente ao lado.
Usamos a expressão literalista para distinguir de literal. Eu faço uma leitura literal no sentido que me interessa, o que é que a Bíblia significa historicamente. O termo desmistificar é um termo um bocadinho forte, mas realmente a ideia básica do livro é olhando um bocado para as várias histórias da Bíblia, como Abraão, Isaac, Jacó, o Êxodo, o rei David, o rei Salomão, etc, olhando para essas histórias, o que é que é possível saber hoje em dia com algum grau de certeza historiográfica sobre estes personagens, e sobre as suas histórias. Esta é a grande pergunta, específica, se quisermos, no livro, no sentido que vai de episódio a episódio. Não sei se vai desmistificar, se calhar para alguns cristãos vai desmistificar. A mim o que me interessa é perceber como é que a Bíblia se relaciona com a história, sendo literatura. A literatura não se relaciona com a história da mesma forma que uma lista de itens contabilísticos. Portanto, aquilo que temos é uma relação com a história, que é provavelmente mais oblíqua. Dou um exemplo típico, Abraão, parte de Ur dos Caldeus, que é na Babilónia, para a sua terra. Este é o primeiro grande episódio da história de Abraão. Este episódio relatado na Bíblia refere-se a um Abraão no terceiro milénio antes de Cristo, que sozinho pegou na sua família, e na altura ainda tinha o pai, e veio para a terra de Canaã, ou mais provavelmente refere-se à experiência do povo no primeiro milénio de regressar do exílio? São este género de considerações de probabilidade histórica, de alguma forma, que me interessam no livro. Provavelmente essa história do Abraão refere-se menos ao terceiro milénio e mais à experiência do povo, menos a um suposto Abraão que teria feito isto, e ao concreto das pessoas.
É relativamente novo, mas é um especialista no Antigo Testamento e no Novo testamento.
Mais no Antigo.
Na sua especialização chegou à conclusão que há factos que não correspondem…
Há factos que são mais literários do que históricos. Mas os factos literários também se referem à História. Vou dar um exemplo da nossa tradição literária nacional. O Adamastor é um facto literário, mas tem uma relação com a História, com a dificuldade que foi dobrar aquele cabo. E se nós formos bons leitores d’Os Lusíadas, sabemos reconhecer que se trata de um género literário com estas características, mas que há uma relação com a História, neste acaso, com uma dificuldade concreta histórica. O que é importante no caso da Bíblia é também reconhecer que há géneros literários. Se nós lemos o mito como se fosse uma notícia de jornal, o erro é nosso, não é da Bíblia. Se nós lemos uma notícia histórica na Bíblia, como se fosse uma saga ou uma lenda, o erro é nosso, não é da Bíblia. A questão dos géneros literários, e a questão de saber como é que cada um dos géneros literários funciona e se relaciona com a história, é talvez a coisa que mais me interessa passar ao leitor.
Um dos pontos do livro coloca em causa precisamente a leitura do povo de Israel, nomeadamente a que Terra Prometida, ou Santa, é que se referem os vários testemunhos no Antigo Testamento.
Essa é uma questão muito interessante. nós usamos o termo no singular Terra Santa, e corretamente, mas um dos aspetos desafiantes na Bíblia, quando se começa a ler o conjunto da Bíblia, é que as fronteiras da Terra Santa mudam quase livro a livro e seguramente muitas daquelas fronteiras são mais imaginadas que reais. Por exemplo, as fronteiras na altura do reino de Salomão, que supostamente foram as fronteiras mais extensas da Terra Santa, durante a história do povo de Israel, que ia basicamente do Egipto, até meio da Síria, de acordo com a descrição idealizada do reino de Salomão. Provavelmente estas fronteiras nunca foram reais historicamente. Era uma idealização de grandeza. Da mesma forma que há outras descrições das fronteiras que são muito mais modestas. Mas, sobretudo, o que acho que é interessante, no fundo, é que as fronteiras da Terra Santa foram modificando-se muito ao longo da história sagrada.
Ao longo da Bíblia.
Ao longo da Bíblia, e a própria Bíblia reconhece isso. Vamos dar aqui um exemplo. A Bíblia podia dizer, da primeira página à última, do Antigo Testamento, ou a Bíblia Hebraica, que as fronteiras são estas, sempre, mas não diz. Ou vai fazendo uma descrição mais ou menos vaga, nalguns casos, muitas vezes é concreta, mas mesmo quando é concreta, essas fronteiras vão-se modificando. Creio que isso é interessante, quando se fala de Terra Santa, no imaginário da Bíblia, a Terra Santa é um lugar prometido por Deus e é o lugar que Deus promete, mas é um lugar com fronteiras que se vão modificando, e algumas são mais idealizadas do que históricas. E acho que é preciso termos consciência disto. E quem é hoje historiador e arqueólogo tem consciência disto. Até porque as novas descobertas vêm pôr em causa algumas das verdades da Bíblia. Muitos historiadores, mesmo católicos, estão de tal forma convencidos que é muito difícil reconstruir o que aconteceu antes de David e Salomão, isto é, Abraão, Isaac, Jacó, o Êxodo, a conquista da terra, etc, que nem sequer o incluem numa história de Israel, na deles. São considerados factos proto-históricos, difíceis de reconstruir, talvez haja lá alguma coisa, não sabemos. E estamos a falar de historiadores católicos, não católicos, israelitas, etc. Talvez o assunto mais debatido hoje em dia na arqueologia em Israel e no mundo é David e Salomão, os reis David e Salomão, e a importância de Jerusalém no século décimo antes de Cristo. Evidentemente, isto tem uma dimensão política muito grande. Ou seja, o que significa dar ou não dar à Idade de Ouro de David e Salomão, esta ideia de que foi ou não foi uma idade do ouro. Temos aqueles que dizem, sim, foi uma idade de ouro, foi um reino relativamente consolidado. Provavelmente não tinha aquelas fronteiras tão ideais, mas era já um reino, etc. E depois temos outros historiadores que dizem, e vou usar expressões que eles usam, ‘Não, não, o David e o Salomão eram, provavelmente, pequenos sheikes beduínos, ou na expressão de outro autor, era um pequeno chefe talibã que governava à maneira de um mafioso as aldeias ali à volta de Jerusalém, mas que nunca teve nenhum reino maior que as aldeias ali à volta de Jerusalém. Também tem há a questão da importância de David e Salomão para a memória judaica, é tão grande que esta discussão adquire um certo caráter emocional, também de alguma forma.
E também diz que o povo nunca destruiu Jericó.
Essa hipótese de uma conquista violenta da Terra Santa foi abandonada. Só muito poucos autores, e são autores de tendência mais fundamentalista, é que continuam a achar que o povo chegou constituído como povo à Terra Prometida e arrasou as cidades todas, etc. Num certo sentido, isso é uma coisa positiva, já que algumas das páginas mais negras da Bíblia são precisamente neste Livro de Josué e no livro seguinte, que é Juízes. A partir do momento em que se percebeu que isto é mais literário do que histórico, ao menos não se imputa a Deus ter cometido o extermínio dos povos que ocupavam a terra antes da chegada do povo de Israel.
A história de Israel antiga é argumento político atual, apesar das lacunas que nos revelam neste livro?
Creio que sim, até por aquelas razões que lhe dizia há bocado, como seja a questão da Terra Santa, o que significa a Terra Santa concretamente também no imaginário nacional israelita? Vou dar o exemplo que dei já, a partir de 1967, na Guerra dos Seis Dias, em que Israel conquistou a Cisjordânia, o que aconteceu, sobretudo uma certa direita religiosa, reconheceu neste tomar posse de um território bastante mais vasto e, sobretudo da Cisjordânia, uma espécie de sinal divino, de que é altura de Israel ocupar o conjunto da Terra Santa. O que eles chamam o ‘grande Israel’. Ben-Gurion, estava mais interessado, na partição da terra, em ter acesso ao mar Mediterrâneo do que ter aquela zona da Cisjordânia. Qual é o pequeno detalhe? É que os principais sítios bíblicos são na Cisjordânia, Hebron, Siquém, Anatote, as pessoas não sabem, mas é o sítio do nascimento de Jeremias, o profeta Jeremias. Tekoa, o sítio do nascimento do profeta Amós, e, portanto, muitos dos colonatos e o próprio movimento dos colonatos a partir de 1967 é inspirado pela dimensão religiosa da terra, pela sua dimensão bíblica. Por que vão passar a Páscoa a Hebron logo no ano seguinte? E começa esta dinâmica dos colonatos, porque é onde estão enterrados os patriarcas Abraão, Isaac e Jacob. Se a pessoa tem uma compreensão bíblica do espaço da terra, se sabe onde é que são biblicamente os sítios, efetivamente percebe que a Cisjordânia para um determinado género de pessoa, judeu, israelita, sobretudo muito religioso, aqueles sítios são referências bíblicas. É importante ter consciência disto. Evidentemente, no imaginário de Ben-Gurion era muito mais importante o acesso comercial ao Mediterrâneo, como é óbvio, do que ir reclamar Anatote, que é do profeta Jeremias, que é uma pequena cidade perdida no meio do nada, não muito longe de Jerusalém. Tudo isto são considerações de cariz bíblico, que acho que a leitura da história do povo de Israel, ajuda-nos um bocadinho a compreender até o conflito atual. Nós todos conhecemos a versão da história da entrada na terra do povo, do livro de Josué, a vitória de Jericó, caem as muralhas, conquistam a cidade, exterminam o povo, etc. O que é interessante perceber na Bíblia é que esta versão da relação com os povos que habitavam na terra, que aparece no livro de Josué, que é uma relação violenta, mas que é sobretudo, facto literário, mais do que facto histórico, não é a única voz na Bíblia. Há outras vozes a respeito da forma de coabitação com os habitantes que já moram na Terra. O melhor exemplo é o livro do Génesis, Abraão, Isaac e Jacó, mas sobretudo Abraão, que chega à terra, e a primeira coisa que faz não é tomar posse da terra e expulsar os habitantes, é negociar com eles a sua presença e a presença da sua família. Não quer dizer que não haja conflitos. Há conflitos e alguns daqueles episódios são conflituosos, mas na prática há ali um modelo diferente de se relacionar com a posse da terra, que não é exclusivo, que não afirma ‘se nós tomamos posse desta terra, ninguém mais pode habitar aqui, a não ser os nossos’. Isto aplica-se ao Judaísmo, mas aplica-se ao Islão e aplica-se ao Cristianismo. Nós próprios temos a nossa história, que nisso também não é brilhante. As Cruzadas seguiam o mesmo princípio, a posse da Terra só pode ser nossa, todos os que são infiéis – o que é que este termo signifique – têm de ser expulsos da terra. Nesta relação com a Terra, a Bíblia oferece vários modelos, provavelmente alguns com mais futuro e relevância para o presente do que outros.
Vou fazer-lhe uma provocação. Como definiria a Bíblia para totós?
A Bíblia para totós? A Bíblia é um livro que contém a revelação de Deus, no sentido daquilo que Deus quis transmitir à humanidade sobre si próprio e sobre nós, para a nossa salvação.
E quem escreveu?
Quem a escreveu foram autores humanos, e, por isso, a Bíblia é também literatura. Algumas pessoas têm algum receio desta palavra, porque entendem que estamos a dizer que a Bíblia não é a palavra de Deus. Vamos pôr-nos no ponto de vista de um crente. Se Deus quisesse ter-se revelado a um povo de contabilistas ou engenheiros, em vez de a um povo de escritores, provavelmente não teríamos a Bíblia, teríamos outra coisa. Mas Deus decidiu fazer isto. A primeira coisa que um totó ou não totó deve fazer é respeitar a natureza literária da Bíblia.
Mas quem fez a Bíblia?
A Bíblia é um livro escrito ao longo de vários séculos, por dezenas de autores.
Isso já ajuda os totós.
Vejamos o exemplo do livro de Isaías, que é um livro profético. O profeta Isaías existiu e provavelmente disse uma parte daqueles oráculos que estão ali postos por escrito no livro, mas uma pequena parte, porque o livro de Isaías, por exemplo, foi escrito ao longo de quatro, cinco séculos. Como é que as pessoas procediam na antiguidade? Esta é uma dificuldade que nós temos para compreender. Nós temos uma distinção muito básica na nossa cultura, que não existe na antiguidade, a distinção entre texto e comentário, entre autor e comentador/copista. Se eu lhe disser, comente estas três estrofes do livro dos Lusíadas, nunca passará pela cabeça do Vítor pegar nas estrofes e acrescentar mais uma ou acrescentar umas palavras no meio. Isto não lhe passaria pela cabeça. Até sensivelmente ao tempo de Jesus, na Antiguidade, isto era a única forma que havia de comentar. Como é que eu comento um texto que é relevante para mim? Acrescento o texto e atualizo o texto. O profeta Isaías escreveu coisas relevantes para o povo. Nós queremos continuar a ler este livro, muito bem, o que fazemos? Quando recopia o livro, acrescenta e atualiza.
Mas quando diz que levou cinco séculos, não foi o profeta Isaías que escreveu durante esse tempo todo!
[Risos] Evidentemente! Já desde o século XIX que sabemos que Isaías escreveu uma parte muito pequena, se é que escreveu alguma coisa, provavelmente ditou mais do que escreveu. Depois o livro foi crescendo. O livro tem 66 capítulos, eu não sei se temos vinte capítulos do tempo do profeta Isaías. Só deve haver um livro ou dois do Antigo Testamento que terão sido escritos por uma única pessoa. Porventura, os livros de Rute ou Jonas, o resto foi escrito ao longo de séculos por dezenas de autores. O Antigo Testamento foi escrito, a maior parte, em hebraico, e pequenas partes em aramaico.
Quem decide juntar todos esses textos e publicar em livro?
É um processo muito orgânico, a comunidade reconhece-se nestes textos e vai os guardando, copiando e transmitindo ao longo dos séculos. É preciso realçar que a maior parte dos autores dos livros são anónimos, são atribuídos a uma figura, que provavelmente esteve na origem do núcleo central do livro, mas depois os desenvolvimentos do livro, que muitas vezes são muito consideráveis, são anónimos, não sabemos quem acrescentou ou atualizou os livros e os trouxe até à forma que têm hoje.
E por que houve o Novo Testamento?
O Novo Testamento tem um conceito diferente, também de crescimento. Enquanto o Antigo Testamento foi escrito ao longo de vários séculos, o Novo Testamento foi escrito em 60/70 anos. O Antigo começou a ser escrito no século IX antes de Cristo e terminou no século II antes de Cristo. O Novo Testamento foi escrito entre o ano 50 e 120 depois de Cristo. O Novo Testamento é muito diferente, pois não teve um processo tão longo de escritura, a maior parte dos livros só tem um autor. Mas mesmo no Novo Testamento há trechos acrescentados. Vou dar o exemplo mais típico, no Evangelho de São João, um episódio que toda a gente conhece: a mulher adúltera, que nós sabemos hoje em dia, provavelmente não estava na versão original do Evangelho, foi acrescentada num segundo momento. Provavelmente pouco tempo depois de a versão original estar concluída.
Mas por que se chegou a essa conclusão?
São razões de ordem estilística, literária, mas percebe-se imediatamente que não faz parte do Evangelho.
Há maior necessidade de se tentar justificar com factos históricos os livros da Bíblia? É um sinal dos tempos e da falta de espiritualidade?
Não diria que há maior necessidade, o que acho é que há um maior interesse por isso. A questão historiográfica moderna é recente, tem dois séculos. No fundo, o que interessa a quem lê a Bíblia, lê um episódio, que tem uma roupagem literária grandiosa, é saber o que disto tem um núcleo histórico. O que podemos ou não saber. Acho que não é só curiosidade de historiadores, e é verdade que nunca tivemos tantos instrumentos para analisar os textos. Porquê? Porque as descobertas arqueológicas assim o determinam. A Terra Santa é o território mais escavado do mundo para fins arqueológicos.
Jerusalém?
Toda a Terra Santa, todos os lugares, e as descobertas arqueológicas realmente ajudam-nos muito a compreender melhor a Bíblia, como também os factos históricos muito melhor. Vou dar um exemplo muito típico: Numa linha do texto bíblico, é meia linha, aliás, diz-se que os assírios, a primeira grande superpotência militar da antiguidade. Os assírios vinham do que é hoje em dia o Iraque, o norte do Iraque. Chegam à Terra Santa e, em meia linha, descreve-se esta conquista que eles fazem num conjunto de fortes. Esta meia linha diz muito pouco, e o que nós encontrámos? Escavámos os sítios, e encontrámos a rampa do cerco, encontrámos as cabeças das setas, milhares de cabeças das setas.
Mas isso quando?
Durante o século XX.
Quer dizer que se pega na Bíblia e vai tentar-se reconstruir o que está escrito?
Às vezes, não. Às vezes podemos ler na Bíblia e o que encontramos no terreno não confirma a Bíblia.
Mas pegam na Bíblia e vão confirmar se é verdade ou não.
Hoje em dia não se procede dessa forma. A Arqueologia é uma ciência relativamente independente, faz o seu trabalho. A Bíblia entra como uma fonte ao lado de outras fontes para se saber o que realmente aconteceu. Mas o interessante é ver, às vezes, as coisas materializarem-se. Uma coisa é dizer, houve aqui X fortes conquistados, outra coisa é ver milhares de cabeças de setas ou ver a muralha partida, são coisas diferentes.
Moisés é talvez a figura mais importante do Antigo Testamento, como escreve no livro e dedica várias páginas a responder à questão: Moisés, figura histórica ou personagem fictícia?
Sei que figura de Moisés desperta muita curiosidade nas pessoas, nós sabemos muito pouco sobre Moisés, muito pouco. Não sabemos se ele é uma figura histórica. Sabemos que a sua biografia, que é uma biografia gloriosa, é inspirada na biografia lendária do rei assírio Sargão I. No século VIII a.C, o rei Sargão II, que era um rei muito importante na altura, escreveu um best seller, que era uma biografia lendária do fundador da dinastia, que se chamava Sargão I. Era uma forma típica de se exaltar a si próprio. O seu antecessor até tinha o mesmo nome, ainda por cima, e uma pessoa até se confundia. E neste best seller, o Sargão I tem uma história exatamente idêntica à do Moisés. Também ele era filho de uma sacerdotisa, também Moisés é filho de uma família sacerdotal, também ele corria risco de vida, também ele foi depositado nas águas numa cesta revestida com betume e barro, também ele foi encontrado por outra pessoa. Também ele foi educado por outra pessoa, e depois se tornou o grande líder do povo. As pessoas podem dizer, mas como é que nós sabemos que foi a história de Moisés que se inspirou nessa história? Porque o best seller é a história do rei assírio, muito provavelmente os autores que escreveram a história de Moisés, a sua infância, provavelmente, conhecia e inspiraram-se nessa história, que era conhecida em toda aquela região.
Não havia internet, não chegava assim com tanta facilidade a vários territórios.
Não havia internet, mas estes povos estavam submetidos ao império assírio, que fazia chegar a sua mensagem. Como é que fazia chegar a mensagem? Quando os reis, que traziam a sua corte, iam pagar os impostos, todos os anos, à corte do rei da Assíria, na capital assíria, antes de pagarem os impostos, que era a parte mais importante, tinham uma visita guiada à cidade. E o que era a visita guiada à cidade? Estes reis, (e vê-se isso hoje em dia no Museu Britânico, onde estão a maior parte das coisas), estes reis construíam grandes painéis de baixos-relevos a comemorar as histórias deles e as vitórias de batalhas deles. O que acontecia aos pequenos reis vassalos, como o rei de Judá, que vinham pagar os impostos à capital assíria? Antes de pagar os impostos tinham uma visita guiada, na qual um escriba assírio lhes contava a história com imagens, como hoje em dia nós contaríamos, por exemplo, numa igreja. Dizia: ‘Está a ver aqui? Isto foi a conquista de Laquis. Estes reis que resistiram, metade da população foi para o exílio, outra metade foi empalado, etc, e provavelmente também a história do Sargão, teria sido contada ao rei de Judá e à sua pequena corte, quando eles foram pagar os impostos. Eles, provavelmente, conheceram esta história.
O rei Judá?
Sim, o rei Judá, que habitava em Jerusalém. Mas o interessante é que eles utilizaram esta história e isto é uma forma de resistência também. Porque pegar nas histórias dos assírios e torná-las histórias dos nossos heróis é uma forma de resistência ao império. Agora, do ponto de vista histórico, isto reclama-nos uma enorme prudência quando olhamos para a figura de Moisés, que claramente foi construída como um herói à imagem deste rei assírio, Sargão I, descrito numa biografia lendária do tempo de Sargão II (século VIII a.C.). O que é interessante no caso de Moisés? A única coisa, e isto é um enigma para os historiadores, o nome de Moisés, muito provavelmente, é do segundo milénio, e este é o único dado que é interessante, enquanto que a roupagem literária parece ser no primeiro milénio, século oitavo, antes de Cristo, etc. O nome dele, a forma como é escrito em hebraico, parece remontar ao segundo milénio, e isto é assim um dado curioso. É o Moisés que existiu no segundo milénio e o nome é histórico e esta figura é histórica do segundo milénio? Mas depois as histórias que se construíram à volta dele são menos históricas? É muito difícil dizer. Se calhar a conclusão da pergunta, é que seguramente a maior parte da história do Moisés é roupagem literária, muito posterior a um Moisés que, eventualmente, teria existido.
Como se explica então Êxodo em referências extra bíblicas?
Não existem referência extra bíblicas, esse é que é o problema, a um Êxodo no Egipto. Se lermos o relato do Êxodo há aqui várias coisas complexas. Primeira questão. Se nós lermos os números do Êxodo, o povo seria em número de 600.000 pessoas, sem contar crianças. Estamos a falar de um milhão de pessoas, isto na antiguidade é um número muito considerável. Depois, o povo supostamente saído do Egipto, foi perseguido pelo faraó e o exército inteiro do faraó, e o próprio faraó, morreu dentro do mar, de acordo com o relato. Estas afirmações grandiosas, isto cola a que género literário? Epopeia, o Êxodo é um género literário epopeia, seria muito estranho se não houvesse nenhum traço nas fontes egípcias, que nós temos imensas fontes deste período. E a resposta é que não há nenhum traço disto. Nem da fuga do Egipto de um grupo com estes números, nem na morte dos primogénitos do Faraó, etc. O género literário é epopeia. É natural que numa epopeia surjam este tipo de exageros, chamemos-lhe assim, que são factos literários. é preciso sabermos relacionarmo-nos com estes textos sem confundir factos literários com factos históricos. Estamos com isto a negar a historicidade da libertação do povo, tal como experiência coletiva experimentada pelo povo? Não. Agora é preciso ter uma aproximação muito mais inteligente ao texto. Provavelmente o texto fala duma libertação experimentada pelo povo, como tendo sido atualizada por Deus, mas se calhar não foi feita na dimensão que nos é dita de 600.000 pessoas e provavelmente não incluiu todos aqueles prodígios que nós gostaríamos de imaginar como o Faraó que morre dentro do mar, o exército todo morre dentro do mar, e as dez pragas sucedem todas em poucos dias, etc.
Qual a relevância de Jerusalém para as três religiões monoteístas, é maior em termos espirituais ou históricos?
Acho que as duas coisas. Jerusalém é uma cidade muito especial, e ao mesmo tempo uma cidade muito complexa por ser muito especial. Ou seja, para o povo judeu, evidentemente, é o lugar central do ponto de vista da história de Israel, é a capital histórica do reino de Israel, do povo de Israel, etc, é a capital de Judá, é onde o povo construiu o templo que depois foi destruído e reconstruído, é onde, depois, já na época de Jesus, um bocadinho antes, Herodes começa a reconstruir o grande templo, a esplanada do templo, etc, que depois do ano 70 é destruída. É um lugar essencial para o judaísmo, como toda a Terra Santa. É preciso lembrar que o imperador Adriano, em 135 d.C., quando quis castigar os judeus, a seguir à terceira revolta judaica, o que é que fez? Proibiu-os de entrar na cidade. Ou seja, o próprio imperador romano, em 135, percebeu que para este povo concreto, Jerusalém não era só mais uma cidade. E a única forma de os castigar, além de ter mudado o nome à cidade, foi dizer: ‘Vocês não voltam a entrar na cidade’. É para se perceber aqui a importância para o povo de Israel, do passado e do presente, de Jerusalém. Para os cristãos, evidentemente, é o lugar da morte de Jesus, da Paixão de Jesus, da ressurreição, o tumulo vazio, e, por isso, torna-se um lugar também central para o cristianismo, desde sempre. Jerusalém também adquire para o cristianismo, talvez até mais do que para o judaísmo, uma dimensão mística, esta ideia da nova Jerusalém. É esta ideia de que, de uma certa forma, é uma espiritualização da cidade de Jerusalém, sem negar o valor à própria cidade como ela existe hoje em dia como um lugar de peregrinação. De alguma forma, o cristianismo tem uma relação, diríamos nós, não sei se é mais mística que o judaísmo, o judaísmo também tem correntes mais místicas, tem uma relação muito mística com Jerusalém, mas a relação do cristianismo com a Terra de Jerusalém torna-se mais mística, a certa altura. Estou a pensar no Livro do Apocalipse, na Nova Jerusalém, descida do céu, etc, iluminada pelo cordeiro, todas estas imagens fortíssimas. Também para o Islão é o terceiro lugar santo do Islão, onde o profeta Maomé teria sido transportado a Jerusalém. Portanto, é um lugar, também hoje em dia, onde a famosa mesquita de Al-Aqsa, que é o terceiro lugar santo, e que não é a Cúpula do rochedo, é a mesquita ao lado, na esplanada das Mesquitas, que é o lugar mais santo, o terceiro lugar mais santo do Islão. Na Terra Santa, o lugar santo por excelência, por outro lado, toda a Terra Santa, de alguma forma, também pertence à “Terra Santa” do Islão (”Dar al-Islam”), ou seja, o conjunto da Terra Santa, não é só Jerusalém.
Tudo isso faz parte da Terra Santa?
Faz parte da terra que o Islão considera ser, no fundo, o núcleo do território do Islão.
Sim, mas não tem nada a ver com o facto de a Bíblia falar na Terra Santa.
Tem a ver no sentido de que o Islão, e o próprio Corão, basicamente, reflete os episódios bíblicos, e reflete sobre os episódios bíblicos. O Corão tem os episódios bíblicos retransmitidos, revelados a Maomé de acordo com a tradição islâmica, mas, no fim, são refratados da tradição bíblica.
Mas quando se fala nas fronteiras da Terra Santa para Israel não são propriamente as do islão.
Não, aqui estou a falar da interpretação que o Islão faz desses territórios. Para se perceber bem, as pessoas às vezes dizem: a Terra Santa é importante para o Islão porque tem lá o terceiro lugar santo, que é Jerusalém. E isto é correto, mas é incompleto. O próprio conjunto do território a que nós chamamos Terra Santa, faz parte do território que o Islão considera que deve estar no núcleo territorial do Islão.
E o que é que os cristãos consideram a Terra Santa?
Também é um bocado difícil definir qual é o espaço da Terra Santa. Essa é sempre a questão.
E para os judeus?
Se falar em fronteiras, vai ser muito difícil ter uma resposta clara. Provavelmente vai ter tantas respostas como as que estão na Bíblia.
Pode ir de onde a onde?
Pode ir do Egito até ao rio Eufrates, na zona norte da da Síria, porque a discrição idealizada é do rio do Egípcio até ao rio Eufrates, que é quase na fronteira com o Iraque. A descrição idealizada no Tempo de Salomão é do que é o rio do Egito, até ao grande rio que é o rio Eufrates, que é no meio da Síria.
Já percebi que a definição de Terra Santa é muito lata.
Temos que ter consciência que é uma definição que é histórica e idealizada. A Terra Santa é também um conceito, no sentido que é idealizado
Mas é comum dizer-se que a Terra Santa foi prometida a Israel.
Para já, as fronteiras da antiguidade não eram a régua e esquadro como nós estamos habituados e como se fizeram nalgumas zonas. Nós, portugueses, não estamos habituados a esta ideia de que as fronteiras andam para a frente e para trás. Porque as nossas fronteiras basicamente estão paradas há alguns séculos. Mas isto é o normal, e ali muito mais normal era na antiguidade. É preciso ter consciência que o povo judeu teve, provavelmente, muito pouco tempo de independência política com posse da terra.
E terá sido em que século?
O povo terá tido um certo grau de independência entre o século nono e o século sexto antes de Cristo, no século sexto, perde a terra, torna-se uma província, toda aquela terra, uma província do império babilónico, depois torna-se uma província do Império persa, depois torna-se numa província dos impérios helenísticos, ptolemaico e selêucida, e depois volta a ter um período de independência entre o ano 160 e o ano 60 A. C., e acabou. Isto foi a última vez que houve independência política na Terra. Depois só em 1948, se considerarmos, e eu tenho sempre imenso cuidado, relacionar a antiguidade com o presente. Isto porque as nações-Estado que nós conhecemos no presente, como conceito e como possibilidade nasce no século XVIII. Ou seja, há continuidades e há descontinuidades. Os portugueses do Viriato são os portugueses de hoje? Bom, com muita prudência, não é verdade? Essa prudência é precisa para todos esses casos. Isto para se perceber também que Israel e Judá eram pequenos reinos submetidos às variações do humor dos grandes impérios, que se foram sucedendo e quando chegavam, chegavam com violência e não vinham para negociar.
O Deus castigador da Bíblia é resgatado pelo Novo Testamento como Deus misericordioso. O Antigo Testamento está incompleto ou é mal interpretado?
Não concordo em absoluto com a primeira afirmação e penso que é o género de oposição que não facilita uma leitura correta da Bíblia. Esse género de oposição é errado. Jesus também teve os seus momentos de cólera divina, vamos dizer assim, quando chegou ao templo e expulsou os vendilhões do templo, podemos falar daquele gesto como gesto misericordioso, mas realmente o que aconteceu ali foi um gesto de cólera divina, porque estas pessoas estavam a usar o templo de forma incorreta. Ou seja, esse género de contraposição ao Antigo Testamento com o Novo, tal como o Antigo Testamento está cheio de sinais de misericórdia de Deus. Esta oposição entre o Deus do Antigo Testamento, que é uma espécie de pai tirano e o Deus do Novo Testamento seria uma espécie de Deus delicodoce é falsa, é errada e é perigosa de alguma forma.
Qual a razão para a maioria das pessoas terem essa ideia?
Porque acho que a maior parte dos cristãos tem um conhecimento muito básico e muito insuficiente do texto bíblico, sobretudo do Antigo Testamento. As pessoas conhecem o Novo testamento, conhecem a história de Jesus, mas nós lemos muito pouco do Antigo Testamento.
Quem não é professor de literatura bíblica, nem se doutorou em estudos bíblicos na Universidade Hebraica de Jerusalém, não tem, obviamente, esse conhecimento, e a ideia que se passa, mesmo a própria Igreja, é essa.
Não sei se a Igreja passa essa ideia, eu tento não a passar. É difícil eu falar em nome da Igreja, é sempre mais fácil compreender a realidade se conseguirmos pintá-la a preto e branco, dizendo estes são os bons e aqueles são os maus. Mas eu acho que aqui é preciso termos uma certa atenção aos pormenores, no sentido em que o Antigo Testamento, basicamente, é uma história de misericórdia e é uma história de justiça, como é o Novo Testamento. Evidentemente que Jesus radicalizou algumas posições de misericórdia, estou de acordo com isso, nalgumas coisas Jesus foi mais longe do que o Antigo Testamento. Quando os discípulos lhe perguntam, ‘devemos perdoar 7 vezes ‘, e Jesus diz, ‘Não, é preciso perdoar 70 vezes sete. Isto é radicalizar a misericórdia e estou de acordo com essa posição, mas entre isso e dizer que no Antigo Testamento não há misericórdia, o que há é um deus um bocadinho irado, de vez em quando a ira é contra o povo, outras vezes é contra os outros povos, para além de ser uma caricatura do texto e do Deus do Antigo Testamento acho que não corresponde à verdade. Mas para responder de vez à pergunta, acho que o Antigo Testamento está mal interpretado.
Para estudar a Bíblia calculo que leia em hebraico.
Um professor de Bíblia tem que saber hebraico, e também falo hebraico moderno, mas isso é porque vivi em Israel. O hebraico deixou de ser falado por volta do segundo século depois de Cristo, que no século XIX foi resgatado. Foi ressuscitado.
É um bocado como o latim?
Até ao século II foi falado normalmente, e no tempo de Jesus, alguns, não todos, conseguiriam falar hebraico. O hebraico, que é a língua da Bíblia, a certa altura deixou de ser falado, e era só lido na sinagoga. E as pessoas já não entendiam o hebraico, e, portanto, o que se fazia? Lia-se o texto em hebraico e depois fazia-se uma espécie de homília-comentário-tradução, na língua que as pessoas entendessem, fosse o aramaico, o grego, o que fosse. A língua esteve morta, como língua falada, até ao século XIX, altura e que foi ressuscitada por um judeu polaco, que depois emigrou para a Terra Santa, onde a pouco e pouco a língua foi adotada por outros até se tornar a língua oficial do Estado de Israel, eu falo esta língua que é um hebraico moderno.
Como é que se lembrou de entrar numa coisa dessas?
O provincial, isto é, o responsável máximo dos jesuítas em Portugal, pediu-me que fizesse o doutoramento sobre o Antigo Testamento ou a Bíblia Hebraica, eu vou usando sempre estas duas expressões porque o Antigo Testamento é para nós cristãos, mas evidentemente para os judeus não é o Antigo Testamento, é o único Testamento, e eles chamam-lhe Bíblia Hebraica. Eu estudei numa universidade onde não havia o Novo Testamento. Só havia um testamento, que era a Bíblia Hebraica. E eu propus-me a estudar o Antigo Testamento com aqueles para quem o Antigo Testamento é único testamento, o único texto sagrado, que são os judeus, fiz uma formação por outros lados, em França, Espanha, Alemanha, e a certa altura lancei-me num doutoramento na Universidade Hebraica de Jerusalém, que é o equivalente ao que seria a clássica de Lisboa. Seria como ir estudar Os Lusíadas na Clássica de Lisboa, se eu fosse sueco, ia estudar Os Lusíadas para Lisboa. Vim estudar a Bíblia Hebraica, que para eles é literatura, e ao mesmo tempo um livro sagrado, mas que é literatura. A Bíblia Hebraica é na Faculdade de Letras um departamento ao lado da literatura moderna hebraica, etc, é um departamento de estudo literário do texto bíblico do Antigo Testamento.
O Antigo Testamento é em hebraico porque foi escrito até dois séculos Antes Cristo?
Daí ser hebraico e um bocadinho aramaico, que é uma língua vizinha do hebraico. É como se fosse o português e o espanhol.
Mas que língua é que se fala hoje em Israel, não é o hebraico antigo?
É uma língua ressuscitada no século XIX, que é inspirada nessa língua antiga, é parecida, mas seria como o português de Gil Vicente para nós.
Digamos que grande ‘carola’ [Risos] Já lá vamos à vivência, gostava que explicasse como é o Natal em Jerusalém?
É uma coisa curiosa e vou começar por dizer uma coisa que, se calhar, as pessoas vão ficar um pouco escandalizadas, mas vivi cinco anos em Jerusalém, e a coisa que mais me fez falta em Jerusalém, estou a exagerar bocadinho, espero que se perceba a caricatura, foram as luzes de Natal. Eu sei que a maior parte dos padres se dedica, como é que eu hei de dizer, se irrita um bocadinho com todo este folclore à volta do Natal, as luzes, a iluminação e os presentes, mas, confesso, que nos primeiros dois ou três anos a coisa que mais me faltou foi precisamente isso. Em Jerusalém há muito poucos sinais do que é Natal, porque evidentemente a vida não para, não há propriamente Natal em Jerusalém, lembro-me de ter aulas no dia de Natal.
Mas Jerusalém não tem uma parte cristã?
Tem, mas é muito pequena. E é preciso distinguir duas coisas. A Jerusalém que é cidade que fica dentro dos muros medievais, que é a cidade velha. Dentro da Cidade Velha, há dois bairros que são cristãos, há o bairro muçulmano, há o bairro judeu e depois há o bairro Arménio, que é um bairro cristão.
Eles não são ortodoxos?
Não, eles são uma Igreja própria, antiga. São uma Igreja Oriental, não são bizantinos e não são católicos. E depois há um bairro cristão, em que também a maioria não é católica.
Os franciscanos não estão aí?
Também têm aí as suas coisas e é neste pequeno bairro cristão da cidade velha que há uma árvore de Natal gigantesca numa das escolas dos irmãos de La Salle, que também estão cá em Portugal, nomeadamente em Barcelos. Mas isto está dentro das muralhas, isto é dentro da cidade velha que tem um quilómetro por um quilómetro, mas o resto da cidade é habitada sobretudo por muçulmanos, a parte oriental, e judeus, a parte ocidental. E estamos a falar da maior cidade da Terra Santa, que já tem quase um milhão de habitantes. Ou seja, é num pequeno espaço, o bairro cristão numa cidade com quase um milhão de habitantes, onde há pequenos sinais de Natal.
Esse pequeno espaço é administrado por franciscanos?
Não, não. São várias coisas diferentes. É um bairro normal, com casas de pessoas, os irmãos franciscanos têm as suas coisas, os irmãos La Salle têm as suas, e por aí fora – a maior parte do espaço cristão em Jerusalém é do Patriarcado grego, que tem mais espaço dentro das igrejas, e também na própria Terra Santa.
Numa há nenhuma igreja cristã?
Há, no bairro cristão e há também várias por outros lados na cidade onde se festeja o Natal. Mas na rua não há sinais de Natal.
Há católicos gregos ortodoxos, há cristãos de língua hebraica, judeus convertidos ao cristianismo, poucos, há filipinos que são cristãos…
Sim, muitos deles entram nessas comunidades hebraicas porque os filhos já nasceram muitos deles em Israel, e vão à escola. E isso é uma distinção que Israel faz importante: deixa mesmo cidadãos não israelitas seguir o sistema de ensino. É uma situação um bocadinho estranha para nós, provavelmente…
Como assim?
Basicamente, o sistema de ensino é mais inclusivo que o sistema administrativo, nesse sentido. Ou seja, eles não são reconhecidos, não têm passaporte israelita, não são israelitas, não votam nas eleições, mas têm direito a fazer a escola numa escola pública israelita. Estes miúdos filipinos, na maior deles, são filhos de pessoas que trabalham em casa de famílias israelitas. Em Israel há muitos filipinos que foram para lá para cuidar de pessoas idosas. É uma população muito numerosa e são, regra geral, católicos. Mas vamos dizer aqui uma coisa importante. Na Terra Santa, se incluirmos a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, estamos a falar no total de uma população de 14 milhões. Cristãos, naqueles espaços todos, Cisjordânia, Estado de Israel, Faixa de Gaza, etc, no máximo chegam aos 300 mil, e estamos a falar de cristãos, não é católicos. Desses, uma percentagem muito pequena, são católicos. Esses são os números, que é para nós não termos aqui ilusões.
Então qual a razão para o Vaticano estar tão empenhado em não perder os terrenos que têm em Jerusalém?
Os terrenos é uma situação diferente.
Além do Vaticano não querer perder as isenções fiscais.
Há aqui vários equilíbrios importantes. Há um conjunto de grupos judaicos um bocadinho radicalizados, para quem um dos seus princípios básicos é basicamente tentar adquirir à força propriedade em Jerusalém, sobretudo em Jerusalém Oriental e no interior da Cidade Velha. Esta é ideia muito básica que é ‘vamos adquirir a propriedade para tomar posse da cidade’. A lei mais ou menos protege historicamente os bairros, isto é, a lei do próprio Estado de Israel, mais ou menos, protege aquilo que no fundo são implantações históricas, sei lá, os arménios no seu bairro arménio, os cristãos no seu bairro cristão, etc. O que acontece é que muitos destes grupos judeus têm, de forma escondida, usando fundos de investimento, apresentam-se como compradores a cristãos e a muçulmanos e basicamente adquirem terrenos ou espaços históricos dentro da cidade, de forma encapotada, digamos assim, e depois, uma vez que o fundo de investimento comprou o terreno, é que se percebe que foi adquirido por um grupo judeu que estava interessado em adquirir aquele terreno. Este género de aquisições e este género de práticas, à luz do que é resolução da ONU não está correto, isto também de alguma forma são colonatos, ok, porque isto são bairros históricos que supostamente pertencerão a outras ou a uma gestão internacional que respeitará as implantações históricas. Isto é, judeus adquirem casas ao implementarem-se pela força nas zonas orientais, e isso são considerados também colonatos. E o que acontece? As confissões cristãs também têm sido vítimas disto, por exemplo, às vezes vítimas, às vezes cúmplices. O anterior patriarca grego té foi afastado e viveu em prisão domiciliária durante vários anos em Jerusalém, porquê? Porque vendeu, provavelmente mais consciente de que inconsciente no caso dele, muita propriedade a estes grupos de judeus. E isto a comunidade cristã grega ortodoxa, cujos membros na maior parte são palestinianos, não lhe perdoou, ao patriarca, de origem grega. Ele viveu literalmente em prisão domiciliária e quando morreu nem foi enterrado em Terra Santa. A Igreja não deixou e foi enterrado na Grécia. Todas estas propriedades, além de terem o estatuto histórico, e supostamente deverem ser protegidas, e preservadas dentro do mesmo grupo histórico, as propriedades estão isentas de pagar impostos.
Porquê?
É uma questão complexa, porque o Estado de Israel, de acordo com a resolução de 1947 não tem direito a ter a posse administrativa total da cidade de Jerusalém. Porque a cidade de Jerusalém, de acordo com a resolução da ONU de 1947, seria um corpo separado, gerido internacionalmente.
Mas nunca foi.
Sim, nunca foi, mas sobretudo este corpo internacional, os territórios dentro deste espaço, não pagariam impostos a um estado particular. Há aqui uma solução um bocado complexa, em que as instituições israelitas, como a câmara municipal de Jerusalém em 2018, ameaçam, de vez em quando, aplicar uma lei que vai forçar as instituições religiosas a pagarem impostos. Estamos a falar de instituições religiosas de Israel, mas o mesmo aconteceria aqui em Portugal, que tem pouco dinheiro. Imagine que a Igreja seria obrigada a pagar IMI. Estamos a falar, em alguns casos, de imóveis gigantescos, alguns deles colocados no centro das cidades em lugares privilegiados. A Igreja não teria capacidade para pagar. Em Israel, a situação é a mesma e as Igrejas todas têm grande receio disto.
Mas qual é a importância disso para o Vaticano?
Para o Vaticano a importância é de a igreja se manter presente na Terra Santa, em Jerusalém. Não é a questão de pagar ou não pagar, evidentemente que o Vaticano sabe que isto vai estrangular as igrejas e vai forçar as ordens religiosas a irem-se embora. Isto é evidente. Uma congregação de quatro freiras, que têm um convento que tem um espaço significativo em Jerusalém, no dia em que lá cair a conta do IMI, fecham as portas.
Então mas há ou não ordens religiosas em Jerusalém?
Há, claro que sim, uns dentro da cidade velha, outros fora, o espaço dentro das muralhas é limitado.
Mas estava a dizer que o Papa não quer perder…
Para a Igreja há aqui uma importância, e não é só da Terra Santa, toda aquela região do Médio Oriente para a Igreja é importante, até por ser uma região do nascimento histórico da fé, não só do cristianismo na Terra Santa, mas do resto ali à volta, como dos arménios, por exemplo, que é muito antiga, ainda que não seja católica, e o Vaticano também olha para as Igreja Orientais com preocupação, e sobretudo para este êxodo de cristãos de toda aquela zona. Olha para isso com preocupação. E, claro, o Vaticano também está preocupado com a sua igreja local ali presente, com os cristãos e com os católicos, em particular, ali presentes, e que é uma Igreja pequena. Pergunta-me, qual a razão para o Vaticano estar tão preocupado com os cristãos na Terra Santa que são tão poucos? A resposta que eu dou ao Vítor, é por que razão o Papa foi visitar a Mongólia, onde há 1.500 católicos? Eu acho que este Papa está preocupado com os lugares de periferia, pequena presença de igreja, não vai só a Paris, Lisboa, Madrid, Washington, etc.
Vamos lá. A maior parte dos cristãos, naquela zona, são de origem árabe. Também não há dúvida nenhuma que a assimilação em Israel é uma coisa que não existe, isto é, não há cruzamento de judeus com não judeus em Israel.
Diríamos que existe, mas que não é promovido.
Um teólogo uma vez disse-me que uma mulher judia casar-se com um não judeu é considerado uma traição à memória das vítimas do Holocausto. Isto é, em última instância.
Essa era um bocado a mentalidade, e ainda é a mentalidade em alguns meios, mas não é em todos. no Estado de Israel, e não sei se sabe isto, oficialmente é muito difícil casar fora do seu grupo religioso. Em Israel não há casamento civil. Se for judeu, vai ter de casar sempre diante de um rabino. Se for cristão, diante de um padre, se for muçulmano diante de imã. Isto é de tal ordem que se a pessoa não quiser casar diante de um rabino, apanha um avião vai casar a Chipre, volta e o estado de Israel reconhece o casamento. Reconhece o casamento civil, embora em Israel esse casamento não seja possível. Este estado de coisas não promove casamentos entre pessoas de diferentes confissões ou de diferentes grupos humanos.
Diz-se que a nomeação do novo cardeal de Jerusalém, que aconteceu antes dos acontecimentos de 7 de outubro, teve a intenção de fortalecer as relações entre o Vaticano e Israel.
Houve aqui um pormenor importante que foi porque é que Pizzaballa acabou administrador apostólico e agora é patriarca, já que tinha havido um pequeno problema com o patriarca anterior que teve a ver com uma questão de gestão da diocese que criou um problema financeiro gravíssimo, e o Vaticano, quando o anterior patriarca deixou o cargo, e isto teve a ver com a criação de uma universidade, que depois deu um problema financeiro grave, etc, para a diocese, o Vaticano nomeou o Pizzaballa, que na altura tinha deixado de ser o guardião dos franciscanos, no fundo o provincial dos franciscanos naquela zona, nomeou-o administrador apostólico, ou seja, uma figura de transição para fazer a gestão do problema e tentar resolvê-lo. Eu acho que Pizzaballa é uma figura tão brilhante na gestão pastoral, e conseguiu resolver o problema tão rapidamente, que acho que o Papa lhe pediu para se tornar o bispo da diocese, patriarca naquele caso. E parece-me que é um homem de grande confiança do Papa, para a gestão daquilo que é uma situação difícil, também para a presença da Igreja na Terra Santa. Por um lado, a Igreja católica na gestão com as outras igrejas, que é uma gestão, às vezes, complexa, difícil, desde os lugares santos à gestão de tudo, como seja fazer uma declaração conjunta com as outras confissões religiosas, parece-nos uma coisa evidente em Portugal, mas não é assim tão evidente na Terra Santa. Há vários interesses, são muitas igrejas que têm um cariz mais nacional. Há considerações aqui a ter nisto tudo, é uma gestão muito difícil, além evidentemente da situação política e social na Terra Santa, etc.
Mudando de assunto, diz-se que não se consegue respirar em Jerusalém.
É uma cidade tensa, acho que não podemos negar isso.
Não fazer a diferença entre povo judeu e o Estado de Israel pode trazer problemas à Igreja? Quem critica Israel é considerado antissemita, por exemplo.
Creio que há aqui várias questões. Começando pela questão da Igreja Católica e do povo judeu, que é aqui a primeira grande questão. Aqui há uma história muito grande, muito complicada e pouco edificante, sobretudo do lado da Igreja. A Igreja não promoveu o antissemitismo, pelo menos como instituição, se calhar alguns membros individuais fizeram-no, provavelmente, sim, em circunstâncias concretas, mas a Igreja realmente promoveu o que nós chamaríamos o anti-judaísmo, que não é antissemitismo, até ao Concílio Vaticano II, nos anos 60 do século passado. A sua posição promovia um certo anti judaísmo e evidentemente o anti judaísmo nalguns momentos, ajudou à conversa antissemita. Isso parece-me que é um bocadinho inegável. A Igreja tem, graças a Deus, já há quase 60, 65 anos, uma visão diferente sobre a relação com o povo judeu, uma visão muito mais respeitosa, muito mais de irmãos do que propriamente de inimigos, nesse sentido. E também se posiciona em todas essas questões de uma forma diferente. Eu acho que sempre, mas já durante a Segunda Guerra Mundial, com Pio XII, mas sobretudo a seguir ao Concílio Vaticano II, qualquer expressão antissemita e, sobretudo, qualquer posição que diga que não reconheça também Israel o seu direito a existir como Estado à luz da Resolução de 1947, não é aceitável para quem é católico. A posição da Igreja sobre a Terra Santa e sobre Israel é a posição da ONU de 1947.
Mas a Igreja tendencialmente não fala em ocupação dos territórios ocupados. Porquê?
As palavras são muito complicadas, sobretudo se depois tem de ter uma relação diplomática com os Estados envolvidos. O Vaticano reconheceu o Estado palestiniano em respeito da resolução de 1947, dos dois Estados, e reconheceu oficialmente como ainda não fizeram basicamente todos os Estados da União Europeia. Reconheceu o Estado palestiniano, mas, ao mesmo tempo, tem imenso cuidado a escolher as palavras que usa. Vou dar-lhe o exemplo. O Vítor usou a palavra ocupação para descrever o que acontece. É uma palavra pesada e cada um de nós terá uma opinião pessoal sobre se é ou não é relevante neste caso. Outras pessoas usam a palavra apartheid. Agora ouviu-se a palavra genocídio. Eu que creio que algumas palavras não são muito úteis, nem ajudam à paz, nem ajudam a descrever a situação, nem ajudam a resolver o conflito. E acho que o Vaticano, como instituição e a Igreja como instituição, tem uma responsabilidade particular nas palavras que usa.
Quando nós dizemos que em Hebron há 1500 soldados que protegem 800 colonos que vivem no centro da cidade palestiniana, nós estamos a falar do quê? Não é da ocupação?
Isto aqui já é a questão da opinião pessoal de cada um. Creio que há situações, sobretudo na Cisjordânia, que um Estado democrático que quer respeitar o direito internacional, devia olhar para isto com outros olhos e, sobretudo, provavelmente não devia tolerar algumas das coisas que tolera nestes territórios. Eu acho que a questão dos colonatos é uma inegável violação do direito internacional e que Israel, de alguma forma o atual governo de Israel, promove e outros governos anteriores toleraram este género de iniciativas, apoiadas, muitas vezes por instituições com muito dinheiro, não é aceitável. Se a palavra certa a usar é ocupação, alguns dirão que sim. Espero que a Igreja como instituição esteja mais interessada em chamar a atenção para o que são as regras do direito internacional do que dizer isto é aquilo ou isto é o outro. A mim interessam-me menos, como membro da Igreja, o slogan e que a Igreja tenha a capacidade no presente e no futuro de poder dizer ao estado de Israel como poder dizer ao estado Palestiniano aquilo que fazem e que são violações do direito internacional. Isso a mim interessa-me muito mais. Se usar uma determinada palavra bloqueia o diálogo e a capacidade que nós poderemos ter de dizer isto é uma violação e aquilo é uma violação, eu prefiro que não se use essa palavra.
Qual acha que será a solução para o conflito? Isto não será só uma questão política? Também há questão religiosa, e com tantas leituras do que é que é o Estado, do que é que é a Terra Santa onde é que vamos chegar? Qual é a fronteira que nós vamos adotar? É a do rei Salomão. É a de Canãa, qual amos adotar?
Eu creio que, mais do que a questão das fronteiras, aqui acho que as religiões podem aportar alguma coisa neste conflito. É olhar para as suas próprias tradições e dizer: ‘Há uma forma de viver nesta terra, que é importante para todos, na qual a coabitação é possível e é pacífica’.
Só um padre é que consegue ver isso! Acha que isso alguma vez será possível, com tanto ódio que há de parte a parte?
Nós às vezes não acreditamos, mas olhe para a Irlanda do Norte. Quem é que diria que a questão da Irlanda do Norte se iria resolver numa década? Quem é que podia imaginar? Uns ódios religiosos seculares, que tinham provocado martírios, tinham provocado mortes de lado a lado durante tanto tempo, uma separação identitária tão forte, e depois os acordos de Sexta-Feira Santa que, graças a Deus ainda se mantêm, e que em poucos anos basicamente encontrou-se uma solução pacífica, onde toda a gente consegue conviver.
Então acha que a Igreja poderá ter um papel importante na resolução do conflito?
Eu acho que tem de ter, em Jerusalém, Terra Santa. Não dá para colocar a religião entre parêntesis só uma pessoa ignorante da realidade no terreno é que pode pensar assim.
Mas aí defendem obviamente o que está acordado da gestão por parte da ONU de Jerusalém? Agora a ONU não pode ir para Gaza, Cisjordânia, etc.
Eu, se alguém tiver uma solução melhor do que a solução dos dois Estados de 1947, para apresentar, é chegar-se à frente. Eu até hoje do que vi, não é uma solução ideal, mas é a única onde eu vejo que haverá alguma forma de coexistência pacífica. As outras soluções de Estado único ou de dois Estados redesenhados de outra forma, eu não consigo imaginar outra solução. Estou disponível, mas tendo em conta o panorama atual e tendo em conta, sobretudo, também como o conflito evoluiu nos últimos 75 anos, continuo a achar que a única solução realista, mesmo com os conflitos mais recentes, é a da ONU de 1947.
E acha então que a Igreja Católica pode ter um papel importante?
A Igreja Católica também aprendeu com os seus erros. A Igreja Católica também, a certa altura, achou, e as Cruzadas são disso testemunho, que a posse da Terra Santa implicava que todos os outros, que eram infiéis, doutras religiões, não tinham lugar na Terra Santa, e graças a Deus, caminhámos daí. Percebemos que esta forma de se relacionar com a Terra Santa é um erro, e, portanto, se calhar a Igreja Católica, porque já cometeu o erro e já se redimiu de alguma forma do seu erro, talvez possa ajudar os outros, sobretudo, judeus e muçulmanos, olhar para a questão de como é que se pode possuir uma terra sem exclusividade, habitar numa terra sem excluir outros e dentro duma tradição religiosa que respeite isso. Aqui a grande dificuldade, sobretudo para quem é religioso, e acho que isso que a religião pode ajudar, imagine que eu estou convencido que a vontade de Deus é que eu expulse todos os infiéis. É difícil que eu aceite uma solução que não passe por expulsar todos os infiéis. Que a Igreja Católica possa dizer que, se calhar, a vontade de Deus não passa por aí, mas passa por uma coisa um bocadinho diferente. Porque nós também achávamos a determinada altura que também passava por aí, mas percebemos que não, eu acho que pode ser um testemunho importante. É um testemunho de uma minoria, evidentemente, hoje em dia na Terra Santa. Mas acho que pode ser um testemunho interessante, da mesma forma que uma posição moderada no conflito da Igreja Católica também ajuda muito.
Acha que as definições das fronteiras da Terra santa no Antigo testamento poderão agravar o conflito, já que os israelitas podem agarrar-se a isso?
As decisões políticas e as decisões históricas do presente podem ser informadas pelo passado e também pela literatura do passado. Mas têm que ser também decisões políticas, decisões viáveis, e acho que as próprias comunidades nacionais têm que se imaginar e reimaginar o futuro de forma criativa. Em 1974/5 tivemos que nos reimaginar como país de forma criativa. Não era Portugal e as colónias. Era Portugal que era este espaço aqui, Madeira e Açores e nós comunidade nacional reimaginámo-nos criativamente. Se na altura lhe perguntassem se Portugal era só isso, o que diria? Mas o que diria em 1950 sobre quais eram as fronteiras de Portugal? Qual era resposta que dava? Do Minho a Timor. Nós também temos as nossas discrições imaginadas de Portugal, da nossa “Terra Santa”, não é verdade? E soubemos reimaginar criativamente em 1974/75.
E quer dizer que os judeus vão ter vão ter que se adaptar?
Os judeus, os muçulmanos e os cristãos, todos os que ali habitam. Vão todos que se ter que reimaginar criativamente.
Alguém disse: Uma pessoa vai uma semana a Israel e escreve um livro, vai um mês e escreve um artigo, passa um ano e já não é capaz de escrever uma frase sobre o assunto que não fique na dúvida se não está enganado. Como é que escreveu um livro depois de ter passado cinco anos em Israel?
Mas não escrevi um livro sobre o conflito. Eu acho que essa frase é correta e é sempre essa a grande dificuldade, até mesmo falar sobre isso em entrevista. É uma situação historicamente muito complexa, politicamente muito complexa e socialmente muito complexa.
Mas o livro tenta responder a estas questões que estão em cima da mesa?
O livro levanta essas questões do ponto de vista histórico e do passado, ou seja, a minha preocupação neste livro não é resolver o conflito israelo-palestiniano, nem oferecer uma solução política para esse conflito. A minha preocupação aqui é ajudar as pessoas a perceberem um bocadinho o que nós sabemos hoje em dia, sobre a Bíblia como fonte que nos pode ajudar ou não à reconstrução histórica de Israel antigo, que tem uma relação remota com este Israel agora presente. Todas as questões que dizem respeito ao Israel antigo, e à imagem e às fronteiras da Terra Santa, e à coabitação que ali já existiam no tempo bíblico, tudo isto levanta questões no presente e é inevitável que uma pessoa que escreva um livro sobre isto, quando está a escrevê-lo pense sobre as implicações que eventualmente isto terá para reimaginar o presente, evidentemente que penso sobre isso, mas não entro sobre isso no livro, porque isso seriam outros livros.
A sua experiência de cinco anos permitiu-lhe perceber que os santos não estão todos de um lado e os pecadores do outro?
Acho que complica a visão de cada um de nós. Eu tornei-me muito mais humilde em relação ao conflito Israel ou palestiniano, em relação à presença dos dois povos naquela terra, e à resolução do conflito. Eu achava que tinha uma opinião muito fechada sobre o assunto, achava que tinha uma solução concreta, e ao final de cinco anos sou muito mais humilde em relação a isso, sou muito mais cuidadoso a falar com os meus amigos israelitas e palestinianos sobre o assunto, porque não vivo a realidade do conflito. Não fiz uma experiência de que nós não temos a consciência, se calhar em Portugal não temos essa consciência, graças a Deus, que é a forma como o terrorismo e a violência gratuita altera completamente a dinâmica de um conflito entre dois povos. As pessoas não têm consciência do que isto é. Lembro-me de falar com amigos israelitas, por exemplo, que me diziam, já nos anos 2000 e até recentemente, para quando fosse tomar um café não o fizesse na esplanada. porque tinham medo que explodisse uma bomba na estrada junto à esplanada e eu morria. E isto cria uma experiência do conflito que complexifica muito mais do que qualquer relação com o outro. Também se podia referir este episódio trágico que até deu uma série na Netflix, [Our Boys ], que foi uma coisa que marcou muito, sobretudo os palestinianos em Jerusalém que foi um grupo de três judeus ortodoxos que, em retaliação a um outro ato terrorista, raptaram, em 2014, um rapaz palestiniano da zona oriental de Jerusalém e depois o mataram, incendiando-o. Isto foi muito marcante. Depois o Estado de Israel acabou por apanhar estes israelitas e condená-los em tribunal, e ainda estão na prisão, mas tudo isto alterou a própria dinâmica de Jerusalém, a experiência do terrorismo dos outros. Estas ações de violência, vingativa, gratuita, cruel, tudo isto acaba por inquinar o conflito. Graças a Deus em Portugal nós não temos estas experiências recentes, de ações que matam um inocente por retaliação gratuita, num horizonte de um conflito mais vasto. Isto, como disse, altera e muito a dinâmica do conflito.