Imagino-me com seis anos e com um telemóvel nas mãos. Sempre com rede disponível e todo um mundo cibernético à minha disposição. Jogos sem fim, filmes grandes e pequenos, redes sociais onde poderia imaginar as vidas dos outros e criar uma vida paralela. Com poder para me mascarar, criar cenários, inventar-me como quisesse. Janelas que se abririam umas atrás das outras e revelariam experiências, sensações, informação de uma realidade que daria como garantida ser o retrato fiel do mundo. Não teria de sair do quarto ou de casa para viver ou conviver e as horas passariam em minutos. Saberia tudo. Mesmo que não soubesse ler. Teria como mentores youtubers, tutoriais aleatórios sobre os mais variados temas, reels que me hipnotizariam.
Esse telemóvel seria o meu acesso à vida. De cabeça inclinada, sem esforço, era em casa – onde a rede estaria sempre disponível – que sairia de casa. Ninguém me mandaria calar, arrumar, brincar ou trabalhar, porque ali, na companhia de um pequeno ecrã, não teria de falar, de me sujar ou de desarrumar para brincar. Também não teria de ler para imaginar ou viajar em mundos paralelos para onde os livros nos levam. Deixaria de imaginar ou viajar. Não teria tempo. O meu cérebro não teria tempo ou paciência para um livro inteiro, cheio de letras, sem figuras ou ação. Livros seriam sinónimo de escola, igual à matemática. Ninguém se zangaria comigo porque eu não exigiria quase nada e muito menos faria barulho. Não precisaria de espaço, de coisas, de programas ou sequer de muitos amigos para crescer. Tudo aconteceria normalmente, dia após dia. Não teria de aprender a esperar e muito menos encontrar formas para me entreter. Seria uma criança sossegada que podia passar horas em restaurantes ou em viagens de carro sem um queixume, sem dar luta. Com o meu telemóvel o lugar e o tempo deixariam de ter relevânca. E nunca mais teria dúvidas a fazer a lista de Natal: pediria sempre um telemóvel melhor. Com melhor câmara, mais rápido, maior para ver tudo melhor, com mais espaço para caberem mais aplicações. Seria, enfim, uma criança igual às outras. Com estantes cheias de livros por ler, prateleiras preenchidas de jogos por abrir e gavetas a abarrotar de bonecas e brinquedos que um dia foram presentes por estrear e assim ficaram.
Uma criança nos dias de hoje sem telemnóvel é como uma criança na década de 80 jogar futebol com uma bola de trapos em vez de uma bola de catchu ou brincar com uma boneca de pano em vez da Barbie. Quem é que quer uma casa de bonecas se pode brincar aos pais e às mães num jogo digital sem ter de sair do mesmo sítio?
Os telemóveis servem para isso mesmo: para entreter crianças. Podemos levá-las para todo o lado com a garantia de que não nos fazem perguntas, não exigem atenção, não nos incomodam. Basta terem dados e deixam de precisar de nós, do nosso tempo, da nossa disponibilidade, da nossa paciência. Nem de nós, nem da rua, nem de espaço, nem de brinquedos que desarrumam a casa. Um bando de crianças à solta presas a um telemóvel faz menos barulho do que um bando de adultos à mesa de uma cervejaria.
Se eu tivesse seis anos e um telemóvel estaria viciada em não brincar. E a culpa não seria do telemóvel mas dos adultos que o ofereceram como se fosse uma bola de catchu.