Tenhamos a coragem de fazer diferente

Num tempo sem tempo, desacelerar é a chave para mantermos a nossa humanidade.

Esquecemo-nos que as regras não existem na natureza, não foram descobertas qual minério precioso nas profundezas de uma gruta. Uma regra é produto de atividade humana, é uma convenção que nos organiza a vida. Se as regras são essenciais como ferramentas de uniformização que sustentam a sociedade, conhecer os seus limites é fundamental.

Quantas vezes deixamos passar à nossa frente alguém na fila do supermercado por ter um produto na mão por contraponto ao carrinho cheio à nossa frente? Quebrámos a regra, abrimos uma exceção, pois quem chega primeiro à fila deve ser atendido primeiro. Mas o livro arbítrio foi mais forte. A decisão tomada contraria a frieza cega da regra e impõe calor humano.

Sempre que nos parecer que as regras podem ser melhoradas, é obrigação batermo-nos por essa alteração, em vez de nos entregarmos à facilidade do “isto é assim”. Caso contrário, não se progride, limitamo-nos a aceitar de forma acrítica aquilo que foi pensado e determinado por outros. Sapere aude! Desafiava, em 1784, Immanuel Kant na sua tentativa de esclarecer o que era o Iluminismo. Ousa saber, tem a coragem de pensar, foi o apelo que nos deixou.

Mas pensar implica tempo. E o grande problema das sociedades do instantâneo é a falta de tempo. Corremos atrás do relógio e as horas não chegam, os minutos voam e os segundos não se dão por eles. Num tempo sem tempo, sobrevive-se, mal se respira, e continua-se em frente. Num tempo sem tempo, não há espaço para reflexão, para parar, pensar e repensar. Não há tempo para aprofundar a racionalidade que nos distingue dos outros seres vivos.

Se queremos ter a coragem de pensar, precisamos de encontrar uma forma de escapar à voragem da aceleração que tudo engole sem saborear, apenas destruindo. Porque sem tempo lento não há pensamento.

Imagine-se num comboio que se desloca a alta velocidade. Olhe pela janela. O que vê? Uma paisagem distorcida que se fragmenta? Quantos pormenores consegue distinguir? O que vai poder contar do que viu?

Acelerar pode fazer chegar mais depressa. Mas a que preço? O que fica por ver, o que fica por saborear e o que fica por sentir, por viver? Escravos do tempo, respiramos correndo atrás dele. Ofegantes e frustrados, nunca o alcançamos.

E se experimentássemos parar e deixar o tempo passar? Respirar profundamente e contemplar?

Cada pessoa tem o seu ritmo, o seu “relógio”, o seu tempo. Criar relação implica ajustar ritmos, “relógios”, tempos. Para que a sincronia aconteça e seja possível entendermo-nos e disfrutarmos uns dos outros.

Os velhos vivem num tempo mais lento, à espreita da morte. Os mais novos vivem no seu tempo, individual, que procuram que corresponda às suas vontades. Os adultos durante as décadas da sua vida laboral vivem sob as ordens do tempo pré-determinado pelas obrigações a que têm de dar resposta.

Entre o tempo dos velhos e o tempo dos novos, é fácil esquecermos a vida, estamos demasiadamente ocupados. Mas privar-se da desaceleração saudável, da procura do tempo que fomente o ajustamento dos ritmos intrapessoal e intergeracional, resulta em alineação pessoal, social e conduz a uma solidão profunda no final do caminho. Tenhamos a coragem de fazer diferente!


Professora Associada e Investigadora
Universidade Lusófona