María Eugenia Talerico: ‘A corrupção foi o catalisador de todos os males que a Argentina enfrenta’

Vetada por Cristina Kirschner para a Comissão Nacional de Migrações, María Eugenia Talerico tem esperança que o Presidente Milei devolva à Argentina o estatuto de potência geopolítica.

Como está a Argentina neste momento?

Temos um novo Governo, que mudou de cor. É uma realidade disruptiva, um verdadeiro outsider chegou ao poder na Argentina, um país complexo, federal, não unitário como o Panamá, Uruguai e Paraguai, que são países mais fáceis deste ponto de vista. Aqui temos um Governo federal que interage com 24 províncias que jogam politicamente. Assim, tudo é novidade, desde o discurso aos modos e oxalá as forças divinas, como ele [Javier Milei] disse, protejam a Argentina.

E qual é a sensação que o povo tem transmitido desde a tomada de posse de Javier Milei?

Há uma grande expectativa, porque ele chega com uma percentagem de votos muito importante, mais significativa obviamente por causa do cenário da segunda volta. Havendo apenas duas opções, muita gente votou contra Massa, que era o candidato do Governo, ministro da Economia e que inclusivamente tem uma denúncia penal por ter usado o Ministério para a sua campanha presidencial, algo inédito na história da política mundial, creio. Assim, Javier Milei ficou como única opção nesse cenário. Quase não houve votos em branco, havendo uma convocatória por parte da outra candidata, Patricia Bullrich, de um partido pelo qual fui candidata a senadora nacional, e representava essa força opositora que é o Juntos por el Cambio, que ficou de fora na primeira volta. Houve uma grande convocatória por parte do ex-Presidente Mauricio Macri, Patricia Bullrich e Luis Petri, que era o vice-presidente de Bullrich e chamaram assim o voto para a figura opositora que era Javier Milei. Portanto, é um Presidente que chega com 56% dos votos, com muito apoio popular de setores bem diversos, não só das classes média e alta, mas também de um setor popular importante, que era o que suportava a sua figura com este slogan anti-casta e anti-Estado que é o que parece oprimir a Argentina. Assim, há esperança.

Acredita que Milei é um estadista capaz?

Creio que vai demonstrar se é capaz durante o seu Governo. Não o conhecemos, é deputado há dois anos e nem na sua vida privada esteve ligado à gestão de alguma empresa ou banco, era um consultor. Vai ter de demonstrar as suas capacidades de liderança e de governo no próprio Governo, por isso muita gente diz que estamos perante a ‘experiência argentina’. Escolheu um ministro do Interior que era o representante no Banco Interamericano de Desenvolvimento em Washington no Governo de Alberto Fernández [ex-Presidente], que está a demonstrar um bom jogo de cintura político para ajudar o Presidente nos acordos que precisa para aprovar as leis. Isto porque o Congresso está dividido, o partido do ex-Governo continua a ter uma representação muito forte. Vamos esperar pelo que o destino nos reserva, Milei já deixou claro que nos esperam 24 meses críticos, com uma inflação extremamente alta, que ronda os 15 000% anuais, algo inimaginável no mundo, fruto das medidas que tomou Sergio Massa. Já estamos habituados a viver em crise, estamos muito mal economicamente e ele [Milei] parece oferecer uma saída.

Conhece bem Patricia Bullrich. Como classifica a sua decisão de apoiar Milei, e até fazer parte do seu Governo, mesmo depois das acusações mútuas na campanha?

O Presidente mencionou a ‘folha limpa’, deixar para trás o que foi dito na campanha. Milei chegou a chamar-lhe algo como terrorista e quem deu o primeiro passo de perdão foi a própria Patricia Bullrich. Este Governo terá um grande desafio de segurança, e Bullrich já foi ministra da Segurança do Presidente Macri, tem muito conhecimento e um punho firme em fazer cumprir a lei. Parece-me um gesto bastante patriótico de uma pessoa que foi candidata presidencial e perdeu. Também o seu vice-presidente, Luis Petri, assumiu o Ministério da Defesa. A Argentina tem três grandes desafios: primeiro o da governabilidade – em termos de acordos políticos para realizar as reformas profundas anunciadas -, depois nas ruas com as organizações sindicais – os gerentes da pobreza, como nós lhe chamamos – que organizavam os planos sociais dos quais cerca de 20 milhões de argentinos beneficiam, mobilizam muita gente e já declararam guerra ao novo Governo; e, por fim, o desafio económico, ao qual Milei se referiu no seu discurso de tomada de posse e deixou claro que o estado da economia argentina é crítico. A economia, a segurança e a governabilidade são os três grandes desafios.

Qual é a dimensão do buraco deixado pelo kirchnerismo?

É muito crítico. Temos uma dívida de 200 mil milhões de dólares. Para se perceber, acusavam Macri pela dívida ao FMI que era de 50 mil milhões. 200 mil milhões é bastante dinheiro para um país como a Argentina, surgiram mais três milhões de pobres. O Banco Central apoiou sempre o Governo, demonstrando uma falta de independência absoluta, chegando a ter reservas negativas na ordem dos 10/15 mil milhões. Há uma dívida dos importadores argentinos de 50 mil milhões de dólares para com o exterior. A pobreza infanto-juvenil, entre os 0 e 16 anos, está nos 60%. O trabalho informal, que não sustenta o Estado, já ultrapassou o trabalho formal. Este cenário, a par da catástrofe na saúde e na educação, é muito difícil e temos uma inflação que ronda os 300% anuais. Todos os dias sobem os preços e perdemos valor na moeda em que trabalhamos. Estamos perante um cenário bastante crítico.

Acredita que haverá um bloqueio às reformas, à semelhança do que aconteceu com Macri, pela oposição?

Já se nota alguma diferença. No Governo de Macri havia um grande confronto com o kirchnerismo. Na transição para o macrismo, os escritórios foram encontrados vazios, sem documentos e sem registos informáticos, algo insólito. Isto não se verifica neste Governo, e o jogo de cintura do ministro Guillermo Francos estabeleceu pontes para que a transição não fosse tão atribulada. Nota-se uma atitude diferente do peronismo. Esperemos que os acordos de governabilidade não garantam a impunidade de Cristina Kirchner e que os casos de corrupção de pessoas envolvidas muito importantes, e que repugnam muita gente, cheguem a julgamento. Vai ser muito difícil, e há a possibilidade de que o Presidente invoque decretos de necessidade e de urgência para poder implementar reformas urgentes sem recorrer ao Congresso. Milei tem muito apoio popular, ao contrário do Governo de Mauricio Macri. Milei chegou a franjas da sociedade que antes votavam no kirchnerismo, há muita gente disposta a defender o modelo que Milei propõe.

O que achou de Cristina Kirchner na tomada de posse?

Vi-a como um maestro de orquestra (risos). Era raro vê-la tão contente e isso deixa-me inquieta. Fui uma lutadora contra a corrupção sistémica e estrutural que foi muito degradante para a Argentina. Ela está condenada e tem uma inabilitação perpétua para exercer cargos públicos, apesar de não estar ainda em vigor. Estou inquieta com a sua felicidade porque podem ter havido acordos que a beneficiem mais do que se deve. Continua a ter muito poder e mantiveram um dos governos mais importantes, o da província de Buenos Aires, muito importante para a governabilidade. A sua felicidade contrastou muito com a postura de Alberto Fernández e espero que não se deva ao que suspeito, porque se for, vou levantar mais uma vez a minha voz.

Sempre lutou vivamente contra a corrupção. Acredita que tenha sido um fator-chave para a degradação do país?

A corrupção, que lamentavelmente não esteve presente no discurso de Javier Milei, foi o grande catalisador de todos os males que a Argentina enfrenta. Um Estado preso pelas elites políticas, que querem continuar a viver às custas de um Estado que já não dá para mais. Há pessoas nos quadros públicos que não trabalham em qualquer lado, e isto é parte da corrupção, acabar com o valor de trabalhar para o bem comum e trabalhar para o bem dos políticos. Também o aumento do narcotráfico tem a ver com a corrupção na segurança e nas fronteiras e ainda com o branqueamento de capitais. A cumplicidade política e das forças de segurança fez com que o narcotráfico prosperasse na Argentina, chegando ao ponto de termos uma das principais cidades do país [Rosário] controlada pelos narcotraficantes. A corrupção desvia também o dinheiro público que deveria ser canalizado para a saúde e educação, ficando muito dinheiro no bolso dos funcionários no processo e até para financiar as campanhas. Há um establishment corrupto acomodado na Argentina. Em vez de termos livre concorrência temos livre corrupção. A Argentina, se não lutar contra a corrupção, continuará a ser um país falido ainda que se consiga restabelecer de certo modo a economia.

E o processo de Sergio Massa?

Sergio Massa é alvo de uma acusação pesada, que eu própria assinei em conjunto com dois juristas argentinos excelentes, Marta Nercellas e Daniel Sabsay. A acusação expõe as medidas eleitorais levadas a cabo pelo então ministro da Economia que criaram na Argentina um buraco fiscal enorme, entre os 6 mil milhões de dólares e 15 mil milhões de dólares. O avanço da acusação e da luta contra a corrupção vai depender em parte dos sinais que transmita o ministro da Justiça.

Declarou não se retirar da arena política, mas também afirmou que não fará parte deste Governo. Que pretende fazer?

Vou ficar na expectativa. Fui nomeada para ocupar o cargo da Direção Nacional de Migrações e até já estava a trabalhar com a equipa para o processo de transição e fui alvo de um veto de Cristina Kirchner. Queria oferecer o meu conhecimento, apoio e dedicação a este Governo, mas tenho um veto ao qual ficarei atenta, principalmente vindo de quem vem. Não vamos cessar a nossa procura pela justiça. Vou continuar ativa e vamos ver se o Governo faz acordos por razões que não deveria, mas entendo que me dispensassem por questões de governabilidade para gerar acordos parlamentares e não perturbar com uma figura como eu que foi tão ativa na luta contra a corrupção. Porém, se verificar outro tipo de acordos, vou estar contra e lutar para que estes casos de corrupção não passem impunes.

Os líderes de Executivos de países importantes, com ligações históricas à Argentina, Brasil e Espanha, decidiram não estar presentes na tomada de posse. O que pode isto significar?

Sánchez está à deriva e é lamentável o que fez para se manter no poder. São, como chamamos na América Latina, os populismos do século XXI, que atacam a imprensa, as instituições do poder judicial e levam a cabo mudanças institucionais para se manterem no poder, identificados na nossa região como o Fórum de São Paulo. São populistas de esquerda com elevados níveis de corrupção ao nível da gestão pública. A Argentina de Milei vai ser muito crítica de países como a Rússia e a China, mas mais na dimensão geopolítica que na comercial. O Governo de Fernández abriu a porta para a entrada da Rússia na América do Sul, não combateu firmemente o Irão e esteve na tomada de posse de Ortega, que transformou a Nicarágua numa ditadura. A Argentina volta agora a aliar-se às democracias liberais do mundo, de governos que não são nem comunistas nem populistas de esquerda. Temos uma constituição liberal, com divisão de poderes, liberdade de imprensa e vamos continuar a defender a carta democrática da Organização dos Estados Americanos. É esta a grande novidade para o mundo a respeito da Argentina.

Como deveria colocar-se a Argentina perante o Mercosul, que pode ser um fator de desenvolvimento a nível regional?

O Mercosul tem o seu acordo pendente com a União Europeia, um acordo que seria bastante benéfico se os países do Mercosul não tivessem tantas diferenças e discussões ideológicas. Em vez de se pensar a longo prazo, com políticas públicas sustentáveis, a ideologia mistura-se muito com as discussões no Mercosul, e se houver uma melhoria então será mais fácil chegar a acordos para que se possa negociar com a União Europeia e outros países como um bloco e não como tenta fazer o Uruguai com o Presidente Lacalle Pou, com acordos bilaterais, dado o bloqueio interno do Mercosul. Há de facto um bloqueio interno por questões ideológicas e políticas, e o facto de Lula não ter aparecido na tomada de posse [de Milei] cria já um curto-circuito diplomático que veremos como termina em termos de chegarmos a acordos que nos relacionem com o mundo de uma forma mais estável, com menos ideologia e que sirvam as nossas indústrias e os nossos cidadãos para estar no mundo como pertencentes ao bloco Mercosul. Foi também transmitido pela ministra das Relações Exteriores, Diana Mondino, a intenção da Argentina voltar a iniciar o processo da OCDE, uma boa notícia.

Acredita que a Argentina possa voltar a ser uma potência económica mundial?

Esse é o sonho do Presidente Milei. Há muita coisa para fazer e a Argentina é um país muito estranho, estamos sempre no fundo e renascemos, como foi com o Governo do Presidente Macri, em que a Argentina presidiu ao G20. Quem vem à Argentina, apesar das notícias que se leem, vê uma Buenos Aires pujante, como se fosse uma cidade europeia, com edifícios magníficos e uma oferta cultural impressionante. Temos um país fantástico e oxalá possa seguir em frente, voltando a ser uma potência.