Francisco Martins é um padre jesuíta e professor de Literatura Bíblica na Pontificia Università Gregoriana, em Roma. Mestre em Teologia Bíblica, doutorou-se em Estudos Bíblicos na Universidade Hebraica de Jerusalém. O padre foi desafiado pelo i a explicar a Bíblia para ‘totós’, isto é: para quem pouco ou nada sabe das histórias do Livro Sagrado.Vou fazer-lhe uma provocação.
Como definiria a Bíblia para ‘totós’?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que a Bíblia não é um livro. Aliás, só no século IV da era cristã é que foi possível, pela primeira vez, imaginar que a Bíblia fosse um ‘livro’, isto é, uma obra contida num único volume. Até aqui, até à invenção do códice, os diversos livros da Bíblia eram transmitidos de forma separada ou em pequenas coleções (escritos em rolos e fascículos).
Não é um livro, OK. Então, o que é?
A Bíblia é uma biblioteca de livros, na qual se encontra de tudo um pouco: de poesia à prosa, de profecias a cartas, livros mais longos e livros mais curtos. Para quem crê, além disso, esta coleção de escritos contém a revelação de Deus, isto é, aquilo que Deus quis transmitir a um povo e depois à Igreja a respeito de si próprio e também da salvação que reservou para nós, os seres humanos e toda a criação.
E quem escreveu?
Quem a escreveu foram autores humanos, e, por isso, a Bíblia é também literatura. Algumas pessoas terão algum receio desta palavra, porque pensam que estamos a dizer que a Bíblia não é a palavra de Deus. Ora, isto é um erro. É justo dizer que a natureza literária da Bíblia é uma decisão divina. Se tivesse querido, Deus podia ter-se revelado a um povo de contabilistas ou engenheiros, para dar um exemplo, e provavelmente estaríamos aqui a falar de uma folha de Excel [risos]. Ao decidir revelar-se a um povo de escritores, o resultado final foi este. Por isso, totó ou não totó, cabe começar por respeitar o que a Bíblia é.
Mas, concretamente, quem a escreveu?
A Bíblia foi escrita ao longo de vários séculos, por dezenas de autores.
Isso já ajuda os totós.
Vejamos o exemplo do livro de Isaías, que é um livro profético. O profeta Isaías existiu e provavelmente disse parte dos oráculos que estão ali postos por escrito no livro, mas uma pequena parte, porque sabemos hoje que o livro de Isaías foi escrito ao longo de quatro, cinco séculos. Como é que as pessoas procediam na Antiguidade? Há aqui um aspeto que é importante considerar. Nós temos uma distinção muito básica entre texto e comentário, e também entre autor e comentador. Se eu lhe disser: comente estas três estrofes do terceiro canto dos Lusíadas, nunca passará pela cabeça do Vítor acrescentar mais uma estrofe ou umas tantas palavras ao texto. Isto não lhe passaria pela cabeça. Ora, até sensivelmente ao tempo de Jesus, na Antiguidade, isto era a única forma que havia de comentar. Como é que eu comento um texto que é relevante para mim e para a comunidade à qual pertenço? Acrescento e atualizo o texto. O profeta Isaías transmitiu-nos coisas relevantes sobre Deus para a nossa salvação. É importante, por isso, continuar a ler o livro de Isaías. Muito bem, o que fazer? Quando recopiarmos o livro, acrescentamos e atualizamos o recebido com a ajuda do que nos foi transmitido mais recentemente por outras vias.
Mas, quando diz que levou cinco séculos a ser escrito, não foi o profeta Isaías que escreveu durante esse tempo todo!
[Risos] Evidentemente que não! Já desde o século XIX que sabemos que Isaías escreveu uma parte muito pequena, se é que escreveu alguma coisa, provavelmente ditou mais do que escreveu. Depois o livro foi crescendo. O livro tem 66 capítulos; não sei se temos dez capítulos que remontem verdadeiramente ao próprio profeta Isaías. Na verdade, deve haver só um livro ou dois do Antigo Testamento que terão sido escritos por uma única pessoa. A grande maioria foi escrita ao longo de séculos, por dezenas de autores, usando a língua local, o hebraico.
Quem decide juntar todos esses textos e publicar em livro?
É um processo muito orgânico, a comunidade reconhece-se nestes textos e vai-os guardando, copiando e transmitindo ao longo dos séculos. É preciso realçar que a maior parte dos autores dos livros bíblicos são figuras anónimas. Os livros são atribuídos a uma figura, que provavelmente esteve na origem do núcleo central do livro, mas depois os desenvolvimentos do livro, que muitas vezes são muito consideráveis, são anónimos. Não sabemos, concretamente, quem acrescentou ou atualizou os livros e os trouxe até à forma que têm hoje.
E por que houve o Novo Testamento?
Porque houve Jesus Cristo. Esta é a resposta histórica: sem Jesus, sem o movimento de discípulos que se gerou à sua volta, sem a expansão missionária do cristianismo na bacia do Mediterrâneo, nunca teria passado pela cabeça de ninguém escrever mais livros sagrados. É importante perceber que, para os primeiros cristãos, isto é, para os primeiros seguidores de Jesus, a Bíblia, no sentido exato, era o que nós hoje chamamos o Antigo Testamento. Os cristãos olhavam para os textos que tinham recebido do judaísmo como as Escrituras Sagradas e era ali que procuravam a confirmação para o que tinha sucedido a Jesus.
Então, em que momento é que mudaram de estratégia e decidiram escrever o Novo Testamento?
Num certo sentido, os primeiros cristãos não decidiram escrever o Novo Testamento, ou, pelo menos, não decidiram escrever o Novo Testamento como quem vota um projeto de lei no Parlamento. Os primeiros escritos, as cartas de Paulo, são claramente escritos de circunstância que depois adquiriram uma autoridade que o próprio autor, Paulo, provavelmente nunca teria imaginado. Foi a leitura pública, no seio das primeiras comunidades cristãs, e a transmissão destes e de outros escritos que, pouco a pouco, levaram a Igreja a reconhecê-los como palavra de Deus ao mesmo nível do Pentateuco ou do livro do profeta Isaías.
E também foram acrescentados e atualizados, como os livros do Antigo Testamento?
Foram, mas numa escala muito mais pequena. É preciso perceber que o Novo Testamento foi escrito em pouco mais de 70 anos, ao passo que o Antigo Testamento foi escrito ao longo de vários séculos O Antigo Testamento começou a ser escrito por volta do século IX antes de Cristo e os últimos livros são do século II antes de Cristo. O Novo Testamento foi escrito entre os anos 50 e 120 da era cristã. Ou seja, o processo de composição do Novo Testamento é muito mais curto, de tal forma que a maior parte dos livros são obra de um só autor. Dito isto, também há trechos acrescentados no Novo Testamento. Vou dar o exemplo mais típico: os últimos versículos do evangelho de Marcos, onde se descreve as aparições de Jesus depois da Ressurreição, foram certamente acrescentados num segundo momento e são uma espécie de resumo do que nos é contado no final dos evangelhos de Mateus e Lucas. Isto é, a versão original do evangelho de Marcos terminava, muito provavelmente, com a enigmática frase do versículo 8 do capítulo 16, na qual se diz que as mulheres, que foram ao sepulcro e ouviram o anúncio da ressurreição de Jesus da boca do anjo, decidiram não contar nada a ninguém.
Um final intrigante…
Seguramente. Tão intrigante que alguém decidiu que era melhor acrescentar mais uns versículos, onde se confirmava que o silêncio das mulheres não tinha durado muito tempo e o próprio Jesus decidira mostrar-se ele próprio para dissipar as dúvidas.