Cavaco e Passos

 Viver sob uma mistura bizarra de liberalismo global e socialismo nacional é desesperante.

Podemos falar de Aníbal Cavaco Silva (ACS) e Pedro Passos Coelho (PPC) sem cair no registo do confronto de claques futebolísticas?

ACS foi responsável pela modernização de Portugal e a criação do yuppie português, o super-homem português dos fundos comunitários, o empresário de sucesso, e PPC pela luta quixotesca por um outro Portugal.

O problema principal de ambos é que a seu modo foram agentes de uma ideologia económico-financeira globalista destrutiva da União Europeia (UE) e das soberanias nacionais.

Em 1992 com o Tratado de Maastricht a UE tornou-se numa plataforma do liberalismo económico e desse modo vendeu o projecto europeu aos mercados. As decisões e acções dos países-membros, por exemplo sobre educação, meio ambiente, cultura, agricultura e saúde passaram a estar unificadas e a resultarem de um poder superior ao de cada país. A criação da moeda única que substituiu as moedas nacionais foi uma das medidas centrais desse poder transnacional, retirando ao países poder de decisão sobre as suas economias. Criou-se também a ideia de uma cidadania europeia, do cidadão europeu e foram destruídas as fronteiras, as identidades, as nacionalidades e as economias nacionais. Os países perderam a sua moeda e a sua soberania, deixaram de controlar idas e vindas de pessoas e bens dentro do seu espaço e perderam o poder de criar leis específicas sem a submissão a esse poder global. A partir dessa data é criada uma nova instituição com poderes superior ao dos Estados, o banco central europeu, dotado de independência em relação ao poder político e responsável pela política monetária. Só Margaret Thatcher percebeu na altura esse projecto hiperliberal.

Ser crítico da Europa Maastrichtiana não significa ser contra a UE que é um projecto fundamental e que impede ainda hoje que Portugal se transforme num país do 4º mundo, mas sim, opor-nos à destruição da ideia de uma Europa das nações, das soberanias nacionais e das liberdades fundamentais.

O conceito de Estado Maastrichtiano foi cunhado pelo filósofo Michel Onfray reconhecendo como nesse tratado a Europa morreu e oficializou-se a renúncia às soberanias em nome de uma supranacionalidade liberal gerida por um sistema autocrático assente no dinheiro e no seu poder sobre os meios de comunicação social. Refere Onfray que essa nova Europa instituiu um “totalitarismo cortês”, que “nos oprime suavemente” e “mercantiliza os corpos e as mentes”. Nesse modelo é o mercado que faz a lei através da ideologia, da força, da restrição, da intimidação e do enfraquecimento de pensamentos resistentes. Quem dita hoje as politicas mais importantes aos países? Entre os mercados e os cidadãos quem domina?

Cavaco com a colaboração nesse Tratado foi cúmplice dessa venda da UE aos mercados, ao globalismo e à destruição das soberanias. PPC também de modo que pareceu involuntário, pois julgou protagonizar uma missão salvífica, foi sem dúvida um intermédio da política programada dos mercados na desdemocratização dos Estados e na privatização destes, designando essa operação de “consolidação orçamental” e “reformas estruturais”.

 A divida, a inflação, o crédito e os programas de assistência são mecanismos privilegiados desse poder financeiro global para quebrar a independência das pessoas individuais e a autonomia dos Estados. O endividamento do Estado tem permitido comprar paz pública e ganhar eleições, mas o dinheiro barato torna-se um instrumento de submissão. A UE não combate a estratégia desse poder transnacional, antes o protege e até fomenta.

Em Portugal a gestão ruinosa do socialismo evidenciou a acção desse poder não democrático sobre os Estados soberanos. E sim, havia outras alternativas.

O PSD de PPC foi o intermediário na aplicação das receitas irrecusáveis e nada democráticas da intervenção externa como a degradação programada das funções públicas e sociais do Estado. A missão da Troika e o papel de António Borges são disso exemplos. O antigo quadro de Goldman Sachs metamorfoseou-se numa espécie de comissário do Estado que iria dirimir com os representantes dos mercados e do qual foi um dos seus gestores.

PPC foi um político sério e íntegro, mas acabou por ser um funcionário servil desse programa global do hiperliberalismo e do seu poder transnacional.

Estes temas estão envoltos na obrigatoriedade de defender um conjunto de falsos dogmas: não há má UE, o Estado é regra geral mau, os mercados e a iniciativa privada são sempre bons.

A confusão entre Estado e mau Estado faz parte desse programa. O Estado deve ser uma plataforma com a principal missão de proteger o modelo de negócio hiperliberal e ser um consulado desse poder transnacional. Ora, há o bom Estado, aquele que defende a soberania nacional, que considera as pessoas mais importantes que os mercados, que protege e estimula a iniciativa privada, que não a subcarrega com tributação excessiva e burocracia e que faz depender a economia da política democrática e de princípios éticos elementares. Há também bom capitalismo, o capitalismo democrático, onde a economia serve a sociedade e a política, e o mau capitalismo, o hiperliberal, em que a sociedade e os políticos servem a economia. Há também mau e bom mercado. O mau mercado obedece principalmente a grupos particulares de interesses.

Em Portugal este tema tem uma nuance fundamental. O Estado está dominado pelo socialismo e este é o paradigma do mau Estado. A visão socialista de contrair divida de modo irresponsável, de não a pagar e de gastar o dinheiro que não gera, nem sabe gerir faz parte do seu ADN. O Estado socialista é principalmente um estado clientelar e centrado na sua perpetuação no poder.

Historicamente no socialismo, o partido confunde-se com o Estado e uma elite, a do partido e o que gravita à sua volta, tudo controla, tributando em excesso a população, coarctando a livre iniciativa, e desenvolvendo práticas de corrupção, clientelismo e esquemas vários. Os países caracterizados pela miséria, atraso e propaganda são países socialistas, mas a alternativa liberal global tem também um potencial destrutivo assinalável ao reduzir a actividade humana à esfera económica, particularmente às engenharias dos detentores e gestores do capital.

 Viver sob uma mistura bizarra de liberalismo global e socialismo nacional é desesperante.