Como seria de esperar, a Igreja Católica portuguesa não escapa à ‘guerra’ existente na Igreja Universal, por causa das bênçãos autorizadas pelo Vaticano a casais irregulares, leia-se divorciados recasados e a casais do mesmo sexo. «Como é óbvio, os mais conservadores vão recusar-se a dar a bênção agora autorizada pelo Papa. O documento publicado não tem efeitos práticos, não tem efeitos sacramentais, não tem efeitos legais. Logo, cada um fará como entender», é assim que um padre ouvido pelo Nascer do SOL explica a polémica que está a dividir a Igreja Católica no mundo.
O mesmo sacerdote lamenta que em pleno processo sinodal, em que todos os católicos foram convidados a escutar os outros, caminhando em conjunto para chegarem a uma conclusão, o Papa tenha feito precisamente o contrário do que pede. «Numa altura em que o Papa tem insistido tanto na importância de a Igreja se pensar conjuntamente sinodalmente, etc., de repente aparecer com um documento destes do nada, é pedir um bocado para levar ‘porrada’. Parece-me uma coisa leviana aos olhos das pessoas que veem isto como uma ameaça – é um documento que parece ser uma ofensa gratuita –, e aos olhos das pessoas que veem isto como uma necessidade, um passo em frente, etc, este documento não muda nada, porque não tem nenhuma força legal e não tem nenhuma força de doutrina também».
Outro padre concorda com esta opinião e vai um pouco mais longe: «Posso ir a Fátima à missa dos motards e o padre que estiver a presidir à missa vai dizer a certa altura para toda a gente levantar o capacete, para ele proceder à bênção dos capacetes. Quer dizer, entre isso e um casal, seja que casal for, não tenho nenhuma dúvida que Deus se importa muito mais com as pessoas do que se importa com capacetes. Mas, acima de tudo, é aquilo que tenho pensado mais nos últimos dias é que isto é uma guerra desnecessária e é um documento leviano. Numa altura em que o que se está a fazer é querer promover a sinodalidade, e uma forma sinodal da Igreja funcionar, isto realmente é um sinal contraditório, e parece pôr em causa o trabalho que tem vindo a ser feito até aqui. Parece que o Papa está a fazer aquilo que acusa outros de fazerem. Aqui está o Papa a impor um modo de funcionar que ele tem criticado aos outros. Isto é uma forma de conservadorismo, de limitar a possibilidade de existir conversa ou discussão em torno de um determinado assunto».
Já para Godehard Brüntrup, padre jesuíta e ex-confessor de Joe Biden, «esta pequena admissão de bênçãos não é exatamente aquilo que provavelmente muitos esperavam. Mas é a semente de uma mudança de paradigma, que agora pode brotar ou murchar».
D. José Ornelas no centro do furacão
No caso português, a história ganhou contornos mais ‘picantes’ depois da entrevista ao Público de D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Português, onde o representante dos bispos nacionais assumiu que nunca deu a bênção a casais homossexuais «porque nunca se proporcionou». Mas acrescentou: «Mas abençoei casais em situação irregular, cujo casamento se desfez e que voltaram a casar civilmente. Esta declaração do Papa – feita a partir de perguntas concretas de bispos – não diz que se vai criar um rito para eles. Agora, são pessoas que vêm à procura de uma bênção, e é isso que o Papa valoriza».
«Haver bispos que dizem que vão avançar com as bênçãos quando há setores da Igreja nessas mesmas zonas que acham que isso é um progressismo desmesurado, vai criar uma certa tensão», como explica ao nosso jornal outro padre.
O documento que autoriza a bênção aos referidos casais acabou por ter uma espécie de adenda do Vaticano, que se sentiu na obrigação de clarificar que a mesma não se pode comparar ao sacramento do matrimónio, único e exclusivo de casais heterossexuais, e que a bênção não pode ser dada ao par, mas a cada um individualmente. Na verdade, já pouco ouviram essas explicações e a confusão generalizou-se com a Igreja Romana, de rito latino, de um lado – com todas as divisões internas –, e a Igreja de África e a ucraniana, do outro. Páginas e páginas têm sido escritas em meios católicos, mas ninguém se entende.
Para se ter uma ideia da confusão instalada, a Conferência Episcopal Moçambicana apelou a que «não se dê, no país, bênção a uniões irregulares e uniões do mesmo sexo». Mais longe foram os bispos dos Camarões, que consideram que a «homossexualidade falsifica e corrompe a antropologia humana e é um sinal claro da decadência ‘implodente’ das civilizações». Escusado será dizer que da Bélgica, França, Alemanha, Índia, Singapura, entre tantos outros, não faltaram os aplausos à bênção pedida pelo Papa.
Parece, no entanto, consensual que cada um fará o que muito bem entender e que a Igreja do futuro terá muitas tonalidades. «Se calhar vamos ter zonas onde vai haver mais clero a dar bênçãos a pessoas unidas homossexualmente e a reconhecer o que há de bom nessas relações, e havemos de ter outro clero a resistir e a continuar a dar bênçãos individualmente a cada uma das pessoas, mas a não dar à relação. Se calhar vamos ter um bocado mais desta ‘tensãozinha’», como exemplifica outro padre.
Foi isso, aliás, que D. José Ornelas afirmou na entrevista ao Público: «A Igreja no futuro não vai ser toda direitinha na sua forma de agir concreta._Vai ser uma Igreja mais plural e diversa».
Para finalizar, diga-se que alguns padres ouvidos pelo Nascer do SOL, à semelhança do que tem sido escrito na imprensa internacional, acreditam que o Papa Francisco está a querer acelerar as reformas que acha que já não conseguirá levar a cabo no processo sinodal, tendo, por isso, avançado com a abertura aos recasados e aos casais do mesmo sexo, da mesma forma que está a abrir as portas para as mulheres diaconisas.