Luís Miguel Ribeiro. “A demora nos pagamentos é um fator crítico na execução do PRR”

Presidente da AEP diz que a aplicação destes programas devia “ser simples, desburocratizada e contribuir para elevar a produtividade e a competitividade da economia”

Que análise faz da execução do PRR?

A AEP reitera que na análise da execução do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] devemos olhar simultaneamente para os níveis de aprovação e de pagamento. Sendo certo que estamos relativamente bem nos níveis de aprovação (89%), contudo, a demora nos pagamentos continua a constituir um fator crítico na execução. O último relatório de monitorização do PRR (27/12/2023) aponta para uma execução de 22% da totalidade das metas do programa, tendo apenas sido concretizados 16% do total dos pagamentos previstos. Tanto a Comissão Europeia como a AEP já demonstraram preocupação com o grau de execução deste programa. Adicionalmente, a AEP alerta, mais uma vez, para os programas de PT 2020 e PT 2030 cujas execuções também são preocupantes e essenciais na garantia do crescimento económico do país. A aplicação destes programas deve ser simples e desburocratizada e contribuir para elevar a produtividade e a competitividade da economia portuguesa, onde o investimento empresarial privado assume um papel crucial e, por isso, deveria absorver uma parte significativa na alocação destes fundos.

Aponta então para o atraso na execução e também nos pagamentos. O que está a falhar?

Devemos reconhecer que o método mais exigente de comprovativos de resultados inerente ao PRR requer uma recolha detalhada de provas da execução das medidas propostas pelo Governo. Esta componente tende a adicionar dificuldades na execução dos pagamentos. No entanto, esta maior exigência não deve servir de plena justificação. Para os atrasos significativos muito contribui a elevada burocracia associada às várias fases de tramitação dos projetos de investimento, um problema que o país tem já vindo a demonstrar na implementação de outros fundos europeus, nomeadamente do Portugal 2020. No PRR, é de recordar os grandes atrasos que se registaram na avaliação das candidaturas, em particular nos poucos avisos que se destinavam às empresas.

Ainda assim, o primeiro-ministro tem elogiado a execução do programa e afirmou que “podemos dizer que o Plano de Recuperação e Resiliência está a avançar muito bem”….

O positivismo de um primeiro-ministro demissionário é mais difícil de ser partilhado. De facto, até as mais recentes previsões do Banco de Portugal reveem em baixa a componente do investimento para o ano de 2024, grande parte fruto de uma previsível prorrogação da execução dos fundos do PRR, com impacto no importante motor que é o investimento e, consequentemente, no crescimento do PIB previsto para este ano. A par do investimento, também o reforço das exportações no PIB constitui um importante desígnio, rumo a um crescimento mais robusto e sustentado. O PRR devia ser fundamentalmente alocado no estímulo a estas duas importantes componentes do PIB. A AEP tem vindo a afirmar o seu descontentamento com as medidas insuficientes para estimular as exportações e o investimento do setor produtivo privado. Falta uma estratégia das políticas públicas rumo ao desenvolvimento do perfil de especialização da economia portuguesa, onde a aposta na reindustrialização é um fator crítico. A AEP alerta para a necessidade de execução célere destes fundos, que ganham relevo no contexto de uma conjuntura desfavorável.

De acordo com os últimos dados do relatório de monitorização do PRR, os pagamentos somam 2039 milhões de euros em 2023 e mais de metade a empresas. Este montante fica aquém do que estava previsto?

Estes números são reveladores da capacidade e da qualidade de execução por parte das empresas. Desde a primeira hora, a AEP entende que o que fica aquém é o montante alocado ao setor empresarial privado, em detrimento de medidas dirigidas ao setor público. Grande parte do financiamento ao setor público é dirigido a medidas de caráter social ou outras que deviam ser cobertas pelo Orçamento do Estado. A AEP esperava muito mais para as empresas privadas em geral, como também na tipologia das agendas mobilizadoras – mesmo já considerando o reforço de verbas – um investimento amplamente reprodutivo, pelo contributo para a sofisticação do perfil de especialização da economia portuguesa, nomeadamente, resultante de um trabalho conjunto, de parceria, entre as empresas e as entidades do sistema científico e tecnológico, que conduz a mais inovação e mais valor acrescentado na produção de bens e serviços. Os estudos demonstram que por cada euro de incentivo atribuído a projetos de investimento empresarial privado estimam-se impactos muito positivos, duradouros e estatisticamente significativos em variáveis chave para uma estratégia de crescimento económico forte, sustentado e sustentável da economia: investimento, exportações, valor acrescentado, emprego, melhoria da produtividade e competitividade, entre outras.

A Comissão Europeia já disse que há “muito trabalho a fazer” para cumprir marcos e objetivos pendentes. Portugal não está a cumprir o “trabalho de casa”? Aliás, parte da verba da terceira e quarta tranche ficaram retidos…

Esse aviso da Comissão Europeia é um sinal claro de que o país não tem tido a capacidade de uma resposta célere ao nível da execução. Usar a mesma metodologia não vai resolver os problemas identificados. É preciso perceber e acompanhar as dinâmicas da economia em geral e das empresas em particular e adequar os procedimentos às necessidades e exigências dos mercados.

No entanto, António Costa já veio afirmar que as verbas que ficaram retidas por “incumprimento” das metas vão chegar no início deste ano. Acha que é uma visão demasiado otimista?

Tendo sido 2023 um ano pautado pela instabilidade política nacional e internacional – esta última com uma forte agudização no início de 2024 – a conjuntura para a execução destes fundos não é a mais favorável. Ainda assim, a AEP considera que o cumprimento das metas do PRR é uma prioridade do país, com a qual nenhum Governo em funções ou futuro pode falhar, por forma a assegurar os recebimentos dos respetivos fundos. É uma oportunidade que o país não pode desperdiçar, para melhorar a produtividade e competitividade.

Portugal deverá receber a quinta tranche perto das eleições. A realização de eleições antecipadas poderá pôr em causa este timing?

A bem de Portugal, esse cenário não deve ser equacionado e muito menos colocado em cima da mesa. As empresas não podem andar a reboque de cenários políticos. As preocupações e os problemas que enfrentam diariamente já são muitos. A política não pode contribuir para acrescentar mais dificuldades e constrangimentos aos que as empresas já têm.

O Presidente da República já veio desafiar o futuro Governo a “multiplicar” o ritmo de execução do PRR…

É um facto que a instabilidade política tem sempre implicações nestas matérias. Por isso, a velocidade com que se irá formar o próximo Governo é um fator crítico. Não podemos deixar que o exercício da democracia tenha impactos negativos no desenvolvimento económico e no bem-estar social do país. Isso seria um sinal muito preocupante.

Faria sentido que o próximo Governo reavaliasse os projetos que foram aprovados? 

A previsibilidade e estabilidade e a simplificação dos procedimentos são essenciais, especialmente na execução dos fundos europeus. A AEP manifesta a sua preocupação quanto aos efeitos da instabilidade política na execução dos fundos europeus. A garantia do sucesso das iniciativas resultantes dos fundos do PRR não pode estar dependente de eleições ou futuros governos, mas sim asseguradas e priorizadas de acordo com a estratégia que se pretende para o país. Tendo em conta o importante papel das empresas na estratégia de crescimento e desenvolvimento mais sólidos da economia portuguesa, é muito bem-vinda toda a possível realocação/ajustamento do PRR em prol do reforço de verbas direcionadas ao investimento produtivo privado. Se a opção tivesse sido essa, o risco de baixa execução seria muito menor. Por outro lado, é importante sublinhar a reduzida procura por instrumentos diretos de capitalização constantes do programa do PRR, uma preocupação também proferida pela Comissão Nacional de Acompanhamento, cuja solução pode implicar uma reavaliação desta medida pelo Governo, no sentido de a ajustar às reais necessidades das empresas. Num país fortemente endividado, como o nosso, com baixos níveis de capitalização das empresas e com elevada dependência do crédito bancário, enquanto fonte de financiamento do investimento, importa sublinhar a relevância do Banco Português de Fomento e o papel do Sistema de Garantia Mútua.

A AEP já veio referir que os investidores internacionais podem sentir algum “desconforto” nesta relação dos investidores com os decisores políticos. Também chegou a criticar a aposta das verbas da bazuca. Sente que as empresas ficaram esquecidas?

Sim, de facto, na tomada de decisões de política económica do atual Governo é clara a “falta de consideração” pelas empresas no que toca não só ao PRR, mas também ao Orçamento do Estado para 2024. Nunca podemos nem devemos esquecer que as empresas privadas são a fonte de crescimento sustentável de uma economia e, como tal, deviam ser priorizadas nos momentos de decisão política com tanto impacto, como é o caso do PRR.

Concorda com as críticas que estamos perante “uma digitalização” da Função Pública e pouco mais sobra?

Desde o início, a AEP considera que o PRR padece de um elevado enviesamento, materializado numa forte alocação ao setor público, em detrimento de medidas dirigidas ao setor produtivo privado. Grande parte do financiamento ao setor público é dirigido a medidas de caráter social ou outras que deviam ser cobertas pelo Orçamento do Estado. O balanço do PRR é um sinal claro de que o setor público não tem tido a capacidade de uma resposta célere ao nível da execução, como se pode constatar pelos atuais problemas no Serviço Nacional de Saúde, não se justificando, portanto, a carga fiscal tão elevada – a 9.ª mais alta da OCDE, em 2022 – sobre o trabalho e o capital, uma vez que, na prática, não tem correspondência com um serviço público de elevada qualidade. É fundamental uma reforma na administração pública, em prol da melhoria da produtividade e competitividade do nosso país. O processo de digitalização, por si próprio, nunca será sinónimo de melhoria da qualidade do serviço público. É preciso investir nos processos, nos procedimentos e na qualificação dos recursos humanos.

No seu entender, o que deveria ter sido considerado prioritário?

A AEP apresentou contributos relativamente à proposta de reprogramação/atualização do PRR, nomeadamente vincando que esperava muito mais, não só para as empresas em geral como também na tipologia das Agendas Mobilizadoras, um investimento claramente reprodutivo. Portugal tem de apostar na indústria, numa “nova” indústria, que incorpore mais inovação e maior valor acrescentado. A indústria é, por excelência, um setor de bens transacionáveis internacionalmente, contribui para elevar a intensidade exportadora da economia, possui uma elevada capacidade de induzir um efeito de arrastamento na produção e no emprego de vários setores da atividade económica (a montante e a jusante), tem uma excelente capacidade para “dialogar” com as entidades do sistema científico e tecnológico e, com tudo isto, inovar, incorporar maior valor acrescentado nos bens que produz, melhorar a produtividade e competitividade. A indústria assume, igualmente, um importante papel na promoção de um modelo de economia mais circular e, consequentemente, num modelo de crescimento económico mais sustentável, contribuindo para o cumprimento de vários objetivos de desenvolvimento sustentável. Estas medidas foram, apenas em parte, consideradas, mas podiam ter sido levadas mais além, sendo estes os aspetos mais prioritários identificados pela AEP. 

Há várias vozes a pedir um país mais industrial em detrimento do turismo. A bazuca poderia ter sido usada para termos esta atividade mais forte e produtiva?

Por assentar em produtos transacionáveis nos mercados internacionais, enfrentando uma forte concorrência, o setor industrial tende a apresentar uma maior produtividade relativa, além de contribuir para elevar o grau da intensidade exportadora do país. Reitero, uma aposta dos fundos europeus no setor industrial garantiria um crescimento mais sustentável do país, que neste momento depende fortemente do turismo. Este último setor é muito importante, contribuindo para o equilíbrio do saldo externo, mas é, simultaneamente, muito volátil e de bases menos sólidas. Os dados das exportações de serviços, onde se inclui o turismo, denotam um forte abrandamento em cadeia. A aposta na indústria é fundamental para que o nosso país possa tirar proveito do fenómeno de “reglobalização” das cadeias de valor globais, uma tendência decorrente da anterior crise pandémica e das atuais tensões geopolíticas. Apesar da relevância do setor industrial, em Portugal o peso do VAB [valor acrescentado bruto] industrial tem-se situado abaixo da média da União Europeia. Portugal está no top 10 dos países da União Europeia com um menor peso do VAB da indústria. Deste modo, “um Portugal mais exportador” requer uma forte aposta na indústria transformadora, reforçando a sua importância relativa na economia. As estatísticas mostram que um impedimento relevante do aumento da intensidade exportadora é a elevada concentração das exportações de bens num reduzido número de empresas e de mercados. Por isso, na AEP continuamos a defender um alargamento da base exportadora – pôr mais empresas a exportar – e uma maior diversificação dos mercados para onde Portugal exporta, um processo que mitiga riscos perante fatores externos em determinados blocos económicos, mas que é simultaneamente mais exigente. Há vários mercados extra União Europeia muito dinâmicos e de grande dimensão, mas que são, simultaneamente, mais longínquos, o que coloca alguns entraves, face à reduzida escala do tecido empresarial português, com uma dimensão média muito micro. Alcançar ganhos de escala empresarial é um fator essencial. A estrutura empresarial portuguesa não favorece o necessário e desejável reforço do processo de internacionalização da economia. Por tudo isto, fazem todo o sentido as várias vozes a pedir um país mais industrial. Uma aposta dos fundos europeus no setor industrial garantiria um crescimento mais sustentável do país, que neste momento depende fortemente do turismo. Este último setor é muito importante, contribuindo para o equilíbrio do saldo externo, mas é, simultaneamente, muito volátil e de bases menos sólidas. Nesse sentido, a AEP tem vindo a defender, inclusive na sua mais recente publicação “Dinâmicas socioeconómicas: Por um Portugal melhor”, a necessidade de uma aposta na reindustrialização, onde o PRR poderia dar um importante estímulo, contribuindo para contrabalançar e mitigar os custos de diversa ordem que as empresas continuam a enfrentar e que, inclusive, estão a agravar-se, numa conjuntura externa desfavorável, vincada pela forte agudização das tensões geopolíticas, pela deterioração da atividade económica na Área Euro, nosso principal mercado de destino das exportações, e pela inflação. Ao nível da inflação, apesar da previsão de uma contínua desaceleração, que conduzirá a uma política monetária gradualmente “menos restritiva”, o acentuar dos riscos geopolíticos é já muito real. O que está a acontecer no Médio Oriente tem consequências diretas no comércio internacional, nomeadamente no custo do transporte e em disrupções nas cadeias de valor globais, que poderão inverter as expectativas da descida da inflação. Perante todo este cenário, antecipa-se que as empresas vão continuar a enfrentar, no curto e médio prazo, um clima particularmente difícil, que no caso da economia portuguesa é ainda mais desafiante, face ao seu elevado grau de endividamento.

Tendo em conta o atual estado do programa acha que Portugal corre o risco de não usar todo o montante da bazuca?

É importante garantir que esse cenário não venha a materializar-se. Numa altura em que Portugal tem sido ultrapassado no ranking de desenvolvimento económico – PIB per capita em paridade de poder de compra – por países do Leste da Europa que aderiram posteriormente à União Europeia, é completamente inconcebível colocar-se a concretização desse cenário de desperdício de recursos financeiros. Representaria um erro crasso na estratégia económica do país. Uma boa execução dos fundos europeus terá uma grande repercussão no bem-estar das pessoas, na competitividade das empresas e no crescimento da economia. Não temos a certeza se o PRR e o Portugal 2030 serão mesmo a última oportunidade! Mas, devem ser uma oportunidade única para mudar o perfil da nossa economia e das nossas empresas. Vivemos um momento único de oportunidades e desafios. Temos de ser capazes de aproveitar e criar condições estruturais diferentes, para a competitividade das empresas, para fixar recursos humanos qualificados e para o bem-estar das pessoas.

Portugal continua a braços com falta de mão-de-obra. Nem as verbas comunitárias “salvam” este problema? E também já foi dito que a falta de casas ameaça a execução de grandes projetos apoiados por esta verba. O que poderá ser feito para resolver este problema?

Atualmente, Portugal enfrenta problemas estruturais urgentes na captação de mão-de-obra e na oferta de habitação, em condições compatíveis com o nível de rendimento das pessoas que residem em Portugal. Estas matérias estão fortemente correlacionadas, pelo que a resolução conjunta destes problemas é urgente. Relativamente à mão-de-obra, a AEP tem vindo a defender uma política de redução da carga fiscal sobre o fator trabalho, por forma a atrair e a reter capital humano nacional e estrangeiro e a impedir a fuga de talento para fora do país. Num contexto demográfico fortemente adverso, com implicações diretas no mercado de trabalho, esta é uma prioridade. Mas tudo isto remete para a necessidade de Portugal crescer muito mais, melhorar o seu nível de desenvolvimento e, com isso, proporcionar melhores condições às pessoas que cá estão, atrair mão-de-obra estrangeira, bem como os que saíram do nosso país, sobretudo jovens muito qualificados. Os dados do Eurostat mostram que em Portugal cerca de 48% dos que emigram são jovens (com idades entre os 15 e os 29 anos), em geral mais qualificados, com implicações diretas no mercado de trabalho. É um capital de conhecimento, custeado pelo nosso país, e que está a ser desperdiçado, o que é muito preocupante. Nos inquéritos que a AEP promove junto das empresas associadas, a falta de mão-de-obra qualificada é um problema recorrentemente referido.