Djaimilia Pereira de Almeida. Que importa quem fala?

No momento em que se torna o primeiro autor afrodescendente a ser objecto de um estudo académico em Portugal, Djaimilia reune num volume três intervenções tentando problematizar o seu lugar enquanto mulher negra escritora, mas apesar de tomar um grande balanço parece depois refugiar-se numa ambivalência sem saída.

Quando Karl Marx, filósofo que muitos gostariam que caísse em desuso, escreve A Ideologia Alemã, a meio do século XIX, procede a um diagnóstico da contradição entre teoria e prática. Com aquele estilo violento, irónico, presente em muito dos seus textos – o estilo valeria um estudo independente –, Marx percebe que a “putrefação do absoluto” tinha dado lugar a uma revolução inédita, imensa, nunca antes vista e perante a qual a Revolução Francesa parecia uma brincadeira de crianças.

“Esses sonhos inocentes e pueris formam o núcleo da filosofia actual dos jovens hegelianos, que, na Alemanha, não somente é acolhida pelo público com um misto de respeito e medo, mas também é apresentada pelos próprios heróis filosóficos com a convicção solene de que essas ideias, de uma virulência criminosa, constituem para o mundo um perigo revolucionário”

E termina com um daqueles risos que sacode o pensamento, demasiado estridente para ser ignorado, um juízo que não deixa fundação alguma à nossa inanidade: “tudo isto é suposto ter ocorrido na esfera do pensamento puro”. Todo essa turbulência teórica, que se dá ares de grande heresia e de perigo revolucionário, encontra, no entanto, o seu reverso num país politicamente atrasado, conservador, avesso a qualquer mudança. Se Marx a conhecesse, certamente teria citado a famosa passagem de Il Gatopardo: “para que tudo fique na mesma, é preciso que tudo mude”. É esta pequena frase que se encontra no âmago de todas essas ideias que “constituem para o mundo um perigo revolucionário”: faz-se uma revolução na ordem do pensamento para que, na prática, tudo permaneça igual.  

Algo de semelhante pode ser dito daquilo que poderemos chamar de “questão negra”, que parece ter chegado, finalmente, ao campo da literatura e das letras portuguesas – mas não só. Com o atraso normal, importando questões e, inclusive, os termos do debate, a quantidade de projectos de investigação, de artigos científicos, de livros, entrevistas e exposições, é de tal ordem que um observador desatento ficará a pensar que só agora Portugal terá descoberto ser um país racista e que, além disso, se encontra em pleno processo revolucionário em curso – mas, lá está, “tudo isto é suposto acontecer na esfera do pensamento puro”. Toda essa turbulência tagarela, esse revolucionarismo de papel, encontra, como avesso, o mesmo país racista de sempre: aquilo que não consegue ser resolvido no campo da prática política é resolvido no campo da teoria. O exemplo paradigmático é a capa de um conhecido suplemento cultural: num país onde não consta que haja um único tradutor negro, alguém achou por bem que se devia discutir se a tradução tem cor (para se chegar à opinião unânime de que, afinal, não tem. É o universalismo cosmopolita a brilhar a partir do eixo Alvalade-Roma). Que não haja tradutores negros é, muito mais do que questões abstractas e vagamente excêntricas, que servem apenas para acalmar a má-consciência da burguesia esclarecida lisboeta, algo que levanta questões, nem que seja relativamente ao acesso ao ensino universitário, à própria forma classista e racista como o campo cultural é constituído: não há editores negros, nem jornalistas culturais, nem críticos literários (mas esta é uma espécie em vias de extinção), há apenas alguns poetas e romancistas que são conservados como espécimes exóticos.

Uma das mais importantes notícias que nos chega da “questão negra” é um pequeno livro de Djaimilia Pereira de Almeida, das romancistas mais interessantes que têm surgido nos últimos anos: O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo. São três textos diferentes, um pequeno ensaio escrito durante uma residência literária, uma entrevista com a poeta e tradutora brasileira Stephanie Borges e, por fim, um artigo para-académico que foi apresentado à New York University. Para quem venha de uma determinada tradição, o uso do pronome pessoal começa por levantar suspeitas e apetece logo citar uma conhecida passagem de Michel Foucault: “Não me perguntem quem eu sou nem me peçam para permanecer o mesmo: isso corresponde a uma moral de estado civil que pretende reger os nossos papéis. Quem nos deixe livres quando se trata de escrever.”. Sejamos justos, no entanto: apesar da discussão ser muitas vezes reduzida ao privilégio do lugar da fala, que originalmente serviu para a criação de dissensão dentro do espaço público, em momento algum Djaimilia Pereira de Almeida aponta para uma eu reificado, uma identidade estável, esse pequeno eu despótico que surge com demasiada frequência no espaço público – “que importa quem fala”, diria Beckett, como horizonte de uma política e de uma literatura que tome o inidentificável como limite. Pelo contrário, o “eu diaspórico” de que fala é feito de “fragmentos, lembranças e despojos. Que vamos encontrando, perdendo, reunindo. Aos quais nos agarramos. Estamos em trânsito, e estamos dispersos”.

Há uma ambivalência, no entanto – quase num sentido psicanalítico do termo –, ao longo dos três textos, como se Djaimilia Pereira de Almeida não se conseguisse decidir entre ser uma mulher negra que escreve e uma escritora negra. É uma espécie de dificuldade que permanece irresolúvel, entre uma escritora que poderia esquecer a sua condição feminina e negra e a uma escritora negra à qual se exige “um papel social que, a certo ponto, vai além do ofício de escrever propriamente dito”, a quem se pedem “posições, declarações de princípio, um posicionamento claro sobre as questões do nosso tempo”.

“Um leitor desassombrado tentou certa vez avisar-me, numa livraria lisboeta, para que não me deixasse ser catalogada como «escritora negra». «Isso é literatura de gueto», disse-me, «e o problema da literatura de gueto é que é demasiado limitadora”.

 Ao contrário, portanto, da literatura de gueto, que permaneceria limitada, pobre, a literatura desse “leitor desassombrado” seria universal, diria respeito a todos, cosmopolita. A resposta de Djaimilia Pereira de Almeida é ambígua ou ambivalente: só há literatura de gueto ou, dito de outra forma, não há, nunca houve, literatura de gueto.

“Pergunto-me: não terão um central interesse humano as vidas oriundas das margens? Não terá sido sempre assim na literatura e noutras artes? Estando em Nova Iorque, penso em Jacob Riis. E penso em Walker Evans e James Agee; e em Dorothea Lange; e em Diane Arbus; penso em Chris Killip; penso em Baldwin; penso em Toni Morrison; Ralph Ellison; penso em Jonas Mekas; Penso em Dickens, Dostoiévski, Gogol – será preciso continuar.”

Ao Escritor Universal preocupado com vacuidades como a essência humana, Djaimilia Pereira de Almeida contrapõe a universalidade do escritor que, do gueto, fala a todos. O ponto de vista, então, parece ser este: Djaimilia reclama para si – e não apenas para si – a possibilidade de uma mulher negra fazer parte da tradição que junta Dickens, Dostoievski, Gogol, Mekas, etc.

Há uma dificuldade, ou melhor, uma perplexidade para quem leia estes três textos e que passa pela relação com a língua – e, neste caso em particular, a língua portuguesa. Djaimilia Pereira de Almeida começa por falar de uma “Mila raivosa, cuja língua é maior do que a sua cabeça, do que o seu corpo. Uma menina língua gigante, monstra, língua tornado, língua portuguesa”. Mas acaba, uma vez mais, por se reclamar do famoso dito de Fernando Pessoa: “talvez a minha terra seja, de facto, a língua portuguesa. Ampliar a sua beleza criando nela um espaço para os espíritos e vozes negros: eis, em parte o meu projecto.”. A perplexidade parte de um simples facto: aparentemente, para Djaimilia Pereira de Almeida a língua poderá ser veículo de violência, mas nunca poderá ser violenta. Lembra, aliás, aquilo que Arendt dizia relativamente ao alemão: “O que resta? Resta a língua materna”. Fosse Djaimilia de outras paragens e poderia talvez dizer que entre o alemão de Hölderlin e a linguagem gutural dos nazis não existe nada em comum, tal como se poderá dizer que nada existe em comum entre Camões e os gritos moralistas de certos actores políticos – como agora se costuma dizer. Há outras relações, no entanto, bem mais complexas, e que passam necessariamente por ver na língua a violência que ela transporta enquanto memória: em Portugal, Rui Nunes é talvez aquele que levou mais longe essa ideia de uma língua que se reduz ao comando, à ordem; noutras latitudes, basta lembrar a relação de Kafka ou de Paul Celan com o alemão. Sobre o primeiro, dizia Gilles Deleuze: “impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever em alemão, impossibilidade de escrever de outro modo”. Mais do que um “ódio de si próprio”, necessário para que alguém se torne “um leitor negro ou um escritor negro em qualquer língua ocidental”, talvez fosse necessário um ódio à literatura e à língua ou, pelo menos, uma relação ambígua.

Talvez resida nesta relação à literatura – nessa ideia de que uma mulher negra pode ser herdeira de Dickens ou de Gogol – uma das limitações da própria questão. A resposta de Djaimilia Pereira de Almeida quando perguntada pelo problema de saber se tradutores brancos poderiam traduzir autores negros foi a seguinte: “A ideia de que autores negros não devem ser traduzidos por brancos implica uma posição recíproca inaceitável: a de que, como mulher negra, não me é reconhecida a capacidade (mais ainda, o direito) de traduzir, por exemplo, Rousseau ou Flaubert.”. Nada contra o direito de traduzir Rousseau ou Flaubert – mas talvez a questão possa levar colocada de um ponto de vista mais radical.

Em 1970, Pier Paolo Pasolini estava em África e encontra uma criança Dogon que lhe passa, para as “mãos europeias e coloniais”, um pequeno caderno. Eis o relato que faz:

“E, folheando-o, encontrei alguns poemas… «O Lobo e o Cordeiro» por La Fontaine! Perguntei-lhe se sabia de cor e ele, ultrapassando a sua timidez com um esforço sobre-humano, murmurou um «sim». Pedi-lhe para recitar, coisa que fez com o mesmo esforço simples e sobre-humano. Recitou-o no seu francês particular, como se a fábula não tivesse qualquer sentido e fosse apenas som; quando chegámos a meio de uma passagem, entoou uma espécie de melodia, duas ou três notas cantadas, uma frase musical típica do seu povo.”

Poder-se-ia falar na dissimetria da cena descrita. No entanto, o que interessa é essa relação que a criança Dogon estabelece com La Fontaine, um dos nomes maiores da literatura francesa: a fábula deixa de ter sentido e é agora apenas som, som ao qual acrescenta “uma espécie de melodia, duas ou três notas cantadas”. Dir-se-á, sem dúvida, que a criança reclama para si a possibilidade de ler La Fontaine, da mesma forma que Djaimilia reclama o direito de traduzir Flaubert. Iria mais longe, no entanto, e Pasolini parece ter arriscado mais: La Fontaine escreveu para ela, criança negra, e apenas para ela.

Da mesma forma, que Djaimilia tenha o direito de traduzir Flaubert parece pouco. Seria mais interessante dizer que ela, e só ela, mulher e negra, tem o direito de o traduzir. Que Flaubert só pode ser traduzido na condição de lhe fazer chegar alguma coisa que só uma mulher negra consegue. De o traduzir, mas não só: de cortar, de acrescentar, de retirar o que quer que seja. É preciso que os danados da terra – para aproveitar, modificando, o conhecido título de Fanon – se reclamem de toda a tradição clássica. Mas isso não quer apenas dizer que eles, todos os danados da terra, possam reclamar o seu lugar junto dos grandes nomes da tradição, como se bastasse colocar, junto a Gogol, Flaubert, Tolstoi ou Dickens, um ou outro nome vindo das margens – isso seria manter uma dimensão religiosa, aurática, a circundar todos eles; é a tradição, venerável, universal, do Grande Nome, do Grande Escritor. O gesto pode ser mais radical – e é aqui que o ponto de vista de Djaimilia parece ficar aquém de uma certa fúria incontrolada contra o tempo: é preciso fazer chegar qualquer coisa ao panteão da literatura, tornar todos esses nomes em matéria política. É para isso que aponta, aliás, Furio Jesi, quando fala do teatro proletário de Erwin Piscator:

“O Teatro Proletário não hesitava em colocar em cena textos de autores burgueses; mas os encenadores intervinham neles sem qualquer embaraço, acrescentando episódios, prólogos e epílogos, sublinhando situações e afirmações; fazendo, em suma, do texto «burguês» uma citação utilizável”

É preciso bastante ódio – mas aquele, salutar, que vá contra tudo o que condene a vida à repetição do mesmo –, bastante alegria, para fazer e desfazer todos esses grandes nomes que, por um qualquer acaso, chegaram até nós, para, como as crianças, os usar – sempre com motivos inconfessáveis.

Imaginemos, então: um Platão negro que, no famoso Fédon, diálogo sobre a imortalidade da alma, viesse dos confins de África para tomar o mundo clássico, que defendesse, além daquela passividade com que encara a condenação à morte, uma sublevação de todos os escravos; ou um Dostoiévski suburbano, um Raskólnikov pouco dado a filosofices e a dores de alma, que fugisse com Sónia e com o dinheiro no final – todo ele uma modulação rítmica da língua, um gosto pronunciado por sítios esconsos e carros.