A história do novo aeroporto de Lisboa não é um conto nem uma novela – é um longo romance, com mais de mil páginas.
Começou como todos sabemos no princípio dos anos 70, ou seja, há 50 anos, no tempo de Marcello Caetano. Na altura foi criado um gabinete para o efeito, fizeram-se estudos e escolheu-se Rio Frio como o local apropriado. E julgo que, se não tivesse acontecido o 25 de Abril, o projeto teria andado para a frente.
Depois veio a revolução não se falou mais nisso. Até que começaram os alertas: a Portela estava a rebentar pelas costuras e, se não se construísse rapidamente um novo aeroporto, seria o fim da picada.
Reiniciaram-se então os estudos. Deitou-se fora Rio Frio – que fora decidido no tempo do ‘fascismo’ e portanto não prestava –, ponderaram-se vários locais, e optou-se finalmente pela Ota.
Mas aqui choveram as críticas. Tenho perfeita memória dessa época, porque o SOL liderou o debate sobre o tema. Uma noite, no aceso da polémica, telefonou-me um ex-comandante da TAP que eu conhecia profissionalmente a dizer-me que não valia a pena insistir nas críticas, pois era uma ‘causa perdida’. O local estava decidido e não voltaria para trás.
Quem falava assim chamava-se José Sousa Monteiro – que fora o homem que pilotara o primeiro Jumbo da TAP, o famoso Boeing 747, trazendo-o da fábrica em Washington para Portugal. Tragicamente, não muito tempo depois da nossa conversa morreria num acidente aéreo em Montemor, na descolagem de uma avioneta de recreio, com o seu amigo coronel Costa Martins (capitão de Abril e antigo ministro do Trabalho).
Mas o comandante enganava-se. Cavaco Silva sobrevoou a área da Ota de helicóptero, Belém fez chegar à redação do SOL a notícia de que o Presidente da República discordava do local – e essa foi a gota de água: José Sócrates, apesar da sua conhecida teimosia, recuou. Esqueceu a Ota e encomendou ao LNEC um novo estudo de localização. Surgiu a hipótese da Margem Sul do Tejo, que levaria o ministro dos Transportes, Mário Lino, a afirmar tonitruante: «Na Margem Sul, jamais!» (em francês).
Mas também o ministro se enganava. Foi para aí exatamente que o LNEC apontou – e o SOL foi mais uma vez o primeiro a dar a notícia: Alcochete.
O assunto parecia finalmente resolvido. Porém, ainda não seria desta.
Sócrates demitiu-se, veio a troika, e o Governo de Passos Coelho teve de pensar numa solução mais económica. Surgiu então a Portela+1 (sendo este o Montijo). E apesar de António Costa ter revertido quase todas decisões tomadas pelo antecessor, neste caso isso não aconteceu e a Portela+1 ficou de pé. A ponto de, sete anos passados, em junho de 2022, Pedro Nuno Santos ter vindo anunciar que o aeroporto no Montijo ia finalmente avançar.
Mas também ele estava enganado. António Costa desmentiu-o, obrigando-o a um humilhante pedido de desculpas. Só que, ao mesmo tempo, tomou uma surpreendente decisão: voltar à estaca zero, nomeando uma Comissão Técnica para reequacionar o assunto.
Os estudos antes do 25 de Abril foram para o lixo; os estudos que apontaram a Ota foram deitados fora; o estudo do LNEC (um laboratório de referência a nível internacional) foi desprezado. Era preciso analisar tudo desde o princípio. E depois de muito labor, a comissão concluiu: Alcochete é o melhor sítio. Ou seja: o que o LNEC dissera quinze anos antes!
Agora, Pedro Nuno Santos diz que respeitará esta sugestão – embora ela contrarie em absoluto o que garantiu há apenas um ano e meio. E o PSD ainda tem dúvidas, e adianta que, se ganhar as eleições, nomeará um grupo de trabalho para avaliar o parecer da Comissão Técnica!
Enfim, parece um país de loucos! E quanto disparate ouvi eu dizer ao longo de todo este tempo. Como argumento definitivo contra a Portela, afirmou-se que em parte nenhuma há um aeroporto dentro da área urbana – quando existem por todo o mundo aeroportos encostados a cidades e até rodeados de torres. Lembro-me de aterrar em Hong Kong literalmente no meio de arranha-céus.
E pense-se no seguinte: se o novo aeroporto fosse levantado no deserto, teriam de se construir à volta edifícios relacionados com a atividade aeroportuária. E serviços diversos, como terminais de transportes, alugueres de carros e outros afins. E atrás desses viriam apartamentos para os funcionários. E a seguir hotéis. E tudo isso chamaria gente e novos negócios, investidores imobiliários, e dentro de poucos anos o novo aeroporto estaria rodeado por uma pequena cidade. Aliás, foi isso que aconteceu na Portela: quando o aeroporto nasceu, não existia ali quase nada.
Ao contrário do que se afirma, a localização junto à cidade de Lisboa não é um problema mas uma vantagem competitiva. Por isso arrisco-me a dizer que, mesmo quando o novo aeroporto estiver pronto, o velho aeroporto não será desativado. Como sucedeu com Orly, que não fechou depois da construção do Charles de Gaulle.
Enfim, as mais de mil páginas que o romance do novo aeroporto de Lisboa já leva escritas ainda irão ter acrescentos – e ficarão como exemplo para o mundo de como não deve ser conduzido o processo de criação de um novo aeroporto.