Mário Zagalo. Duas madrugadas com o Velho Lobo

1931-2024  – Morreu o único tetracampeão do mundo de futebol 

No dia 5 de junho de 1995 eu estava em Liverpool, precisamente em Penny Lane, mesmo que não tivesse visto nenhum barbeiro mostrando fotografias de todas as cabeças que tinha conhecido. A seleção brasileira estava em estágio a preparar a sua estreia do Torneio Umbro (chamado de Mundialito) frente ao Japão, no dia seguinte, em Goodison Park, torneio esse que serviu de teste para a organização da fase final do Europeu do ano seguinte, disputado em Inglaterra. Inevitavelmente a música seguiu na minha esteira quando entrei no hotel onde tinha marcado uma entrevista com Edilson, jogador do Benfica: «On the corner is a banker with a motorcar/And little children laugh at him behind his back». Edilson da Silva Ferreira (vejam bem a ironia) era baixinho, usava aparelho nos dentes, e nem de propósito encontrei-o a tocar violão. Confesso que, mais do que falar com Edilson queria mesmo era chegar à fala com Mário Zagallo, na altura de novo no cargo de selecionador. Zagallo pediu-me para esperar por uma hora mais tranquila, depois do jantar, e tivemos a oportunidade de ficarmos longamente à conversa pela madrugada.

Zagallo sempre foi uma figura fascinante para mim. Nascido em Atalaia, Alagoas, a 9 de agosto de 1931, começou por ser uma peça fundamental no Brasil – campeão do mundo de 1958, na Suécia, não apenas porque era um incansável trabalhador numa equipa cheia de artistas, com Pelé e Garrincha a mostrarem-se ao Universo, mas igualmente porque o seu movimento de recuo da ponta-esquerda para o meio campo em ações defensivas deu lugar a uma nuance tática marcante: o 4.2.4 transformava-se no 4.3.3.

Sentado a minha frente, perguntei-lhe para começar: «Afinal você é Zagalo ou Zagallo, com dois L?» E ele: «De há dois meses para cá sou finalmente e oficialmente Zagallo!». E riu-se. Durante anos e anos a fio toda a gente escreveu Zagalo por mais que Zagallo quisesse os dois L. «Há uns tempos dei uma entrevista à Folha de São Paulo e expliquei-lhes, no final, que gostaria muito que parassem de deixar de escrever o meu nome errado. Só aí toda a gente passou a falar de mim como Zagallo. Como vê, demorou muito tempo!».

Mário Jorge Lobo_Zagallo foi campeão do mundo como jogador em 1958 e 1962. Só representou dois clubes durante a sua carreira que durou de 1951 a 1965:_Flamengo e Botafogo. Na altura tinha a alcunha de Formiguinha porque era um chato do pior dentro de campo, sempre a morder as canelas e os calcanhares dos adversários, procurando tirar-lhes a bola para partir de imediato para ações de ataque. Fisicamente era pouco impressionante, mas a sua resistência ia para lá do imaginável. Disse uma vez sobre si próprio e sobre as suas características como jogador: «Com a bola era um ponteiro. Mas também podia ficar e cobrir o Nilton Santos. Sem a bola, eu era o homem que dava vantagem numérica – se a jogada do adversário fosse pelo nosso lado, eu ajudava o Nilton a marcar o ponta. Dois contra um. Se fosse do lado oposto, fechava e ficávamos Zito, Didi e eu. Três contra dois no meio campo». Já o mestre da crónica, Nelson Rodrigues, resumia: «Zagallo está em todos os lugares ao mesmo tempo». Morreu no dia 5 de janeiro (o mesmo dia em que morreu Eusébio), às 23h40, após um longo período de fragilidade que o atirou para uma falência generalizada dos órgãos e não o matou por muito pouco. Por fim, sua resistência foi diminuindo vertiginosamente. Nada de invulgar num homem que chegara aos 92 anos.

No dia 3 de junho de 1997 eu estava em Lyon. Acabara de assistir ao jogo entre a França e o Brasil para o torneio que servia de preparação para a organização do Mundial de 1998, em França. Vi ao vivo o golo de Roberto Carlos que encantou o mundo, de livre direto, pontapé de três dedos, a bola antes de entrar estava para aí um metro desviada do poste, escrevi uma crónica com o título «A bola que mudou de ideias». Nessa noite fui ao hotel da seleção brasileira sacar informações sobre um jogador que o Benfica estava à beira de contratar:_Paulo Nunes. Encontrei Mário Zagallo e perguntei-lhe se podíamos voltar a conversar. A madrugada de dois anos antes, em Liverpool, repetiu-se. Já era o único homem que ganhara quatro campeonatos do mundo: dois como jogador, um como treinador e outro como coordenador técnico. Andava em guerra com a imprensa brasileira, o que não é novidade, mas continuava seguro de que iria levar o Brasil ao penta em 1998: «Vão ter de me engolir!», berrava nas manchetes.

Se algo me fascinou na vida de Mário Zagallo foi a forma como construiu, depois de ter substituído João_Saldanha como selecionador (num episódio de contornos políticos), o Brasil de 1970, para mim a melhor equipa de todos os tempos – e nem sequer discuto! Na frente de ataque encaixou cinco números 10 dos seus respetivos clubes: Jairzinho (Botafogo), Rivellino (Corinthians), Tostão (Cruzeiro), Gerson (São Paulo) e Pelé (Santos). Nada jamais foi tão bonito sobre a verdura de um relvado. Falámos muito. Não ficámos amigos, até porque ele tinha um feitio um bocado, como dizer?, embirrento, mas pude conhecê-lo melhor e perceber como desenvolvera desde o seu tempo de meninice, no América do Rio de Janeiro, uma atitude competitiva que entrava pelos olhos e ouvidos dentro de quem se sentava na sua frente. Deixara há muito de ser o Formiguinha e passara a ser o_Velho Lobo, muitas vezes em caçadas solitárias, fervoroso apreciador do número 13, que para ele significava sorte e não azar, e crente na forma como o sobrenatural podia alterar as condições adversas que lhe surgiam sem avisar. É curioso: agora que penso nele e escrevo sobre a sua morte recente, acho que não voltei a encontrá-lo. Despedimo-nos de forma alegre, com a promessa de que, no ano seguinte, estaríamos juntos de novo, num lugar qualquer de França, durante a fase final do Campeonato do Mundo, e que voltaríamos a repetir mais uma madrugada. Não aconteceu. Numa atitude desprezível e canalha a administração de A_Bola, jornal para o qual trabalhei tantos anos, atropelou a decisão tomada pela direção e pela chefia de redação e vetou a minha ida ao Mundial. Não houve justificação nem eu precisava dela: batia-me nesse tempo pela perda continuada dos direitos dos jornalistas daquela que foi uma instituição única deste país. Vinte e seis anos depois a destruição completa e macabra do jornal deu-me razão. Duas madrugadas com Mário Zagallo não fizeram de nós compinchas. Mas o seu desaparecimento devolveu-me memórias de um tempo que já não há.