Em dezembro o Governo lançou o concurso para o preenchimento de 924 vagas na área de medicina geral e familiar e apenas 143 concorreram, tendo sido todos admitidos. Ou seja, apenas 15,5 por cento das vagas foram preenchidas. No entanto, destes 143 médicos, 29 acabaram por desistir. Conforme a tabela das colocações a que o Nascer do SOL teve acesso, apenas foram colocados 114 e o número pode continuar a descer se existirem mais desistências nos próximos dias até à assinatura do contrato que torna a vinculação efetiva. O que é previsível. Apesar de todos poderem concorrer, estas vagas são dirigidas aos profissionais que terminaram a especialidade na segunda época do ano. Nuno Jacinto presidente da Associação Médica Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), diz que mais do que as vagas que ficaram por preencher, «aquilo que é verdadeiramente preocupante é os 20 por cento que desistiram», afirmou ao Nascer do SOL. E adverte: «Se daqui a uns meses ou um ano formos ver se os que ficaram ainda lá estão, podemos ter uma desagradável surpresa». O presidente desta associação admite que já se esperava uma adesão fraca, uma vez que este é o segundo concurso do ano. Além disso justifica esta desproporção entre as vagas e as admissões porque o Ministério da Saúde tem optado por pôr todas as vagas a concurso, ao contrário do que se fazia em anos anteriores em que os concursos ofereciam menos lugares e «sem critério». Esta alteração procedimental tem dois pontos positivos, no entender deste médico. O primeiro é a clareza: «O Governo assume a realidade, as necessidades que efetivamente existem». O segundo é que concede a estes profissionais de saúde «a possibilidade de escolherem a vaga que quiserem». Também no primeiro concurso deste ano, em maio, o Governo colocou 900 vagas e menos de metade, 40 por cento, foram preenchidas.
A grande preocupação prende-se com a falta de adesão dos médicos de família ao Serviço Nacional de Saúde e no entender do presidente da associação, existem vários fatores que a justificam. E todos eles se prendem com a «desvalorização destes profissionais», diz Nuno Jacinto. Houve a convicção de que os médicos de família que saíam da especialidade iriam ficar no SNS e substituiriam a enorme quantidade de médicos que se reformaram tal como era expectável. Mas isso não aconteceu. As reformas criaram um buraco que não consegue ser preenchido. Muitos dos novos médicos optaram pelo setor privado e a sangria nos cuidados de saúde primários no país revelou-se num dos principais problemas crónicos do SNS. As necessidades que surgiram durante a pandemia vieram agravar ainda mais a situação. «Servimos para tudo e o nosso trabalho não foi valorizado». Desde os ordenados, à carreira médica, passando pelas condições de trabalho, há todo um trabalho que deve ser feito para aliciar estes profissionais. «Enquanto isso não acontecer, iremos continuar a assistir a este défice», garante o presidente da APMGF. E acrescenta que «os recém-formados consideram o SNS pouco atrativo e procuram outras opções». A realidade é que dos 500 médicos que se formam por ano nesta especialidade, são poucos os que hoje escolhem o setor público.
Em relação aos vencimentos, Nuno Jacinto não acredita que a nova reforma do SNS e a criação das Unidades Locais de Saúde (ULS) vá resolver a situação. A generalização do Modelo B, em que os médicos passam a ter a remuneração associada ao seu desempenho, não vai mudar nada. Além de considerar o modelo perigoso, uma vez que se associa esse desempenho à prescrição de medicamentos, por exemplo, o mais provável é que os médicos não consigam atingir os objetivos definidos nestas unidades Modelo B, adverte este médico. Outra questão prende-se com a condições de trabalho. A centralização e a falta de autonomia que o novo modelo organizacional das novas Unidades Locais de Saúde estabelecem, «centralizam a nossa atuação e são muito rígidos», afirmou. O que faz com que as equipas não se consigam organizar de forma a irem de encontro às necessidades dos profissionais. Também «os sistemas de informação, a burocracia e os equipamentos desatualizados, não ajudam», garante.
A realidade atual é que existem 1.724.859 portugueses sem médico de família atribuído. Sendo que em 2016 esse número era de 1 milhão – menos cerca de 700 mil. Sendo que dos 15 centros de saúde sem médico de família em Portugal, 14 são da região de Lisboa e Vale do Tejo. «Se existe falta de médicos de família, tudo o resto falha», garante Nuno Jacinto. O facto de pelo menos 20 por cento dos médicos colocados no último concurso desistirem «é muito preocupante, além de ser um número significativo, é um sinal de que a tendência continua a ser a mesma», sublinha. Ou seja, que o SNS passe a ser a última escolha.