A paixão entre professores e estudantes. O que é ‘certo’ e ‘errado’?

Talvez o relacionamento entre um professor e um aluno mais conhecido seja o de Emmanuel Macron e BrigitteTrogneux. No entanto, há muitos outros casos. Desde aqueles que correram bem, passando por aqueles que não vingaram e por outros que tiveram um percurso acidentado.

“Corria o ano de 2002 e eu estava no quarto ano do curso de Comunicação de uma universidade privada, em Lisboa. Frequentava o curso em horário pós-laboral, tinha escolhido a vertente de investigação em comunicação e cultura e ele, com quem, até agora, vivi a relação mais significativa da minha vida, era um dos docentes dessa especialização”, começa por contar Ana (nome fictício), de 43 anos. “Nunca nos tínhamos cruzado antes. Lembro-me de chegar uns minutos atrasada à primeira aula e de sentir de imediato uma cumplicidade incomum assim que entrei e o encarei, com um ‘Boa noite’ e um pedido de desculpas à pressa. Não imaginei sequer que este ‘clima’ pudesse ter transparecido aos olhos de mais alguém, até que, semanas depois, o episódio foi alvo de brincadeira num jantar em casa de uma amiga e colega de curso”.

“Recordo de ficarmos a conversar depois do fim das aulas sobre os temas da cadeira, como arte, cultura, literatura, cinema, dança, e de a simpatia mútua ir crescendo, a minha admiração por ele também, e a curiosidade… E numa dessas noites de conversa tardia, já a universidade tinha fechado, acabei por lhe dar boleia para casa. Trocámos contactos (o uso de email era relativamente recente e a generalidade dos telemóveis ainda era tijolo-móvel, sem internet nem SMS…). Escrevíamo-nos muito, ele emprestava-me livros e CD, eu enviava-lhe poesia e músicas crioulas, numa altura em que andava à descoberta da minha raiz afrodescendente”, explica, adiantando que é mais nova 22 anos do que o professor e, por isso, “não equacionava um envolvimento para lá do platónico”.

As saudades de estar um com o outro

“Era pouco madura e pouco experiente (vinda de uma família tradicional, com alguns valores assentes numa moral mais rígida) mas a proximidade e o facto de nos sentirmos bem juntos, tornou o relacionamento inevitável. E a verdade é que tínhamos sempre muitas saudades e vontade de estar um com o outro, a diferença de idades diluía-se nos vários assuntos que partilhávamos e ele mostrava uma jovialidade extraordinária, nunca foi paternalista. E como eu gostava de estudar, empenhava-me. Quando a cadeira chegou ao fim, em simultâneo com o curso, não fui beneficiada nem punida na avaliação”, clarifica Ana. “Acontece que nos encontrámos numa fase em que eu tinha tudo pela frente, vivia livre, leve e solta, mas ele não. Acabou por me contar que estava prestes a ser pai de uma relação que não tinha vingado. Mantivemo-nos próximos, a criança nasceu, mas a nossa relação foi-se modificando. A paternidade tomou-lhe o tempo, deixámos de ser só nós a viver um para o outro numa bolha irrealista, e a mãe da filha foi conquistando território. Eles juntaram-se. E nós afastámo-nos”.

O sentimento do futuro frustrado

“Durante os 18 anos seguintes mantivemos contacto, ora mais frequente, ora mais intermitentemente. Combinámos um café um par de vezes, envolvemo-nos. E concluímos que nestas quase duas décadas gostámos sempre muito um do outro, nunca nos esquecemos, como se diz nos filmes, sempre com a sensação de futuro frustrado de ‘como teria sido se…’. Fui mãe, tive 3 filhos, segui a minha vida. Mas quando recebo uma mensagem dele estremeço. Afinal, o corpo (e o coração) têm boa memória”, desabafa, sendo que chegou mesmo a ficar grávida do professor e a recorrer à interrupção voluntária da gravidez.

O caso de Ana espelha o envolvimento entre professores e estudantes no Ensino Superior. A verdade é que os relacionamentos amorosos entre professores e estudantes no Ensino Superior são geralmente desencorajados e muitas instituições de ensino possuem políticas estritas em relação a esse tipo de envolvimento. A razão principal para essa desaprovação, explica o psicólogo clínico Ricardo Pinto, que tem o seu espaço em Braga, “é a preocupação ética e o potencial para conflitos de interesse, abuso de poder e exploração. Os professores têm uma posição de autoridade sobre os estudantes, o que cria uma desigualdade de poder significativa. Essa disparidade pode levar a situações em que o consentimento não é verdadeiramente livre, devido à influência que o professor exerce sobre o estudante”.

“Por outro lado, os relacionamentos românticos podem criar conflitos de interesse, especialmente quando o professor tem responsabilidades de avaliação ou supervisão sobre o estudante. A imparcialidade e a objetividade nessas situações podem ser comprometidas. Também há preocupações éticas sobre o potencial para exploração emocional ou sexual, especialmente quando há uma grande diferença de idade ou experiência entre o professor e o estudante. Muitas instituições de ensino superior têm políticas claras que proíbem ou desencorajam explicitamente relacionamentos românticos ou sexuais entre professores e estudantes. Violações dessas políticas podem resultar em medidas disciplinares, incluindo demissão do corpo docente”, observa o profissional.

“A proibição desses relacionamentos é muitas vezes parte de medidas mais amplas para prevenir o assédio sexual e criar um ambiente académico seguro. As políticas sobre esse assunto podem variar entre instituições e, em alguns casos, entre países. Algumas instituições podem permitir relacionamentos entre professores e estudantes, desde que não haja supervisão direta ou avaliação envolvida”.

“Na componente dos estudantes, a perspetiva psicológica obviamente cai muito naqueles aspectos gerais de que toda a gente fala. Ansiedade, autoestima e valorização pessoal, sem dúvida. Porquê? Porque tem tudo a ver com a dinâmica, com a relação, não é? A relação, interação professor-estudante, excluindo aqui a componente romântica, é sempre uma conjugação de… eu não quero dizer superioridade, porque não é isso, mas há sempre a dinâmica de existência de uma hierarquia. Assumindo que ela se mantém, o aluno pode muito bem cair numa componente de ‘eu tenho que receber e eu não posso responder’. Por exemplo, se há uma situação que tem de ser falada, acaba por haver uma mistura. Pode haver até uma certa manipulação por parte do docente”, diz Ricardo Pinto. “Por outro lado, o docente pode desvalorizar-se e também é possível que o estudante fique numa posição de poder”.

Gago e com sentido de humor sarcástico

Mas o coração não tem em conta estas coisas e, por isso, também Patrícia (nome fictício) se apaixonou por um professor, só que ela tinha 22 anos e ele 27, eram apenas cinco anos de diferença. “Ele foi substituir uma professora minha e, logo na primeira aula que deu, achei-lhe piada. Era gago e tinha um sentido de humor um bocado para o sarcástico. No entanto, achei que era daqueles assistentes que mantinham os alunos à distância e de quem ninguém se aproximava. Acabava por me encontrar com ele em todos os corredores da faculdade. Quando ele ia a entrar, eu ia a sair e, curiosamente, encontrávamo-nos sempre! Já tínhamos mais ou menos ali o nosso ritmo”, explica, recordando aquilo que aconteceu.

Certo dia, Patrícia foi estagiar para o escritório onde João (nome fictício) trabalhava. Por recomendação dele, mas só o viria a saber depois. Só que o clima tornou-se insuportável entre os dois, de muita tensão, depois de João ter tentado beijá-la e de esta não ter correspondido por medo. “Nunca voltei a apaixonar-me desta forma. Ele iluminava o meu dia. Entretanto, casou-se, divorciou-se, casou-se uma segunda vez, tem filhos… Mas não houve nada entre nós e, muito francamente, acho que as coisas ficaram melhor assim. Fico com boas recordações e, se calhar, não as teria se tivesse havido algo mais”, conta. “Acima de tudo, ele era um grande desafio para mim. Nunca gostei de coisas fáceis. Mas amava-o tanto, tanto, tanto. Queria tanto que tudo tivesse sido perfeito. Ele é uma memória reconfortante. Um porto seguro, sinto-me aconchegada quando penso nele”. “Começou a haver um certo ambiente… Um bocado pesado em termos profissionais. Mas, lá está, isso foi um episódio. Para mim, o que conta é o global. E o global foi bom, e deixou-me boas recordações, e fez-me crescer, e mostrou-me um sentimento maravilhoso, que nunca mais vou voltar a sentir”, finaliza.

O posicionamento das universidades

No início da semana passada, o Instituto Politécnico do Porto (IPP) decidiu que vai despedir um docente e suspender outros dois, por 200 e 90 dias, na sequência de processos disciplinares motivados por denúncias de assédio, em abril do ano passado. “Após a conclusão do devido procedimento disciplinar, considerando as conclusões dos mesmos, os instrutores dos processos propuseram a pena de despedimento para um dos visados e a suspensão para os restantes docentes, por 200 e 90 dias”, lê-se num comunicado divulgado pelo IPP. Os casos, “em função dos factos provados”, foram comunicados ao Ministério Público, “tendo em vista a devida e legal análise por parte das entidades judiciárias”, informou ainda a instituição. Importa referir que os docentes em causa já tinham sido suspensos preventivamente em abril, na sequência de queixas recebidas no dia 18 daquele mês.

Já em abril de 2022, no espaço de apenas 11 dias, depois de ter aberto um canal para receber denúncias de assédio e discriminação, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa recebeu 50 queixas, relativas a 10% dos professores. Segundo o Diário de Notícias (DN), jornal que deu a conhecer esta informação, sete dos 31 professores alvo de queixa correspondem a mais de metade dos relatos.  Assim, de acordo com o canal aberto pela instituição de Ensino Superior, foram rececionadas 29 queixas de assédio moral e 22 de assédio sexual, entre outras de variados carizes. Importa também referir que foram verificadas denúncias de práticas discriminatórias de sexismo, xenofobia/racismo e homofobia. Simplificando, podemos concluir que foram recebidas 70 denúncias e, destas, 50 dizem respeito a 31 docentes. Sete destes têm mais de metade das queixas e há um com nove e dois com cinco. A Ordem dos Advogados escolheu Rogério Alves, antigo bastonário, para acompanhar alunos, docentes e funcionários que queiram recorrer ao gabinete de apoio às vítimas de assédio e discriminação na FDUL.

Antes, várias alunas que frequentam ou frequentaram o Campus de Gualtar da Universidade do Minho recorreram às redes sociais para denunciarem as tentativas de abuso e importunação sexuais das quais têm vindo a ser alvo desde 2008, tendo surgido o Movimento de Denúncia de Casos de Violência na Universidade do Minho sob o lema “Não nos calarão!”. Nessa altura, o i teve a oportunidade com as estudantes Ana Amaral (Sociologia, 19 anos) e Carlota da Silva (Filosofia, 20 anos), que criaram a conta de Instagram @denuncia.uminho, por meio da qual partilharam mais de 100 denúncias. “Nenhuma das porta-vozes sente que tem algo a relatar. No entanto ‘nós’ somos um coletivo de centenas de estudantes e este movimento iniciou com a indignação de todos nós perante vários relatos (que estão de livre acesso na conta de instagram (”@denuncias.uminho”) sendo que muitas das vitimas se identificam claramente com a causa”, contaram ao i, explicando que “deste movimento começou por parte de centenas de alunos em resposta a dois casos específicos de assédio”.

A controvérsia e os casos famosos

Em ‘O que há de errado com sexo entre professores e alunos? Não é aquilo que pensa’, a filósofa Amia Srinivasan escreve: “O problema, eu acho, com muitos relacionamentos professor-aluno não é que eles não envolvam consentimento – ou mesmo amor romântico real. Às vezes, sem dúvida, os estudantes concordam em fazer sexo com os seus professores porque têm medo do que acontecerá se não o fizerem. Mas também há muitos estudantes que consentem com o sexo com os seus professores por desejo genuíno. Como os defensores das relações professor-aluno gostam de nos lembrar, muitos professores são casados com ex-alunos (como se estivéssemos numa comédia shakespeariana, em que tudo que termina em casamento termina bem). Não é se o consentimento genuíno ou o verdadeiro amor romântico é possível entre professores e alunos. Em vez disso, é se, quando os professores dormem ou namoram com os seus alunos, o verdadeiro ensino é possível”, questiona a autora.

“Os professores, como professores, entendem como fazer certas coisas; os alunos, como alunos, querem entender como fazer essas coisas. A promessa tácita da sala de aula é que o professor trabalhará para conferir ao aluno alguns dos seus conhecimentos e compreensão. Na melhor das hipóteses, a relação professor-aluno desperta no aluno um forte desejo, uma sensação de paixão emocionada, embora incipiente. Esse desejo é a força vital da sala de aula, e é dever do professor nutri-lo e direcioná-lo para o seu próprio objeto: a aprendizagem. O professor que permite que o desejo do seu aluno se estabeleça nele como objeto, ou o professor que ativamente se torna objeto do seu desejo, falhou no seu papel de professor”, acrescenta Amia Srinivasan.

Apesar de não existirem estatísticas sobre quantos alunos são casados com professores, existem variados casos conhecidos através dos media. É o caso do casal Macron. Conheceram-se ainda Macron tinha 15 anos, e desde logo o aluno e professora mantiveram uma relação “demasiado próxima” aos olhos dos pais. Mais tarde, Brigitte Trogneux, já então professora de teatro e com 42 anos, viu Emmanuel Macron e os seus 18 anos prometerem-lhe que um dia iriam casar. Volvidos 11 anos, aos 29 de Macron, a história viu o final desejado pelo jovem Emmanuel, assinando o contrato matrimonial com a então divorciada Brigitte de 54 anos. O Presidente francês declarou numa entrevista que a família é a base da sua vida. “Ela tinha três filhos e um marido. Quanto a mim, era apenas um estudante. Ela não me amava por aquilo que eu tinha ou por interesse. Pelo conforto ou segurança que eu lhe dava. Ela desistiu de tudo por mim. A nossa família é a minha base, o meu rochedo. A nossa história ensinou-nos que uma vontade tenaz não pode ceder ao conformismo”.

Mas nem tudo corre sempre bem. Audrey e Georgia Fualaau não consideram Mary Kay Letourneau Fualaau e Vili Fualaau diferentes de quaisquer outros pais, disse Barbara Walters, da ABC. O casal, porém, começou a relacionar-se quando Fualaau tinha apenas 12 anos e Letourneau era sua professora. “Elas não se incomodam. Acham que são a mamã e o papá e que tudo está bem”, disse a jornalista quando Audrey tinha 17 anos e Geórgia 16 que, no entanto, sabem da polémica em redor do relacionamento dos pais mas, pelos vistos, sentem-se “indiferentes” relativamente àquilo que se passou. Aquando da entrevista, as adolescentes já eram mais velhas do que o pai quando o famoso caso começou. Quando o casal se conheceu, Fualaau era um menino de 7 anos da turma de Letourneau. Em 1996, quando Fualaau estava novamente numa turma sua, no sexto ano, os dois começaram o caso. À época, Letourneau era casada e tinha quatro filhos.

O caso tornou-se público depois de Letourneau ter engravidado de Audrey. Foi acusada de duas acusações de abuso sexual infantil em segundo grau. Declarou-se culpada e foi para a prisão. Depois de cumprir alguns meses, estava em liberdade condicional. Foi novamente encontrada com Fualaau e mandada de volta para a prisão. Deu à luz a segunda filha do casal, Georgia, atrás das grades. Letourneau foi libertada da prisão em agosto de 2004 e casou-se com o ex-aluno dez meses depois. “Há uma história que tem vida própria, mas não é a nossa história”, disse Letourneau sobre a atenção nacional que receberam. Fualaau refletiu sobre tudo o que viveu enquanto jovem, dizendo que não recebeu apoio adequado como pai adolescente. “Gostaria de ter tido uma orientação um pouco melhor em tudo”, disse. “Foi realmente confuso para mim”. Estiveram juntos até Letourneau morrer, com cancro, em julho de 2020.