Embora a sensatez sugira cautela quando à facilidade sedutora das generalizações, que transforma cada caso num exemplo e cada ocorrência em mais um episódio de teste a uma certa visão do mundo, a verdade é que se tornou impossível, por força das circunstâncias, escrever sobre este romance sem primeiro desenhar, esquadrinhando-a, a grande onda que o precedeu. Há, para fenómenos como Misericórdia, um efeito de sismo prévio, de que a leitura ela mesma se arrisca a ser somente uma réplica, um movimento fraco e deturpado, rasurado que foi, à partida, o potencial esclarecedor de um contacto sem premissas. Apresentando com antecedência o livro, em instâncias várias, como inevitável, o romance obrigatório de 2023, aquele que era preciso ler para podermos captar com alma a realidade, a lenda de Misericórdia precede em vários meses o aparecimento físico da obra. Daquela constavam factos a que ninguém com a mínima consciência moral podia torcer o nariz: que o livro nascia de um pedido da mãe da autora, feito antes da morte; que a narrativa versava a condição nefasta em que vivem os idosos nos lares; que a história continha um testemunho irrecusável de sofrimento, a que nenhum leitor com coração poderia ficar imune. Recordemos o estado do mundo e do país: saíamos de uma pandemia, durante a qual tínhamos deixado os nossos velhos morrer em lares, isolados de contactos e de cuidados, em muitos casos sem perceberem sequer a natureza do que os afastava dos familiares e os tomava como alvo muito específico. O livro sai, portanto, sob um exigente pacto de culpa, que é o do Ocidente perante a velhice, a que se juntava o particular remorso causado pelo confinamento. A imposição de uma narrativa externa à mecânica estritamente literária impedia já que o leitor abrisse o livro sem se sentir avisado de que qualquer recuo de gosto representaria uma desatenção afectiva – não um desencontro com um texto, mas com uma imagem sentimental a exigir uma resposta peremptória e afirmativa, uma espécie de abraço irrecusável. Depois, quando a obra veio ao mundo e se lançou numa corrida indómita de prémios, a atenção da imprensa e da mais ou menos destroçada comunidade literária nacional passou a debruçar-se sobretudo sobre o palmarés. Ao primeiro franzir de sobrancelhas, de alguns, quanto à unanimidade das medalhas, vieram logo outros descansá-los com o título internacional, por isso incontestável e devolvendo qualquer reacção menos pura para aquilo que já não era apenas um descaso da sensibilidade, mas um pecado capital: a inveja.
Com isto, ainda ninguém tinha lido o livro. É curioso que mesmo hoje não abundem recensões, não havendo, contudo, míngua de notícias sobre sucessos caseiros e além-fronteiras, debruadas a aplausos práticos por gente das letras, não fosse ficar a suspeita de que os incomodava qualquer refluxo ácido. Não é de estranhar, a raridade de incursões. É este um dos casos em que o espaço da crítica foi morto à nascença ou, na verdade, antes que viesse à luz o objecto a que era suposto dedicar-se, porque o estreito beco onde se aloja se viu de véspera ocupado por um discurso absoluto, uma espécie de nó górdio lógico que, a não ser intencional foi, sem dúvida, muito bem achado. Depois de anúncios, prémios e ditirambos de quadrantes próximos, o que podem a crítica ou o jornalismo literário dizer, que não chegue já como uma simples reacção, um esbracejar? Poderia quem escreve a recensão produzir algo que, elogiando, não soasse a redundante adulação, ou, apontando falhas, não parecesse logo um acesso de oposicionismo gratuito? Contudo, o livro aí está, e às tantas torna-se necessário falar dele. O que talvez se possa fazer, e tentaremos, é aquilo que nos ensinaram nas primeiras visitas à praia: enfrentar a rebentação mergulhando através da onda, para que do outro lado encontremos a superfície inicial e limpa, necessária a uma calma reflexão. Porque até agora tudo o que tem acontecido é virmos enrolados pela vaga prévia, aos trambolhões até à areia de partida. Cuspamo-la, à duna que nos entrou para os dentes, e lancemo-nos outra vez.
O romance, afinal, nada fala da pandemia. Escrita na primeira pessoa, em estilo mais ou menos testemunhal, ambientada num lar de classe alta (a descrição não passa sequer pela média financeira dos lares lusos, atolados, como sabemos, em problemas bem mais graves que os que vão sendo contados no romance), a narrativa toma como protagonista o duplo literário da mãe da escritora (identificável logo pelas pegadas que os anúncios haviam deixado na areia), uma idosa mais ou menos incapacitada, cujas corajosas tentativas de manter o orgulho à tona incluem designar por charrete a cadeira de rodas em que se faz transportar. A idosa tem uma filha, que anda sempre em viagem e é escritora, com a qual mantém uma relação semi-conflituosa, que é o modo de trazer à história um pouco de mau feitio. Foi feita para contrastar, esta tensão edipiana, pois em tudo o resto Dona Alberti, ou Maria Alberta (assim se chama a protagonista e narradora do livro) demonstra uma rectidão, amplitude de princípios e ausência de preconceitos que a elevariam ao grau maior da santidade, não fosse haver neste país católico outras tantas candidatas a mártir. Pelo lar passam, para além de uma infestação de formigas, múltiplos ecos do mundo exterior, trazidos por funcionários e auxiliares, incluindo problemas migratórios, preconceitos de género e orientação sexual e o mal da gravidez na adolescência. Os locatários da instituição têm também uma narrativa a dar, aparecendo para apontar questões como misoginia, desejo sexual em idade avançada e a praga do analfabetismo. Presente também essa sempre fiel companheira da velhice, a morte, disponível para levar de supetão, com efeito dramático, as pessoas mais amáveis. Não falha informação real ao romance, que aliás mostra pormenores reconhecíveis por quem lide com lares, seja em que posição se encontre: detalhes há que são bem captados, como as dificuldades do período nocturno (assustador tanto para crianças como para velhos e mais ou menos pelas mesmas razões) ou a tendência, nas instituições, para a sobredosagem medicamentosa como modo de prevenir alvoroços. Mas ter ingredientes não basta.
O leitor talvez já tenha percebido por onde nos encaminhámos: este é um livro de intenções. Todas boas: os temas que a história adentra, levada pelos pés, bengalas (algumas terminando em ganchorras) e rodas dos seus personagens, são todos importantes e constituem questões sociais estimáveis. Mas os temas nunca salvaram sozinhos uma obra e este livro não é excepção. Por um lado, porque o romance em causa não é necessário à explicitação daqueles. Já os conhecíamos, aos temas, como entes sociais que somos e também como vítimas da dita onda prévia, de que o enredo do livro parece, às tantas, apenas uma detalhada extensão. Por outro, porque a obra se apresenta como romance e no romance o que conta menos são as intenções. Num romance não é suficiente (aliás nem é necessário) que narrativa e personagens nos levem de mão dada pelos caminhos do bem, notando em tom mais ou menos gritado as injustiças do mundo – mesmo que o segmento terreno apresentado reporte ao modo algo cruento com que tratamos os nossos velhos, depois de termos destruído o conceito de comunidade, segmentando-o em parcelas cada vez menores e acabando por, à custa de querermos incluir todos por razões específicas, excluirmos muitos por razões gerais. O romance há-de ser mais do que isso e embora isso, que o romance quer ser, não seja objectivável à partida (nas intenções), mas o efeito de um tactear que demora a eleger a forma pretendida, não nos podemos contentar com menos. É aí, não do lado do bem, mas do lado da literatura, que Misericórdia falha. Nem é tanto porque o lar não seja representativo do mal social que pretende discutir (mas a sua versão topo de gama, por assim dizer). Ou porque a linguagem perca o tom retórico algo kitsch habitual na autora, para se adaptar à neo-linearidade que vai tirando sal ao estilo de muitos dos autores mais novos (acabando por entrar numa terra de ninguém, onde não há nem a gravidade antiga, que sempre nos ancorava, nem a rapidez moderna, que serviria para avançar no texto). Ou porque as voltas do enredo se enrolem com demasiada estreiteza à lista de assuntos sociais de que pretende encarregar-se. Não é pelos erros mais óbvios que o romance falha, embora estes sobrepujem o interesse de alguns sucessos. Mas porque falta tom, ligação, densidade, ritmo, veracidade, imaginação e música. Talvez a empregada emigrante, em cuja juvenil inocência sexual a protagonista se revê, consiga alguma espessura, mas a restantes personagens nunca perdem o ar de títeres, incluindo a idosa central, o genro descontraído e a sua etérea filha (a quem aquela pede que escreva, de uma vez por todas, algo que seja simples e fale do mundo real, ao que a escritora, pelos vistos, terá respondido com a presente obra). As sucessivas humilhações a que são sujeitos os habitantes do lar falham em nos comover porque nunca chegam a ganhar o peso que prometiam. Desilude o esquematismo de certas soluções narrativas, como a obsessão da protagonista por recordar o nome de países estranhos, inventada para introduzir o tema da memória, e a utilização de acrescentos poéticos em final de capítulo, produzidos pelo bondosa vítima, confrange. No final perde-se o que, não sendo uma ideia abordada de novo, não deixaria de ser um nó ficcional interessante, se tivesse aproveitado com arte essa tensão entre a culpa do abandono, os movimentos do orgulho e da identidade e todas as repetidas ofensas que a idade comporta. Se quiséssemos terminar em tom jocoso, diríamos que o título do romance acaba por se apresentar com um sentido pelo menos duplo: por um lado a identificação de um grito geracional (o dos velhos, representados pela protagonista), por outro uma apelação prévia à indulgência do leitor.