José Correia Azevedo. Um Enfermeiro e um Homem exemplar

1937-2024. Portugal fica mais pobre com o seu desaparecimento

Entre as inúmeras frases famosas de Winston Churchill tomo a liberdade de adaptar uma, sobre a defesa da Inglaterra pela Royal Air Force, «nunca tantos deveram tanto a tão poucos». Porque se aplica perfeitamente a um compatriota nosso que nos deixou estes dias, José Correia Azevedo. O nome poderá não ser muito familiar à generalidade dos nossos concidadãos, mas não há nenhum profissional da área da saúde em Portugal, muito menos existe um único enfermeiro que, nas últimas cinco décadas, não tenha plena consciência de quanto a sua classe lhe deve. Aqui a frase será “nunca tantos (enfermeiros) deveram tanto a um único (colega)!

Concluiu o Curso de Enfermagem Geral em 1962, e posteriormente as Secções de Chefia de Administração e a de Ensino do Curso de Enfermagem Complementar. Cedo, porém, toma consciência dos problemas da classe e abraça a luta sindical.

É esta personagem singular que em 1969 perde a eleição para a Presidência do Sindicato dos Enfermeiros do Norte. Mas tendo em consideração o seu empenhamento e a solidês das suas ideias, democrata de sempre logo enceta uma estreita colaboração com a equipa vencedora. Em 1972 é eleito Presidente da Assembleia Geral do Sindicato. Não é gralha, foi mesmo antes do 25 de Abril de 1974. Logo a seguir à Revolução assume a chefia da Comissão da Direção ad hoc do Sindicato, sendo eleito pela primeira vez no ano seguinte. Venceu depois, ininterruptamente, as eleições para a Presidência do Sindicato, função que exerceu durante 46 anos, até Maio de 2021, quando um problema de saúde o impediu de continuar.

Ainda em 1974 é um fundadores do PPD, Partido em que sempre militou, foi figura proeminente dos Trabalhadores Social Democratas e, durante décadas, membro de sucessivas direções da UGT.

Foi um dos promotores da famosa greve geral da enfermagem de  Março de 1976, cujo sucesso obriga o Governo de então a decretar a requisição civil. A verdade é que aí começou uma nova visão e perceção, pela opinião pública, da importância e papel fundamental dos enfermeiros no sistema de saúde.

Homem frontal, rígido e coerente, como bom transmontano que era, eram as suas qualidades humanas e capacidade de diálogo e compromisso que mereceram a aprovação e o reconhecimento dos seus pares. Humanista sensível aos problemas dos utentes, estudioso da problemática da saúde, não é de estranhar, portanto, que tenha participado ativa e profundamente na elaboração de toda a legislação referente à saúde e, essencialmente, à enfermagem no Portugal de Abril durante mais de 40 anos.

A valorização das carreiras profissionais, o estímulo da especialização e do ensino permanente, a merecida dignificação da profissão quer em termos pecuniários quer sociais, foram sempre os pilares que orientaram a sua vivência diária.

Por isso merece referência um detalhe importante da sua vida. Com as Carreiras instituídas era tempo de a Enfermagem, tal como nos outros países da União Europeia, ser equiparada a licenciatura. E o José Azevedo queria, justamente, encarnar essa luta. Mas num país conservador e elitista, logo percebeu que iria ser acusado de ‘querer ser Dr.’. Como contornar a questão? Tirou a licenciatura em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto! Já não seria pela merecida promoção de toda a classe que seria licenciado, já o era! Lutaria pelo merecido por toda a classe. Fez ainda o Mestrado em Teologia Ética da Saúde na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica de Lisboa.

Se as suas capacidades oratórias e apurada dialética já o tornavam um tribuno exaltante, perspicaz e temido pelos opositores, essa nova experiência académica fizeram-no ainda mais incisivo e brilhante.

Altura de mencionar, entre as muitas merecidas homenagens que recebeu, a atribuição em 2016 pela Escola Superior de Enfermagem do Porto do ‘Coração de Ouro’. Poucas designações traduzem tão fielmente a personalidade e caráter do Enfermeiro Azevedo.

E porque falamos de condecorações, bom saber que o Presidente da República manifestou o seu pesar não só pelo seu desaparecimento como por não o ter agraciado em vida, querendo no entanto testemunhar o exemplar civismo e contribuição do José Azevedo para a Sociedade Portuguesa.

Tive o enorme  privilégio de ter tido o Zé Azevedo como um dos meus maiores e mais próximos Amigos. Conhecemo-nos em 1980, quando fui Chefe de Gabinete do Secretário de Estado da Saúde, Paulo Mendo. Sabendo sempre qual o papel de cada um, seja na defesa do interesse da Comunidade ou dos interesses  profissionais da Classe, trabalhamos juntos num grupo restrito de dirigentes da Administração Pública na área da saúde e dirigentes dos outros Sindicatos de Enfermagem para elaborar o Decreto Lei 305/81, de 12 de Novembro, com a nova carreira de enfermagem.

Um diploma que garantia a prestação de melhores cuidados de enfermagem, o maior aproveitamento dos recursos humanos existentes e a eficiência dos serviços, e melhorava as perspetivas de realização e progressão profissionais.

Dessa colaboração nasceu uma estreita, inabalável e bem sólida amizade. E estarei eternamente agradecido por tudo o que aprendi com o Azevedo todos estes anos, o ter beneficiado sempre do seu conselho avisado, o prazer que sempre constituíram as centenas, milhares de encontros e as edificantes tertúlias que desfrutamos. A que junto as leituras dos instrutivos e construtivos editoriais do Ecos da Enfermagem.

Um Homem com H grande, que deixa sentidas saudades entre os seus familiares e amigos, e que deixa Obra. Obra intelectual, obra sindical, um enorme património seja no Sindicato no Porto ou na Casa do Enfermeiro em Gaia.

Poucos deixam uma marca tão importante na sua passagem terrena. O Enfermeiro José Correia Azevedo deixa Portugal bem mais pobre, tal o valor do seu legado tão positivo e duradouro, fruto da sua dedicação, capacidade de trabalho e defesa do bem público. Não há insubstituíveis, mas que falta ele nos faz! l

Mário David, Médico