Presidente da República Argentina há pouco mais de um mês, Javier Milei tem trabalhado para implementar as reformas prometidas e, na verdade, ainda que no curto espaço de um mês e meio, alguns resultados já começam a ser visíveis. A profundidade do buraco económico argentino deixado pelas administrações peronistas anteriores – à exceção do Governo de Macri – torna a sua resolução, a curto prazo, numa utopia. Milei nunca o escondeu do povo argentino, alertando para o choque, mas os decretos e os discursos – principalmente o mais recente no Fórum de Davos – já contribuíram para o movimento da economia, tanto interna quanto internacional.
A ‘Lei Ómnibus’
Apenas dezassete dias após a tomada de posse, a administração Milei enviou para o Congresso argentino um extenso projeto de reformas denominado Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos, conhecido também como ‘Lei Ómnibus’ ou ‘Bases’.
O conjunto de propostas assenta em doze pilares fundamentais, característicos de um liberal-libertário ou até de um anarcocapitalista, como o próprio Milei se autointitulou. Numa primeira instância, o documento pretende declarar Estado de Emergência Pública, que abrange praticamente todos os setores, até ao fim de 2025. A medida daria capacidade legislativa ao Governo em matérias como a Economia, as Finanças, a Segurança, a Defesa, a Saúde e a Administração. Capacidade esta que será capital para que Milei consiga levar a cabo as reformas de fundo no prazo – como previsto pelo próprio – de dois anos, de modo a encurtar o período do anunciado choque fiscal. A privatização de empresas públicas surge talvez como a menos surpreendente, sendo uma forma prática de reduzir a despesa pública, permitindo a eficiência e oferecendo, num estágio final, o melhor rácio preço/qualidade aos consumidores. Também a desburocratização era uma das bandeiras da campanha eleitoral do La Libertad Avanza, almejando a promoção de «transparência» e um “alívio de custos administrativos para conseguir regulações eficientes para a competitividade dos mercados”.
O documento propõe ainda alterações na função pública, na organização económica, na bioeconomia, na segurança e defesa, nos sistemas judicial e eleitoral e na educação. Como esperado, houve reação por parte da oposição, principalmente dos sindicatos, que culminou na greve geral do passado dia 24, convocada pela Confederação Geral do Trabalho. As discussões em torno do projeto continuam acesas e enfrentará maior oposição que o DNU, o Decreto de Necessidade e Urgência, que foi apresentado antes.
O farol de Davos
De todos os líderes e políticos ilustres que subiram ao púlpito no Fórum Económico Mundial, em Davos, Javier Milei foi o que mais se destacou. Num discurso marcado pelo inconformismo face ao status quo económico, social e político das potências ocidentais, o Presidente argentino disse que “o Ocidente está em perigo” e caminha para o “socialismo” e, consequentemente, para a “pobreza”.
Numa ode à liberdade, guiada pela Escola Austríaca do pensamento económico, Milei conduziu os seus cerca de 25 minutos de discurso como se de uma aula de economia se tratasse. Enalteceu a economia de mercado e o capitalismo, reforçando que foram os responsáveis por retirar da pobreza extrema cerca de 95% da população, e acusou os socialistas de utilizarem a intervenção estatal de forma coerciva, ao mesmo tempo que aclamam uma ideologia – dita progressista – que foi responsável por milhões de mortos. “O capitalismo de livre mercado e o comércio são a única forma de acabar com a fome e com a pobreza no planeta, a evidência empírica é inquestionável. (…) o socialismo é sempre, e em todo o lado, um fenómeno empobrecedor que falhou em todos os países nos quais se tentou”, atirou o Presidente argentino.
O discurso foi uma espécie de “resumo panorâmico” de uma disciplina de Teoria Económica, como disse o professor Jesús Huerta de Soto aos seus alunos da Universidade Rey Juan Carlos. Foi quase como uma carta de amor aos empresários, que Milei considera como “heróis” e “benfeitores sociais”.
A repercussão foi imediata, sendo o discurso da cimeira a atingir mais visualizações na web, merecendo ainda a partilha – por duas vezes – de um dos maiores empresários do mundo, Elon Musk. A difusão do pensamento austríaco deverá ser proporcional ao sucesso da Argentina de Milei, que deixou mais claro que nunca, que se distancia de líderes aos quais o têm comparado, como Bolsonaro, Trump ou até Órban.
Realidades e perspetivas
Dado o curto espaço temporal de governação e a não imposição total das reformas pretendidas, o exercício de análise ao modelo de Milei é ainda difícil. A única análise possível, de momento, é a da economia e das suas movimentações desde que o Presidente libertário assumiu o poder.
Com o DNU em vigor, a lei dos alugueres caiu e o mercado imobiliário reagiu. O preço da habitação sobe quando existe um desequilíbrio na oferta e na procura, onde a primeira é muito inferior à segunda. Com a revogação da lei dos arrendamentos, a oferta já duplicou na província de Buenos Aires, segundo dados da Câmara Imobiliária Argentina (CIA), o que, consequentemente, levou à queda dos preços na ordem dos 20%, como reportou o jornal argentino Cronista.
Em 2023, a oferta de apartamentos para arrendamento estava nos 400. “Depois do anúncio de Milei, o número chegou a duplicar. Hoje temos um stock de mais de 800 apartamentos e cresce todos os dias”, declarou o diretor de Relações Institucionais da CIA, Alejandro Bennazar. Também o investimento estrangeiro, um indicador da saúde de qualquer economia, promete aumentar com o crescimento da atratividade empresarial da Argentina, propulsionado pelo discurso do Presidente em Davos.
Mas a inflação galopante continua a ser a maior dor de cabeça dos argentinos, e a estabilização não está prevista para breve. Ainda assim, tem-se vindo a verificar uma ligeira queda nos alimentos e nas bebidas na ordem dos 1,2% semanais, segundo dados da Econométrica S.A. Já a taxa de inflação total, que estava nos 121,7% no final de 2023, está projetada para 93,7% no final deste ano e, segundo previsões da Statista, estará nos 32,5% em 2028.
‘Não há plano B’
Em entrevista ao Wall Street Journal, Javier Milei garantiu que “não há plano B” e que a população “entende que este percurso pode durar dois anos. (…) mas a realidade é que, quando começamos a ver a forma em que correm os dados e como a inflação se está a mover, nós próprios estamos surpreendidos com a velocidade à qual estamos a alcançar resultados”. Já o Financial Times publicou um artigo intitulado ‘A elite empresarial mundial está apaixonada por Javier Milei’.
O tempo, os mercados e principalmente os indivíduos ditarão o sucesso – total ou parcial – ou o fracasso das políticas do novo Presidente argentino. Um eventual sucesso poderá reestruturar a forma como as nações encaram a economia e a sociedade, causando uma mudança de paradigma no quadro político e económico da América Latina.