Se o Big Brother e O Preço Certo têm as audiências que têm, não admira que o dia a dia e a campanha eleitoral (que deveria já estar em grande aquecimento, pelo menos) sejam dominados pelos processos judiciários e judiciais mediáticos – que são um tipo especial de processos penais, muito diferente da generalidade dos demais, como se fosse uma espécie à parte. Queremos nós lá saber acerca da economia, da habitação, da saúde, da educação, da Europa, do Mundo, da segurança, da defesa, das liberdades, et cetera. Que estopada tudo isso, e que pouco importante. O que interessa, ocupa e entretém (e distrai, oh se distrai) é a ‘operação coiso e tal’ e a ‘operação tal e coiso’ – e todos os efeitos pirotécnicos, comentários arrebatados, análises pungentes e proclamações enérgicas a respeito e a pretexto. E a coisa é de tal forma que, acerca dessa coisa fundamental (obviamente) para o país e o mundo que é a chamada ‘Operação Marquês’, ouvi e li coisas sobre a salvação ou não da democracia ou da República consoante o desfecho recursório do processo; o que, se não fosse trágico, seria cómico (melhor, ridículo), e não consigo ouvir ou ler sem uma lágrima ou um esgar disfarçado de sorriso.
E não é apenas a comunicação social, que se foi habituando à barata e rendosa crónica judiciária e judicial para encher espaço e captar audiências, sem despender os recursos que não tem, bastando uma câmara e um repórter à porta do lugar dos acontecimentos investigatórios (de preferência de véspera) ou do tribunal, debaixo de chuva ou sol, ou um acesso privilegiado ao processo (pela milagrosa constituição de assistente ou por carinhosa mão amiga) ou, então, quando não é preciso esperar à porta ou violar o segredo de justiça (ou as duas coisas juntas), bastando a transcrição, a análise e/ou o comentário à exaustão de peças e acontecimentos processuais, mesmo os mais insignificantes. Não, não é só, e talvez não seja principalmente, embora seja em larga medida e não faça autocrítica nem assuma as responsabilidades. É também a (ou alguma) classe política (usemos o termo, por comodidade de expressão), que surfa contente e farta pelas ondas, pela espuma e pelos salpicos das ‘operações’, como se isso fosse a coisa mais importante da e para as nossas vidas, e como se não houvesse um país e as suas questões essenciais. E um país num Mundo cheio de problemas e de desafios. Sim, muitos e graves. Mas não importa, que já vem aí um direto da porta do tribunal, onde o arguido x ou o advogado y pestanejaram ou suspiraram, e temos já aí dois comentadores ou mais a discorrer de cátedra sobre a prescrição, a consumação do ilícito ou as regras da prova, et cetera e tal. Melhor do que isso só talvez a histrionia da célebre apresentadora, a lágrima do programa da manhã, os mistérios da ‘casa mais famosa’ ou o preço de um frigorífico.
Mas culpa sobretudo temos nós todos, que não resistimos ao show e que não perguntamos nem exigimos, nem nada, metidos a fundo no nosso entretém processual. Um dia, quando acordarmos e perguntarmos, por exemplo, o que há para comer (essa necessidade básica, embora não tanto quanto saber de processos), a resposta há de ser: uma ‘operação’, com salada e arroz malandrinho. E para beber? Um copinho de processo penal. E nós todos saciados, de olho regalado e papo cheio; porém, famintos.