Hilda Hilst. “Onde as estrias do amor?”

Duas décadas após a morte de uma das poetas que melhor conheceu, revirou e fez sua esta língua, chega-nos por fim a reunião da sua obra poética. A bruxa que «vestindo, despindo e arrastando amor, infância, sóis e sombras, veio dizer coisas terríveis à gente que passa».

O gume do inusitado que nos atinge quando a lemos, a graça expressiva e a rudeza espantosa de Hilda Hilst, tudo aquilo que fez dela uma autora tão necessária, dessas que, antes de tudo, estão contra a chateza, anima-nos a começar um texto sobre ela com uma breve e elucidativa recolha de algumas das suas declarações, dessas que cortam com o enredo balofo que caracteriza o meio literato, relembrando-nos de um tempo em que se podia contar com os escritores para descompor certa tendência não só para a bisonhice como para recair na ladainha dos altos valores. Para ela tudo estava ganho «se pelo menos um amante da poesia foi atingido e levantou de cara limpa depois de ler minhas esbraseadas evidências líricas… escreva, apenas isso: fui atingido. E aí sim vou beber, porque há de ser festa aquilo que na Terra me pareceu exílio: o ofício de poeta». Ela que por vezes era álcool o que bebia, mas outras esvaziava as paixões que ao longo da vida a tornavam uma mulher desaforada, se nos habituou a um esplendor e a uma irrisão que, às tantas, chegavam a ser difíceis de engolir, punha de castigo esses escritores que não sabem lidar diretamente com a vida, censurando-lhes essas «novelinhas para ler no bonde, no carro, no avião. Parece que as pessoas querem livrar-se assim de si mesmas, que têm medo da ideia, da extensão metafísica de um texto, da pergunta, enfim.» Ela que sabia lidar com «As grandes palavras/ Trancadas e vivas», amadureceu naquele sentido mais pleno, de quem não perde o acesso à infância, de quem nos recorda também a nossa, com os seus êxtases infinitos e os seus terrores desmedidos. Ela surpreende nos detalhes e articula a expressão de um modo tal que faz tombar impressões altíssimas: «Costuro o infinito sobre o peito./ E no entanto sou água fugidia e amarga./ E sou crível e antiga como aquilo que vês:/ Pedras, frontões no Todo inamovível./ Terrena, me adivinho montanha algumas vezes./ Recente, inumana, inexprimível/ Costuro o infinito sobre o peito/ Como aqueles que amam.» Naturalmente, depois não se conformava de ser mais conhecida do que lida, e não hesitava na hora de ajustar contas com editores e outros desses negociantes do prestígio e do alcance da literatura, como quando deu um puxão de orelhas ao fundador da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, «que vive abrindo o bocão falando que faz questão de qualidade», mas que depois pagava adiantamentos chorudos a figuras como Bruna Lombardi, a atriz que fez sucesso publicando livros de autoajuda, enquanto ignorava Hilda e deixava Caio Fernando Abreu, um dos maiores contistas brasileiros, a lavar pratos em Londres.

Entretanto, Hilda Hilst já vende, e por isso tudo se saldou, já tem até a obra publicada com aquele selo, mas quando era viva não participava no ludíbrio como tantos autores que se ocupam na especulação à volta dos números e a qualquer oportunidade vêm lembrar-nos como meio mundo chora agarrado às suas obrinhas, enquanto a outra metade é palerma. «Meu editor fica sempre chateadíssimo e diz: ‘Hilda, você não vende nada. É uma coisa horrorosa.’ É, até gostariam que eu saísse pelo país inteiro, falando que nem uma louca para ficar vendendo.»

Ao contrário das nossas Lídias, Hilda não tinha tanta pressa de ir a Paris… «Ir lá para quê? Paris era bom quando eu fodia, com vinte anos», respondeu numa entrevista, em 1998, explicando a sua recusa ao convite para participar no Salão do Livro de Paris desse ano.

Como se vê, Hilda não estava para se mostrar como grande dama das letras, mas se o seu desafio não consentia de nenhum modo a indiferença, não se pense também que não fosse depois mais fundo, tendo bem presente essa noção que Valéry tão bem exprimiu, notando que ‘espantar’ dura pouco, que ‘chocar’ não é um fim de longo alcance. A prova está na forma como a obra sobreviveu à miséria do tempo de vida, à forma como os poetas são forçados a ver os luxos alinhados com uma terrível pobreza. Sem querer fazer parte da burocracia da arte, ou dos rigorismos da literatura oficial, ela buscou sempre a sua emancipação, e foi avisando o seu leitor: «Não me procures ali/ Onde os vivos visitam/ Os chamados mortos./ Procura-me/ Dentro das grandes águas/ Nas praças/ Num fogo coração/ Entre cavalos, cães,/ Nos arrozais, no arroio/ Ou junto aos pássaros/ Ou espelhada/ Num outro alguém,/ Subindo um duro caminho/ Pedra, semente, sal// Passos da vida. Procura-me ali./ Viva.» Também não se recusou àquela aridez dos que escapavam de uma forma de miséria para caírem noutra, instalados na sua própria vanguarda e nela rolhados como numa garrafa. Ao ser perguntada como era ser poeta no Brasil, Hilda não tinha dúvidas nem precisava de se estender, resumindo a coisa assim: «É uma merda.»

Porque não podia resignar-se, acabou os dias como uma monja, reclusa da Casa do Sol, rodeada de dezenas de cães, e se a televisão certa vez se lembrou dela foi daquela, nos anos 1970, quando fez saber do entusiasmo com que andava a gravar as vozes dos mortos. Só assim, de resto, o público em geral, se lembra dos poetas, quando estes servem àquele folclorismo abandalhado, e Hilda servia como bruxa para apontar, oferecer aquele resíduo pitoresco: era a desbocada, obscena, eremita, meio louca, arredia, indomesticável. Os adjetivos vão variando para uma mesma caricatura, como assinala Victor Heringer no posfácio à edição da sua obra poética por fim reunida e publicada entre nós, com o selo da Imprensa-Nacional Casa da Moeda, que continua a prestar um serviço melhor neste regime transatlântico do que no que toca a defender alguma reserva para os nativos locais. O jovem poeta brasileiro que se matou aos 29 anos, em 2018, tem aqui uma intervenção justíssima, lembrando como a aura que se criou à volta de Hilda Hilst parece dizer mais sobre aqueles que a pretendem rotular, e que não se dão depois ao trabalho de confrontar essa noção com o extremo rigor que caracteriza os seus versos. Heringer nota como ela retorna às origens da língua e se deslumbra com os cantares galego-portugueses, a desenvoltura de um verbo que se aproveita do embalo das cantigas de amigo, o vigor e a irrisão que bebeu nas cantigas de escárnio e maldizer, esse “golpe de anacronismo” que impede que a sua poesia seja demasiado fácil de situar ou estancar, como ilustração de algum movimento ou escola desses que emprestam algum brilho aos catálogos de fósseis líricos.

Hilda sabia defender-se do seu tempo, mas também do futuro, e em vez de engordar essa esperança vã em que o futuro venha a opor-se e a corrigir a perceção do presente, entendeu que está no passado já todo esse movimento, uma vida mágica e que permite aceder a esse paraíso fulgurante e impercorrível. A sua fluência ia nesse sentido, e não se ficava pelas referências mais à mão, pelos clássicos da lírica latina, ou pelos grandes nomes da literatura ocidental, mas era um alcoolismo entre todas as épocas, bebendo nos textos do hinduísmo, partilhando essa inquietação que não se confunde com aquela ansiedade daquele que espera ser capaz de escrever uma sinfonia porque leu um manual de composição. Pelo contrário, Hilda sabia como a literatura é um trabalho duro, tantas vezes aviltante, em que não há grandes consolos, e como os leitores tratam os autores contemporâneos com um imenso desdém, sendo sovinas, pilhando as suas descobertas e recusando-se a tributar-lhas. Mas ela nunca acatou essa chantagem das múltiplas alfândegas da Cultura, e, mesmo quando procurou escapar à marginalidade que é imposta ao poeta, não se rendeu ao lado banal do que vinga como mercadoria literária. Hilda levou mais longe o seu enfrentamento, e quis expandir as manifestações e marcas da refrega, explorando a via erótica e até pornográfica, esse elemento de escândalo que surge, como nos diz Eliane Robert Moraes, quando os temas obscenos se recusam a ficar confinados ao gueto dos géneros considerados inferiores, associando-se às expressões legitimadas como superiores. Foi assim que, a partir dos anos 1970, vimos a poeta perverter as leis literárias, «criando uma prosa em, que os géneros se degeneram – uma prosa degenerada», como assinala Moraes no livro A Parte Maldita Brasileira (ed. Tinta-da-China). Num dos três ensaios dedicados a Hilda Hilst, Moraes lembra como a partir de certa altura a poeta tomou de assalto os diferentes planos, e quis romper com o regime cartográfico que limita os movimentos no campo literário, e então se aventurou, talvez como nenhum outro escritor brasileiro, pelos mais diversos e inusitados caminhos literários. «Poeta, prosadora, dramaturga, cronista, Hilst praticou toda a sorte de escrita, das mais convencionais às mais experimentais, criando textos inclassificáveis que, além de desafiar as fronteiras entre os géneros, incorporam materiais de origens diversas como piadas, receitas, fábulas e fragmentos os mais variados. Científica e mística, lírica e pornográfica, erudita e popular, ela dialogou com muitas vertentes estéticas, das antigas às contemporâneas, sem jamais se filiar a qualquer uma delas.»

No fundo, não fez outra coisa senão levar ao limite aquele ímpeto libertador, e procurar nesse registo das deambulações que ocorrem entre o mundo e as experiências, o lado sensorial e exploratório no qual cada um se mete em resposta à aflição do desejo, esse elemento de radiância em torno do qual buscamos, no fim de contas, a resposta para o que somos, tentando cada um mapear-se enquanto sujeito que persegue ou se deixa perseguir. Em vez de se pôr a burilar ócios, o genérico “soneto carola” ou a “ladainha embolorada” que é o registo da maioria, como assinala Heringer, ela empenhou-se em proveito daquela noção de Octavio Paz de que «a relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afectação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal».

Hilst parece reconhecer como está sempre presente uma vertigem no limiar da carne, e que «cantar o amor e sua impossibilidade é a maneira pela qual a amante buscará reencontrar a completude perdida» (Frederico Spada Silva).

Na entrevista que concedeu à equipa dos Cadernos de Literatura Brasileira, em 1999, a poeta reconhecia qual era o fulcro da sua obra: «A minha literatura fala basicamente desse inefável, o tempo todo. Mesmo na pornografia, eu insisto nisso. Posso blasfemar muito, mas o meu negócio é o sagrado. É Deus mesmo, meu negócio é com Deus.»

No fundo, a obscenidade aqui passa sobretudo por ser uma mulher a colocar-se no centro, não acataando a sua condição enquanto objeto de desejo, mas assume essa rebelião de assumir o elemento sagrado da sua busca, a singularidade imensamente cativante de uma aventura que vai vencendo cada limite, cada impedimento social e cultural, mostrando como a mulher é, afinal, o mais pleno sujeito desse tremendo desafio, virando todas as expectativas do avesso, sendo o mais radical dos agentes de um efeito de desordem social e cultural, de tal modo que, como resume de forma magnífica Victor Heringer, toda a obra de Hilst «é uma palavra de carne atirada na história». E o sinal disto é que depois dos versos de Hilda Hilst nos derrubarem e conquistarem, ressoando intimamente e ligando uns nos outros os sentidos na sua forma mais sedutora, depois de todo esse arrebatamento, quando ela se cala, fica esse «verdadeiro silêncio de catedral vazia,/ sem santo, sem altar. Só eu mesma.»

O tempo resta depois como um eco, para que possamos regressar ali e dar-nos conta do fulgor daquela que, não se resignando à inercia do ser amado, reclamou para si o verdadeiro privilégio do amador, dispondo do mundo como um imenso terreno de caça.

Caçadora de estremecimentos, a sua obra tem um alcance absurdo por captar os diferentes momentos e fases da condição amorosa, dos períodos de maior vitalidade, que se exprimem nesse efeito de devassidão em que o «corpo» se revira em «porco», em que a matéria se revolta com a sua finitude e o exprime confundindo a morte na vida, a degradação com abertura e a promessa de um horizonte nascente. E é o amor sempre esse elemento através do qual os corpos se entregam a essas infinitas metamorfoses. Só conhecendo as indisposições e infinitas revisões a que se entregam os amantes é possível então mergulhar nessa legenda turva, seguir os movimentos mais férteis na terra, os mais sagrados, como os corpos por efeito do desejo se entregam e são transformados, como se perseguem e são à vez a presa e o caçador, como de seres mortais surgem essas sombras de seres sobrenaturais, como entre as coisas da vida e os divertimentos a que se entregam, se abre essa margem de invenção e recriação que, em certo sentido, exprime o próprio ânimo original, e assim rende homenagem ao primeiro criador. E, assim, em vez de procurar as alturas, em vez dessa impostura da dignidade, que sempre conduz a regimes de petrificação, Ovídio convidava-nos a descer: «Descei de novo, ficai satisfeitos por reanimar/ este renascimento dessas maravilhas./ Revelai, agora, exatamente/ Como elas foram realizadas/ Desde o início/ Até este momento.»

E Hilda Hilst aceitou o desafiou, encarnou-o, nunca se desobrigando da carne, do seu peso infinitamente doloroso, das suas urgências e devastações íntimas. Mas sem perder alguma vez de vista esse ângulo propiciatório, esse regime de desvelo, esse modo de se «aventurar pelo avesso do mundo à procura de um saber secreto, conquistado ao preço da própria loucura» (Eliane Robert Moraes). «Falemos do amor/ Que é o que preocupa/ Às gentes», o amor é esse ângulo que, por entre as coisas da vida, da carne, torna possível antecipar a morte, vingando-se dela, alcançando o sagrado. A este movimento se chama o efeito de «santidade», e esta é a verdadeira revolução.

O resto cai à volta, como paisagem ou cenário. A própria natureza não passa de um mito. Toda esta obra vive dos ritmos com que cose, descose e recose esta consciência. «Olhamos eternamente/ para as estrelas/ como mendigos/ que eternamente/ olham para as mãos»… «Canção do mundo/ perdida na tua boca.// Canção das mãos/ que ficaram na minha cabeça.»

A poeta encarna esta devastação de viver como último da espécie, como aquela que gerará o início de outra coisa, mas atravessa a vida confrontando-se com o «Colapso hibernal/ das cousas ausentes». «Morreu o mundo das monjas./ Morreu o mundo das mãos. Sou doida desfigurada/ procurando mãos/ mergulhadas em azul.»

O amor, mais do que uma recompensa, é uma tarefa, um exercício mendicante: «Sabes alguma cousa/ além dos homens.// Soubesses ao menos/ a eterna escuridão/ dos que procuram luz.» É uma tarefa ingrata, que coloca aqueles que vivem voltados para ele como que sujeitos a uma música que vem da morte. Mais vivos por saberem os seus dias contados: «Ah, ternura dos dias/ que prometiam alguma cousa./ Ah, noites que esperavam vida.»

O que disseram sempre os poetas senão essa urgência, essa precisão dos sentidos afiados ou recalibrados pela impressão da música que enfim colhe tudo? «Somos iguais à morte. Ignorados e puros./ E bem depois (o cansaço brotando nas asas)/ seremos pássaros brancos à procura de um deus.»

E se o amor parece estar cada vez mais difícil, se a sua palavra surge quebrada, feita em estilhaços, cumpre a esses poucos reuni-la, lançá-la de novo como «imperceptível sombra/ de flor no ramo frágil». A vontade de poesia confunde-se com a vontade de vida, mas esta tende a enredar-se se a morte, enquanto destino, deixar de ser sentida como um aguilhão.

A vontade de desaparecer é comum em épocas onde a vida fica surda para aquela música, em que os homens parecem distantes do mundo, sucumbindo a favor de delírios miseráveis, quando não fulgura «nem uma estrela/ buscando o brilho de outrora». Admiramos esses exemplos de seres que num gesto admirável deram a própria vida e permitiram assim que a morte surgisse nessa dimensão definitiva e pura. No seu «poema do fim», Hilst põe as coisas nos termos mais claros: «A morte surgiu/ intocável e pura./ Depois, teu corpo se alongou/ inteiro sobre as águas./ Dos teus dedos compridos/ estouraram flores/ e ficaram árvores/ ao sol.»

Talvez porque a verdadeira vida resiste, eterniza-se na memória dos outros, alcança a condição da lenda, voga pelo tempo fortalecendo o que há de comum entre os homens. Hilda Hilst impõe a si mesma esse desafio: «A mesa de escrever é feita de amor/ e de submissão (…). Cada página um ano de vida»… E a poesia é uma disciplina desses grandes arroubos e segredos, dessa alegria que reside para lá da vulgaridade dos dias em que só resta a espera, e o silêncio. «Não falemos./ E que as vontades primeiras/ permaneçam/ gigantescas e disformes/ sem caminho nenhum/ para o mundo dos homens.»

No limite, o poeta nutre essa relação perdida, relaciona-se com o passado, tudo aquilo que apenas resiste nas sombras, cheira o odor e toca a «haste pensativa e débil/ da rosa que tenho na memória», mas não cede à miséria do seu tempo. Reconhece o desafio, e quanto ao demais, vira-lhe costas.