O sorriso, a leveza, a calma e a simpatia. Os seus olhos azuis refletem o mar que tenta observar todos os fins-de-semana. Quando pensa na sua infância, nos EUA, acredita que viveu uma fantasia e que, ainda hoje, anda em busca desse lugar de felicidade. Considera que é importante contagiar os que estão perto. Respira arte e acredita que esta salva vidas. Paula Lobo Antunes é uma das protagonistas da peça A Rainha da Beleza de Leenane que estreia dia 15 de fevereiro no Teatro da Trindade.
Diz ser uma pessoa muito envergonhada, sensível e feliz. Que também gosta de contagiar as pessoas à sua volta com essa felicidade… Fez recentemente 48 anos. Qual o balanço que faz? Continua a ser assim? Eu acho que continuo a tentar ser assim. Obviamente que estes últimos anos têm sido atípicos… Faço sempre esta analogia: para quem faz surf, há vezes em que vem o set e outras em que a água está assim meio parada, mais tranquila. Agora, acho que me estou a voltar para umas ondas mais paradas, mais calmas. É um bocadinho estar a encontrar o equilíbrio, tentar encontrar essa tal felicidade. E quando nós estamos felizes, acho que tentamos contagiar. Sinto que estou numa altura em que sinto mais poder enquanto mulher, como mãe e como pessoa.
Isso significa que a idade não a assusta? (risos) Não! Acho que a idade não deve assustar. Acho sim que se deve respeitar. Devemos respeitar as mudanças que surgem no nosso corpo, devemos garantir que não deixamos nada para trás, por fazer… Acho que é um bocadinho isso que ando a contemplar. Se há coisas que tiveram de estar em‘pausa’estes últimos anos, é agora o momento. Com esta paragem que o mundo teve com a Covid-19 e que continua a ter com esta questão toda das guerras, acho que as pessoas devem continuar a tentar seguir o seu caminho dentro do possível para não ficarem estagnadas. Temos mesmo de partir para a frente. Acho que a idade traz a experiência e, mesmo que a pessoa não saiba o que é que quer fazer, acho que sabe o que não quer.
Fala destes tempos tenebrosos… Por isso é que é tão importante continuarmos a querer contagiar os outros? Claro! Há coisas que não podemos fazer, há pessoas que não conseguimos atingir, mas se conseguirmos contagiar aqueles que estão perto de nós e que olham para nós com alguma admiração, é maravilhoso. As pessoas juntam-se a nós por muitas razões… Por admiração, por amor, por amizade, por conselhos… Nós não podemos descartar isso. É tão importante. Por mais que eu esteja preocupada com milhões de coisas todos os dias – seja comigo, com as minhas filhas, com as guerras, com questões climáticas –, temos que conseguir colocar as coisas nos sítios certos. Encontrar esse equilíbrio, essa felicidade.
Diz, contudo, que no seu trabalho, muitas vezes, a consideram exigente, ou arrogante, perfeccionista, mau-feitio… É engraçado… Agora como estou a fazer a série da Opto, Eleitos, estou com muitos miúdos mais novos. Realmente uma pessoa tem de encontrar alguma tolerância, entendimento de como é que as pessoas funcionam. Há muito tempo que aprendi que eu posso ser exigente comigo, mas não posso exigir isso dos outros. Isso é egoísmo e maldade. Se calhar fi-lo no início da profissão, talvez por não conseguir compreender como é que as pessoas não pensavam da mesma forma, mas já não o faço. É um bocado ignorância, uma utopia. Aprendi isso com muitos atores que são meus mentores. É muito importante ter paciência connosco e com os outros. Sinto-me tranquila e calma.
Nasceu nos EUA em 1976, já que os seus pais se mudaram para terminarem as suas especialidades. Já disse em algumas entrevistas que teve a infância dos sonhos de muita gente, cheia de doces e com tudo o que vemos nos filmes americanos. O que é mais recorda dessa altura? Essa infância é um bocadinho uma fantasia… Quase como um conto de fadas que foi ‘destruído’ com a separação dos meus pais. Mas sim, era isso. Aquelas casas típicas americanas de subúrbio: com as bicicletas, as crianças todas na rua a brincar, o cheiro da relva, dos gelados ao fim de semana com o meu pai, os vestidos altamente pirosos que na altura não existiam cá (que eu adorava), a magia do Natal com neve… Era mesmo tudo aquilo que vemos nos filmes americanos. Mas infelizmente isso, que eu recordo com afeto e com carinho, é uma coisa tão inatingível… Foi uma rutura um bocadinho agressiva e traumática. Portanto, é quase como se fosse outra pessoa. Se calhar eu gostava de conhecer essa criança.
Falar com ela? Sim! Dizer-lhe que vai ficar tudo bem!. Que essa fantasia, esse amor, esse ideal, vai continuar.
Veio para Portugal aos cinco anos, com a sua mãe, morar com a sua avó. O seu pai e a sua irmã mais velha ficaram lá. Isto quer dizer que a adaptação foi difícil? Sentia-se diferente das outras crianças? Para já, não falava português. Logo aí, há uma grande diferença. Não conhecia a língua, a comida era totalmente diferente, os hábitos e os costumes… Acho que para tentar amenizar essa transição, os meus pais colocaram-nos em escolas internacionais.
Trazer um bocadinho da casa para cá? Sim. Afinal também havia crianças como nós, fora do seu ambiente inicial. Mas sim, foi duro. As saudades eram tremendas, esta nova vida… Foi o que teve de ser. Foi o meu caminho e eu gabo mesmo a coragem da minha mãe de fazer isso. Há muitas mulheres que provavelmente não a teriam. Com 30 e tal anos, agarrar nas filhas e começar uma vida do zero? Olho com admiração.
Já admitiu que ao chegar ao país, teve a sensação de que era muito sujo. Fez-lhe confusão os cães na rua abandonados, era tudo descampado, não havia muita ordem. O que mais recordava em 2017, era que iam ao domingo em família ao McDonald’s (risos). Continua a ser assim? Tento que o domingo seja um dia familiar. Antes da Covid-19, todos os domingos íamos jantar à casa da minha mãe. Tínhamos esse hábito. Infelizmente, depois disso, alguns hábitos vieram-se a alterar, mas estamos a tentar encontrá-los de novo lentamente, esse amor e encontro que eu acho que faz falta. Não só com a família, mas também com os amigos, porque ao longo dos anos as pessoas vão partindo e mudando. Temos de encontrar outro tipo de famílias em vários sítios diferentes, em várias circunstâncias. Nos EUA, não vivíamos perto da praia, mas aqui, vivendo perto, é daquelas coisas que faço semanalmente. Tento ir ver o mar sempre que posso. Aos domingos, por exemplo…
E a ideia que tinha de Portugal? Já se alterou? (risos) Não se alterou muito! (risos) Eu acho que o que aconteceu é que me acostumei, apesar de ainda haverem coisas que crítico, que acho inadequadas. Até porque quando fiz 18 também me fui embora. Viajei por muitos lugares e, quando eu digo viajar, não é só isso. É viver. Sentir-se parte desses sítios, reconhecer o lugar como se fosse também nosso. Acho que há coisas absolutamente excecionais e fantásticas, tenho amigos e reconheço talentos inacreditáveis em Portugal, em todas as áreas. Mas acho que ainda temos muito que caminhar.
Tal como dizia, quando chegou, estudou em escolas estrangeiras, na Carlucci American International School of Lisbon, na St. Dominics International School e na St Julian’s School. Contava numa entrevista que lhe disseram que nunca ia conseguir trabalhar no meio artístico por não falar bem português. Isso deu-lhe ainda mais força para lutar? Sim, sim! Foi-me dito. Mas não é que me tenha dado mais força… Esse género de crítica não me afeta. Não olhei de uma forma depreciativa, olhei de uma forma factual. Quando fui para Londres, por exemplo, tinha sotaque americano. Lá, disseram-me que para eu trabalhar em Inglaterra tinha de aprender a fazer um sotaque inglês perfeito. Ou para ter determinado tipo de papel, temos de adaptar o nosso sotaque. Foi também isso cá. Obviamente que é um trabalho extra que se tem de fazer e eu tenho muita consciência da minha pronúncia, da forma como falo, da construção das frases. Às vezes não me é assim tão fácil, mas trabalhei para isso. Acho que quando recebemos críticas, a primeira coisa que temos de fazer é perceber de quem vem e como é que vem. Vem de um lado de amor e construção? Um lado de apoio? Ou vem de um lado maldoso, por querer destruir e por inveja? Um ator está sempre a ser criticado, uma pessoa está sempre a ser julgada pelos outros. Ainda mais com as redes sociais… E nós atores ainda mais, porque estamos expostos, porque aquilo que fazemos é para as pessoas. Há sempre alguém que não vai gostar. Portanto, é legítimo. Está tudo bem. Não tenho de levar isso a peito.
Perguntava porque há pessoas que ficam frustradas facilmente… Sim, claro! Mas se um ator ficar frustrado, não pode deixar que isso afete o seu desenvolvimento e o seu trabalho. Isto é muito importante com as crianças, e eu vejo isso com a minha filha mais nova… É bom que tenha frustrações, porque tem de aprender a geri-las. Tem de saber ultrapassar isso. Tudo isso é o que forma a nossa personalidade, a nossa capacidade de adaptação. Se for tudo muito dado de bandeja, muito fácil, depois quando vem uma coisa que pode nem ser um obstáculo muito grande, a pessoa já nem sabe lidar com ela.
Licenciou-se, em Edimburgo, em Biologia Médica. Houve algum tipo de pressão por parte da família? Em criança assistiu a várias cirurgias do seu pai e da mãe… Sim, claro que houve. A minha família tinha um bocado um padrão académico. Mas a coisa mais importante era que nós fossemos felizes. Isso foi o que prevaleceu.
Porque a Paula seguiu esse caminho e teve média de 18… Sim! Mas fiz isso também por mim, por muito que eu possa dizer que foi pressão da família (e foi alguma), ao mesmo tempo, foi pressão pessoal. Eu não me sentia preparada para outra coisa… Fiz o meu caminho e sou uma pessoa bastante cautelosa. Se calhar até podia arriscar mais agora que penso! (risos). Se calhar foi uma combinação dessas duas coisas. Não me sentia capaz e com maturidade suficiente para saber aquilo que era. Acho que muitos dos atores novos que se veem, quando começam muito novos, de repente desaparecem, depois voltam outra vez, ou não voltam. Neste tipo de profissão, tão incerta e tão dura, que exige tanto em cada personagem, existe também um trabalho paralelo que é o da pessoa como ator. São duas coisas completamente diferentes. Tem de haver uma estabilidade emocional, psicológica e de apoio, para seguirmos esse caminho. Chega a uma certa altura em que a fama também é muito solitária. As pessoas chegam-nos por interesse, por curiosidade, existem vários fatores que uma pessoa tem de saber gerir.
Isso significa que é preciso haver equilíbrio, maturidade e uma certa ginástica? Sim. Há aqui um desenvolvimento que é para as personagens. Cada vez que nós abordamos uma personagem nova, temos de encará-la e transformar-nos nela. Isso já é sair um bocadinho de nós. Depois voltamos a nós… Mas a nossa persona pública também é outra coisa… Portanto, todas estas camadas têm de existir e, se uma pessoa não tiver maturidade suficiente, isto pode causar danos!
Mas chegou uma altura em que se sentiu preparada e foi para Londres, onde estudou quatro anos de teatro, na ArtsEd. Lembra-se do momento em que percebeu que era isso? Foi quando estava a acabar o curso na Escócia, mesmo no último ano. Pensei: «Ok… Agora vou para medicina?». Se eu fosse para Nova Iorque, como pensava, dificilmente iria conseguir desistir. Então percebi que já estava pronta. Não era isso que queria.
E tal como dizia, viveu em vários locais: Londres, Escócia, Nova Iorque, Brasil, Itália… Sente que andou sempre em busca de alguma coisa? (risos) Pois… Se calhar sim! Como eu estava a dizer no início, sobre a minha infância, aquela fantasia, se calhar ando sempre à procura disso. Essa harmonia, essa felicidade ingénua. Acho que é um bocado isso. Andar sempre nessa busca. Também tem a ver com ser atriz. Estamos sempre em busca do melhor papel, da melhor performance, do melhor trabalho. Não é um trabalho das 9h às 17h. É um trabalho constante. Claro que existe uma separação, quando a personagem acaba, quase uma morte e um luto. Mas de repente vem outra. Estamos sempre nessa busca.
Isso significa que pertence um bocadinho a todos esses locais?! Ou não pertence a lugar nenhum? Eu acho que pertenço a todos esses lugares! Todos me tornaram quem eu sou, as camadas que tenho. Quanto mais uma pessoa faz, lê, aprende, mais ganha. Vai criando toda a sua bagagem… A bagagem tem é de estar bem arrumada! Tem de estar tudo nos lugares certos. Eu até tenho boa memória, mas desejava lembrar-me de tudo. Quando era miúda tinha um diário… Acho que escrevi até aos 20 e poucos anos. Achava que era muito importante eu não perder aquilo que sentia nos dias. Tinha de escrever exatamente as sensações que vivia. Depois, com o tempo, deixei de escrever. Mas tenho tudo guardado. Tenho anos e anos e anos compilados.
Regressa lá algumas vezes? (risos) Sim! Às vezes vou lá e não é necessariamente agradável. A minha filha mais velha está na pré-adolescência, tem 11 anos, se calhar vou começar a ir lá mais vezes… Se calhar será uma forma de conseguir percebê-la melhor.
Em Londres correu alguns riscos e esteve em perigo. Na altura, com 22 anos, não tinha noção disso? Eu acho que tudo aquilo que eu fiz foram coisas que faziam parte. Eu fiz as coisas porque tinham de ser feitas e sou bastante ponderada! Mas sim, morei num bairro muito perigoso e acho que ter ido viver para lá foi mero acaso. Não fazia a mínima ideia de onde era. Estava com uma amiga que vinha comigo da Escócia. Foi ela que propôs. Disse-me: «Vamos para aqui porque a minha universidade é perto». Só depois percebi que a minha era a 1 hora, do outro lado da cidade. Foi absolutamente ridículo. Eu cedi para ela e por ela e, de repente percebi: «E eu?». Acho que estava com medo e conhecia aquela pessoa. Obviamente que, com o tempo, fui percebendo que aquilo era um bairro social. Nós éramos as únicas brancas. Era um bairro predominantemente árabe e nós não éramos bem-vindas.
Vivia com medo? Só para entrar no nosso apartamento tinha para aí quatro chaves, uma delas era de íman, tipo prisão. (gargalhada) Assustador! Eles nem nas lojas nos serviam. (gargalhada) Não podia ir beber café, comprar leite! Depois, havia muita violência doméstica. Ouvia-se tudo! Ouvia crianças a chorar, mulheres a gritar, homens a bater nelas…
Como é que uma miúda de 22 anos gere tudo isso? O meu curso de Teatro era das 8h às 20h, por isso, eu estava sempre muito cansada. Abstraia-me disso! E a minha sorte é que eu tinha um colega de curso que também lá vivia. O Universo está sempre a proteger-nos. (risos) Ele levava-me sempre à porta. Mas era uma chatice, porque eu tinha de ficar à espera dele. Nós às 20h acabávamos e ele queria ir beber cervejas! (risos) Passado 1 mês eu já estava exausta e percebi que estava a ser perseguida. A polícia encostou o carro perto de mim. Pensei: «Ai meu deus! O que é que eu fiz?». (risos) Disseram-me que eu não podia andar ali sozinha, que estava a ser seguida por um gangue! (gargalhada). A minha felicidade de estar a fazer aquilo que eu gostava, deu-me um bocado de inocência. Se calhar foi parvo, mas foi o que foi! Houve sempre qualquer coisa que me salvou. Nesse momento, deixei de andar sozinha e passado uma semana, encontrei um sítio perto da minha escola.
A solidão, nessa altura, era uma coisa presente em si? Não! Eu tive essa solidão quando fui para a Escócia aos 18 anos. Mas aprendi a lidar com ela, a desenrascar-me. Aprendi como curar essa solidão, como preenchê-la. Foi um processo interessante de descoberta. Afinal, não temos sempre alguém do nosso lado…
Porque diz que tem algumas dificuldades em pedir ajuda… Acha que pode estar ligado a essa independência que teve desde cedo? Isso vem de outro lugar.. Está relacionado com o facto de eu vir de uma família em que todos têm muito orgulho em tudo o que fazem e conseguem fazer tudo sem pedir ajuda. É diferente. Mas eu não era muito boa a fazer amigos. Inscrevi-me em todos os clubes e mais alguns, e não fui a nenhum. Talvez por essa vergonha que falavas no princípio.
Quando disse à sua mãe que queria ser atriz a única dúvida que tinha era de que forma conseguiria ajudar as pessoas nessa área. O que é que há de tão especial na representação? A arte salva as pessoas? Há uma missão. Quando disse isso à minha mãe, foi com uma ingenuidade… Ela olhou para mim quase como se eu fosse completamente parva. É verdade! Hoje em dia batalho tanto por isso… A importância da cultura! Seja para rir, para chorar, para aprender, abstrair, seja como identificação, espelho. Não entendo, por exemplo, como é que as pessoas não entenderam a importância da Pequena Sereia ser interpretada por aquela atriz, por causa da representatividade de muitas meninas. A importância que isto tem é brutal e fundamental. As pessoas poderem ver-se em espelho, aprenderem sobre elas próprias. A arte salva as pessoas! As pessoas podem estar na maior depressão, a sentirem-se completamente isoladas, sem qualquer tipo de esperança e, de repente, veem uma coisa que desperta qualquer coisa nelas. Já tive várias mensagens de várias pessoas a agradecerem-me o trabalho que faço. Isto não é uma questão supérflua. Faço isto como um veículo para transmitir certas coisas que se calhar as pessoas não sabem que conseguem sentir. É um bocadinho como ver os nossos sonhos, as nossas vontades, inquietações, as nossas dúvidas.
Em fevereiro, integrará o elenco da peça ‘A Rainha da Beleza de Leenane’, ao lado de Valerie Braddell e com encenação de Sandra Faleiro. O que nos pode contar sobre esta peça? É uma peça sobre uma relação muito intensa entre uma mãe e uma filha. É muito forte. Todos nós temos uma mãe, ou tivemos… Muitas de nós, também somos mães. Essa ligação é brutal e esta peça é mesmo mostrar o que há de bom e de mau dentro disso. Sempre que eu estou a fazer um projeto, hoje em dia, interessa-me o seu significado. Antes de abordar, penso o que é que isso vai significar. Onde é que está a mensagem social? Onde é que está a crítica? Sinto muito isso nesta peça. Sentámo-nos e tivemos essa conversa. Foi muito bonito porque nós temos uma obrigação como atores, como pessoas com voz.
Imagino que esteja a ser um processo doloroso… Esta peça mostra-nos que muito rapidamente podemos entrar num sítio de podridão, escuridão, de incapacidade se não tivermos à nossa volta e dentro de nós, coragem para nos alavancar. Falamos da velhice, porque a minha mãe já está bastante velha e incapacitada…Os papéis invertem-se. A mãe deixa de poder tomar conta da filha e é a filha que tem de começar a tomar conta da mãe. E esse lugar é quase contranatura. O que é que isso causa nas duas pessoas se elas não estiverem bem resolvidas? Existe também aqui o tema da saúde mental. A codependência, o julgamento dos outros… Existem certos trabalhos onde se a pessoa disser que está a ser seguida psicologicamente, não é contratada. Desde quando é que isso pode ser aceitável? Todos nós precisamos de ajuda. Não conseguimos andar nesta vida sozinhos! Há alturas em que estamos mais fragilizados… Isso não pode ser uma sentença. Parecendo que não, a altura da Covid-19, veio mesmo espremer as pessoas ao limite da sua saúde mental. É um bocadinho aquilo que acontece na peça.
Mas não é só peso… O amor também faz parte da peça… Sim! Temos algum tipo de esperança ao nível do amor. (risos) O ator Nuno Nunes que faz a personagem do Pato Dooley… Aí aborda-se essa parte do amor, da comédia de enganos. É mesmo muito complexa, muito realista e muito crua, apesar da peça ter sido escrita na Irlanda, em Leenane, que é uma vila piscatória. Muita gente sabe a ligação que eu tenho com Porto Covo. Esta peça podia ser lá. Uma mãe e uma filha que lá estão desterradas e não conseguem sair. Toda a gente se foi embora, mas há os que ficam.
Acredito que os artistas aprendem muito sobre si com cada uma das personagens que interpretam… O que é que está a aprender com a Maureen? Estou a ser obrigada a ir às minhas entranhas. Aqui é impossível não ir. Conseguimos fazer um mês de ensaio no ano passado. Foi muito bom porque conseguimos descobrir várias coisas, entrar num mundo muito dark, muito macabro, muito perverso. De repente, voltámos e não temos nada disso. É uma outra coisa. Isso é muito engraçado. Lá está, as camadas… O que é que eu tenho de descobrir e ser aqui? (risos) Tenho de descobrir um desespero quase cego. Uma pessoa tem de estar bastante estável emocionalmente, porque se não, se calhar pode correr o risco de não ir lá completamente, ou isto afetar. Claro que afeta sempre um bocadinho, mas depois temos de sair.
Tem facilidade em sair das personagens? Claro que as levamos para casa, mesmo que seja apenas o texto. Mas as emoções das personagens não são as minhas! As emoções são para serem sentidas ali, durante aquele período! Entra-se em cena e sai-se de cena. Quando saímos podemos demorar algum tempo a regressar, limpar as lágrimas, ainda a rir, respirar fundo. Mas depois disso… Bora! Não podemos ficar com isso em nós. Temos de ter o discernimento de sair desse sítio. Jamais eu posso entrar em casa, com dois amores, e estar com essa energia. Não pode ser! E se eu estiver, eu vou ali e já venho. Mas como qualquer mãe em várias situações.
É muito diferente pisar as tábuas de madeira e pisar o platô. Está a fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Como está a ser voltar ao teatro? É como andar de bicicleta. (risos) No teatro tudo pode acontecer. Ainda ontem tivemos um ataque de riso no ensaio, tocou um telemóvel. Não parámos! Obviamente que, em platô, temos a oportunidade de voltar a repetir… Eu faço o paralelo entre a ação e o corta. Toda a gente que lá está, tanto os da régie, a equipa técnica, são o meu público. Eu sinto que estou em cima do palco a representar para essas pessoas. A preparação da personagem é diferente e é preciso outro tipo de concentração. Em teatro tem-se o arco completo, tem de se viver a mesma experiência vezes sem conta e sempre como se fosse a primeira vez.
E o que é que a entristece mais no estado da cultura no nosso país? Deve ter um olhar muito claro de como se fazem as coisas lá fora. Trabalhou no Brasil, no início da carreira, por exemplo. Entristece-me, acima de tudo, a falta de investimento e a falta de reconhecimento. Há muita gente que vê a cultura como um luxo, como algo supérfluo, desnecessário. Não é nada disso! A minha irmã é professora de música numa escola e, todos os anos, faz um musical com todos os miúdos, desde o 6º ano até ao 12º. Todos eles querem fazer parte, todos eles se sentem parte daquilo. É incrível! É uma união, um prazer, uma aprendizagem. Uma gratidão! É para a vida! Nós precisamos de ver coisas belas, coisas que nos estimulem. Se não, ficamos introvertidos, escuros, sem cor, sem vida. A arte dá-nos vida! Sem ela deixamos de existir.
Para si, os castings são muito importantes… Há espaço para todos? Eu acho que sim! Há espaço para todos. Acho que o casting é fundamental para as pessoas verem toda a gente. Isso é uma coisa que também me entristece. Os lóbis são muito fechados, seja em teatro, cinema… Esta peça é uma produção minha com a Valerie Braddell. Nós é que agarrámos nisto, com a Sandra. Estamos nesta peça há mais de 2 anos. Há 3 anos que queremos fazer isto. Não conseguimos de uma forma, vamos fazer por nós! É isso que estamos a fazer. As pessoas fazem cada vez mais isso. Têm de fazer o seu próprio caminho. Daí vem as faltas de casting. As pessoas, às vezes, pensam: «Ela é muito da televisão!». Ainda agora fui fazer um filme com o Artur Ribeiro, em inglês, também com coprodução indiana: Teacher’s Gift. Nós temos de quebrar essas barreiras. Seguir em frente e mostrar que somos capazes. E se eu não for capaz para umas pessoas, serei para outras! Eu sou mesmo muito apologista dos castings; dar oportunidade às pessoas. Depois elas têm de saber agarrá-las.
AGRADECIMENTOS:
Hotel Vila Galé Paço de Arcos