António Sala. “Enquanto a televisão nos vende a cara, a rádio vende a alma”

António Sala fez 60 anos de carreira. “É muito gratificante saber que entrei na vida das pessoas durante décadas”, assume. Em relação ao estado atual da rádio reconhece que “está muito prisioneira das playlists, da música repetitiva”.

Completou agora 60 anos de carreira que balanço faz?

É sempre um balanço comprido, mas é bom, muito saudável, em que aconteceu de tudo um pouco. Claro que ao longo de 60 anos não aconteceram só coisas boas, não foram só triunfos, houve quedas e houve reaprendizagem. Mas quando faço um balanço final foi muito positivo, sobretudo porque fiz aquilo que gostava: paixão pela rádio. Fazer-se o que se ama e poder fazê-lo de maneira continuada e com resultados satisfatórios que não tem a ver só com as chamadas audiências, claro que tem a ver com isso, mas tem a ver acima de tudo com a reação do público. Penso que se criaram laços muito fortes, muito afetivos, e a rádio é um meio que permite isso – enquanto a televisão nos vende a cara, a rádio vende a alma. Dá um sentido diferente, sentimos que as pessoas ganham por nós estima, simpatia e fazemos parte quase do seu dia-a-dia porque os acordamos anos e anos durante todas as manhãs e isso é fantástico.

Contaram-me a história de um homem que esteve preso e quando saiu ao final de 20 anos quis ir dar-lhe um abraço…

Nunca esqueci, fiquei muito emocionado. Quando terminei o programa, a minha colega que era telefonista disse-me que estava na sala de espera um sujeito que não tinha muito bom aspeto. Dirigi-me lá, era uma pessoa com um ar muito simples, com uma roupa um bocadinho démodé, notava-se que estava a vestir uma roupa que não era propriamente os vestuários da moda e quando cheguei ao pé dele apercebi-me que estava muito nervoso. Pensei que iria pedir-me qualquer coisa – normalmente havia sempre pedidos, bastava, por exemplo, que achassem que o filho cantava muito bem – e pediu-me imensa desculpa, disse que não me queria pedir nada e que só me queria dar um abraço. Também disse que tinha cometido erros na vida, que os pagou caros e que tinha acabado de sair da prisão, onde tinha estado muito tempo e como tinha sido a sua companhia diária prometeu que quando saísse, as duas primeiras pessoas que queria ver era a mãe e eu. Deu-me um abraço muito emocionado e ainda fiquei a pensar: “Agora a seguir vem aí um pedido qualquer”, mas não houve pedido nenhum. Levei-o à porta, despedimo-nos e até hoje nunca mais o vi. Foi incrível, realmente a rádio cria este tipo de ligações a pessoas que estão sozinhas, que podem estar privadas da liberdade, que estão doentes e para quem a rádio entra no ouvido. Isso é extraordinário.

Para essas pessoas, os locutores eram vistos, na altura, quase como da família…

E não só para essas situações. A rádio é uma companhia quando se acorda, quando se regressa a casa no carro. A rádio no carro é imbatível, claro que a televisão hoje em dia, assim como outras formas de comunicação que passam pelo digital e que têm ecrãs, são dominantes, mas a rádio continua a ter um papel muito próprio e uma forma muito própria de estar com as pessoas. E marca muito.

Lembra-se de mais histórias que o tenham marcado?

Há muitas, nomeadamente, o sentirmos que quem nos está a ouvir pode ajudar-nos numa causa qualquer. Um dia recebi um postal ilustrado – hoje há mensagens no Facebook ou em outras redes sociais, emails, etc. – e na correspondência que recebia diariamente, que eram montanhas, recebi um que não foi escrito pela própria pessoa e percebia-se que era ditada. Porquê? Porque a fotografia era de Santa Comba Dão e na parte detrás dizia: ‘Olá, o meu nome é Maria Vitória, vivo numa pequena aldeia no concelho de Santa Comba Dão e tenho uma doença que me obrigou a amputar as duas pernas e os dois braços. Você é a minha companhia diária, vivo num sótão sem janelas, sou muito pobre e o meu maior sonho era conhecê-lo e poder ter uma janela para ver as pessoas a passarem na rua’. Achei aquela história tão chocante que assim que acabei de a ler disse ao meu auditório que não era só para abrir uma janela, era para fazer uma casa decente. Era preciso saber se a história correspondia à verdade, depois pedir ao presidente da câmara se não havia um terreno e aos construtores material. Num ano apareceu logo um terreno e o material de construção, os próprios ouvintes faziam excursões para irem aos fins de semana ajudar a fazer o que fosse preciso. A casa foi mobilada com tudo, desde a televisão ao frigorifico, fogão, etc. Passados estes anos continuamos a ser amigos, consegui influenciá-la no sentido que pudesse aprender a escrever e a pintar com a boca. Hoje escreve e pinta com a boca, tenho quadros de natureza morta muito bonitos. Escreve muito bem no seu computador já com o sistema de apoio na escrita com a boca e tem uma vida normalíssima. Quem fez isto? A força da rádio. Não se dava prémios a ninguém, mas pedia-se para ajudar. É incrível, pode-me dizer que os outros meios também o conseguem e conseguem, mas a rádio é muito persuasiva porque estamos só a ouvir a voz e a voz é uma coisa importantíssima.

Sente que esse papel tem sido ocupado pela televisão?

E quais são os programas que hoje fazem companhia às pessoas? São programas de rádio autênticos. Os programas da manhã, da tarde que levam lá pessoas e as músicas que tocam faz lembrar os programas de rádio de outros tempos de onda média. Não quero citar nomes, mas todos os programas de televisão que estão aí que preenchem as manhãs e as tardes têm um formato que é o da rádio. A televisão não é aquilo, a televisão é espetáculo, é cinema, é informação, é transmissão de jogos, etc., aqueles programas são de formato de rádio que passaram para a televisão. Aliás, a maior parte das figuras que estão a fazer esses programas saíram da rádio e foram para a televisão para fazer aquilo. Toda a minha vida fiz televisão, comecei a fazer ainda ela era a preto e branco. A televisão vendeu a minha cara, tornou-a conhecida, mas as pessoas que me conhecem dizem: o ‘Sala é da rádio, não é da televisão”.

Até porque tem uma voz incontornável…

Como costumo dizer, é ir ao café e voltar-se uma mesa que está de costas para mim porque me reconhecem pela voz. Isso é fantástico. A nossa voz é um bocadinho a impressão digital sonora. Sinto-me muito feliz porque a rádio tornou isso muito importante e ainda hoje o é.

E que marcou gerações…

É muito gratificante saber que entrei na vida das pessoas durante décadas. É muito comum as pessoas virem ter comigo na rua e dizerem-me: ‘Era a minha companhia, era como se fizesse parte da família e uma manhã sem a sua voz não era igual’. Fico super sensibilizado com isso.

Outra imagem de marca que tinha era a dos fartos bigodes…

Era um pouco a minha imagem de marca. Tive vários formatos, mais pequeno, maior, às tantas, era farfalhudo, grandalhão e até o usei com pontas arrebitadas. São fases de moda, mas durante mais de 40 anos tive bigode. Tive de o tirar para fazer uma cena televisão, uma brincadeira em que tive de imitar José Cid e as pessoas depois até me começaram a dizer que parecia mais novo. E naquela idade tirarem quatro ou cinco anos era uma alegria e nunca mais voltei ao bigode.

É considerado o “Sr. da Rádio”. É um legado pesado?

Ficamos sempre felizes com determinados tipos de referências, com determinadas frases ou com designações que nos fazem. Agora gosto muito que me digam que sou um homem da rádio, felizmente há muitos senhores e senhoras da rádio. Deixa-me muito honrado e valeu a pena toda a caminhada.

Até foi condecorado por Marcelo Rebelo de Sousa…

Já era comendador, entregaram-me a 10 de junho de 2010 as insígnias da Ordem Numérica. Agora esta distinção de ser comendador da Ordem do Infante D. Henrique é qualquer coisa que me deixou profundamente emocionado.

Esteve 40 anos a acordar às 5h da manhã. Acredito que não tenha sido fácil…

Há muita gente a levantar-se a essa hora e até mais cedo para ir para os seus empregos só que há uma diferença grande em relação ao meu caso é que a grande maioria das pessoas tem de fazer esse esforço diário para ir para um trabalho que não gosta, que é a sua subsistência, obrigados a fazer uma coisa rotineira e para a qual não tem grande paixão durante anos e anos. Comigo foi diferente, tive a sorte de acordar para fazer uma coisa que adorava, em que todos os dias era um desafio novo ou porque tinha perspetivas de fazer isto ou aquilo, porque era um programa especial ou porque tinha que fazer um espetáculo ou porque ia fazer uma emissão temática sobre qualquer coisa que tinha escolhido. Isso parece que não, mas muda tudo. Não deixa de ser uma violência porque perde-se a vida ao nível pessoal. Gostava de cinema e deixei de ir à noite ao cinema porque adormecia a meio nos filmes. Um amigo convidava-me para ir jantar a sua casa e estava sempre a olhar para o relógio e a pensar que já só ia dormir cinco ou seis horas. Era uma sensação desgastante, não era um horário fácil. Houve muitas pessoas a fazerem o programa da manhã, mas que duravam uns anos porque não aguentavam mais. Depois temos de acordar de uma forma que é o facto de estarmos bem dispostos. Não podia ir para o programa da manhã, em que o grande objetivo era ajudar as pessoas a levantarem-se com energia, com boa disposição, cansado, derrotado ou sem otimismo. Não foi uma tarefa fácil.

Isso não criava pressão?

A partir de certa altura sim, e comecei a perceber isso muito bem. No início estamos a fazer uma coisa que nos dá muito gozo, sabemos que temos muita gente a ouvir, mas a coisa fica por aí. A partir de uma certa altura, começamos a perceber que as pessoas voluntariamente escolhem uma sintonia ou uma estação ou um programa e isso é um ato seu. Trata-se de uma decisão própria e à partida se o fazem é porque gostam, é porque querem. E quem está do outro lado deve ter plena consciência que as pessoas nos querem ouvir de uma determina forma, porque gostam do nosso trabalho ou porque gostam de nós e isso começa a responsabilizar-nos. Mas como disso foi uma coisa que veio mais tarde, com a maturidade e com a idade tornarmo-nos mais conscientes das coisas. Antes não, andava muito no olho do furacão.

Como entrou no mundo da rádio?

Entrei porque queria ser ator. O meu grande sonho era o teatro, mas não tenho jeito nenhum e comecei a fazer uma coisa que havia, na altura, que era teatro radiofónico, eram as radionovelas. E grandes atores que são hoje conhecidíssimos e prestigiadíssimos começaram com as radionovelas. Começo então na rádio porque percebo que não tenho jeito para o teatro e sou aconselhado a não seguir e quando dou por mim estou a fazer outras coisas. Diziam que improvisava bem, que tinha uma voz com uma característica muito própria e disseram-me que se quisesse, se trabalhasse muito e se me dedicasse com paixão podia vir a ser um bom locutor ou um comunicador. É assim que começo a fazer os meus primeiros programas e a entrar nas primeiras experiências.

Mas agora tem um espetáculo dos 60 anos a percorrer o país…

É engraçado que teatralizo as coisas, claro que o espetáculo é feito com artistas muito talentosos: bailarinos, cantores, atores. Estou praticamente o espetáculo todo em cena, sou uma espécie de ligação entre diferentes décadas e histórias da vida. Está-me a dar muito gozo. Esta semana vamos estar no Europarque, em Santa Maria da Feira. Até agora tem corrido tudo muito bem, temos estado com sessões esgotadas e espero que desta vez aconteça o mesmo.

No Dia Mundial da Rádio, o que acha em relação ao seu futuro?

Inquieta-me um bocadinho, principalmente quando vejo a situação em que as rádios estão. Fico mesmo assustado, embora ache que hoje em dia vivemos momentos fantásticos. Para já, as formas tecnológicas permitem que a rádio hoje e não só seja diferente do que era. Tecnologicamente avançou-se de uma maneira incrível, mas também se criaram espartilhos que antigamente não existiam. A rádio atualmente está muito prisioneira das playlists, da música repetitiva que é construída numa playlist que se repete quase de hora a hora. Há pouca liberdade para o comunicador, que diz uns fait divers e as horas. Nunca fui assim. Sou defensor da rádio de autor, que é uma rádio com assinatura, em que influencia aquelas duas ou três horas na forma em que escolhe a música, nos seus critérios editoriais, na maneira como fala e no cenário que quer dar. Hoje isso não acontece. Gosto de ser surpreendido, gosto de ligar a rádio e ouvir uma coisa que me surpreenda que me leve a dizer: “Que interessante, que conversa gira’. Tecnicamente temos possibilidades que nunca se tiveram, mas depois o aproveitamento que se faz disso nem sempre é o melhor. Há um espartilho com fronteiras tão rígidas e tão apertadas que às tantas não é nada e é tudo igual. Isso é péssimo.

Os programas parecem todos iguais…

Infelizmente, sim. Oiço muito rádio, principalmente quando estou no carro e acontece, muitas vezes, só saber qual é aquela estação depois de olhar para o visor e ver digitalizado o nome da estação, o horário e quem o está a fazer. Tirando isso, a música que toca ou a forma como é feita é igual.

Mas isso é impostos pelos interesses económicos?

Sempre houve, mas acho que hoje existe uma forma mais contundente.

Sente-se esperançoso em relação ao futuro?

Sim, sou uma pessoa esperançosa, para mim o copo está sempre meio cheio. Acredito que nos momentos difíceis e, mesmo nesta altura com os problemas que existem, as soluções possam surgir, poderão é nunca serem iguais às que já se fizeram e se calhar tem de se fazer de outras formas, mas isso é normal. Quando comecei a fazer a rádio, a emissão tinha um locutor, um técnico lá fora, um sonorizador. Por exemplo, quando fazíamos reportagens da Volta a Portugal em Bicicleta iam cinco carros com materiais, com não sei quantos locutores, hoje em dia desapareceu. Hoje em dia uma emissão de rádio faz-se com um individuo que faz tudo tecnicamente. As coisas mudaram e é claro que isso tem custos e os custos são sempre humanos. É tudo muito limitador, porque aquilo que podia ser feito e dava trabalho a 10 pessoas passa só a ser feito por uma ou duas pessoas.

Apesar de ter estado afastado da política, antes do 25 de Abril chegou a ser chamado ao SNI (Secretariado Nacional de Informação) por causa de uma piada. O que se passou?

Foi o único caso, mas tenho consciência que se fosse jornalista e se estivesse na área da informação teria tido vários casos como muitos colegas meus, que eram pessoas que tinham ideias formadas do ponto de vista político e eram contra o regime e contra a ditadura em que vivíamos. Mas estava na área do entretenimento, que era muito mais pacífica a esse nível. Chateavam-me mais por causa das músicas que se passava, porque a área do entretimento não se metia muito nas coisas de dizer. Aliás, no espetáculo numa das cenas estou a ser interrogado, em que termino um programa que fazia da manhã e sou chamado no dia a seguir. Fui ouvir o programa para tentar perceber o que tinha dito e não consegui descobrir nada, mas quando lá cheguei meteram-me a gravação e perguntaram-me o que queria dizer com aquilo, em que termino: ‘Até amanhã, se Deus quiser e a previsão aponta para um dia cheio de sol, aproveitem o sol porque por enquanto, segundo parece, quando nasce ainda é para todos’. Disseram-me que havia uma intenção, tinha 20 e poucos anos, no entanto, terminaram daquela forma paternalista: “Temos respeito pelas vossas profissões, mas nós estamos atentos”. No entanto, tive colegas meus da área da informação que viram as suas carreiras cortadas, mutiladas totalmente por causa da sua linha de pensamento porque queriam liberdade. Felizmente que esses tempos acho eu já voaram, de vez em quando ainda há uns resquícios, mas não são regra, são exceção, e antigamente era a regra.