A traição da Esquerda

As condições laborais da negra que acorda às 5 da manhã e regressa a casa pelas 22 horas para trabalhar na casa da feminista ou o trabalho precário do jovem que é licenciado, são irrelevantes perante o racismo estrutural do Ocidente e a necessidade de detestarmos o nosso passado.

Espanta os distraídos o crescimento de uma nova direita e o facto de muitos desses votos pertencerem ao universo sociológico da esquerda.

Por que cresce essa direita? E se for um sintoma e não uma causa?

O hiperliberalismo é a mundividência predominante no Ocidente, trata-se de um sistema de poder transnacional sem escrutínio, que nada tem de democrático, o comunismo é um anacronismo que se extinguirá naturalmente e a nova esquerda é uma espécie de idiota útil desse novo liberalismo. O que resta?

As pessoas não se transformam muito rapidamente em perigosos fascistas e nem todos serão ignorantes hipnotizadas pelas forças do mal. As pessoas estão cansadas e fartas e as razões são abundantes e sérias. É o homem comum, o trabalhador, o jovem que estudou e sacrificou-se e que depois se encontra sem perspectivas e que se confronta com o mundo laboral precário, com dificuldades de acesso à habitação condigna e a uma vida decente que vota nessa direita. 

Uma das principais razões deste deslocamento está no facto desta esquerda do presente ter traído os ideais de esquerda, basta pensar um pouco ou então ler gente insuspeita como Cristopher Lasch, Richard Sennett, Jean Claude-Michea, Wolfgang Streeck, Mark Lilla, entre outros.

A esquerda digna morreu nos anos 60 quando se vendeu ao consumo, como refere Wolfgang Streeck: «A luta contra o “teor do consumo” ainda teve alguma ressonância junto dos estudantes de 1968, pouco tempo depois começou um período de consumismo e comercialização nunca visto no mundo, com a participação activa e maioritária precisamente da geração que, ainda havia pouco, lamentava e combatia a mercantilização da vida do capitalismo».

O homem comum não percebe porque trabalha cada vez mais e está cada vez mais endividado e tem cada vez menos dinheiro, e não entende também porque não tem serviços públicos com o mínimo de qualidade, mas há milhões de euros para as questões trans e para a ideologia LGBT. As condições laborais da negra que acorda às 5 da manhã e regressa a casa pelas 22 horas para trabalhar na casa da feminista ou o trabalho precário do jovem que é licenciado, são irrelevantes perante o racismo estrutural do Ocidente e a necessidade de detestarmos o nosso passado.

 A esquerda desapareceu e no seu lugar ficou apenas uma espécie de paródia, quando a esquerda que existiu, seria hoje mais necessária que nunca. É urgente uma crítica prática relativamente ao novo regime liberal das últimas décadas e ao novo capitalismo. Esta nova formulação do liberalismo desregulou as sociedades, liquidou as soberanias nacionais, mercantilizou todas as esferas da vida, degradou o significado do trabalho e os direitos laborais, transformou os Estados e organizações como a União Europeia em plataformas ao serviço de um poder transnacional, assente na exponenciação ilimitada do capital, que tem destruído e privatizado os serviços públicos e as funções sociais. Este liberalismo liquidou qualquer ideia de comunidade, de bem comum, destruiu os valores do enraizamento e da decência comum de que falava Orwell. As desigualdades sociais e económicas entre pessoas e regiões voltaram a crescer.

Onde está a esquerda? Desapareceu. Para este simulacro pós-moderno, o povo, os pobres, a classe média, não interessam, mas sim as ficções vitimárias e as monomanias grupais. O que divide é mais importante que aquilo que une. O machismo, a homofobia, a transfobia e racismo, residuais no Ocidente, servem perfeitamente o novo liberalismo para que se desvie a atenção da destruição da importância do trabalho digno, a proletarização da classe média, a obsolescência de muitos humanos, a redução de centenas de milhões de pessoas a uma nova escravatura e o desenraizamento dos humanos de tudo o que criava vínculos.

A nova esquerda traiu quem deles mais necessitava. O homem comum, o trabalhador da classe média e baixa ficaram politicamente órfãos e aqueles que não desistiram e não se abstêm, encontram numa nova direita esse espaço que foi da esquerda. Esta nova esquerda acabou acomodada pelo novo capitalismo na ideia de progressismo. A aparente ideia de guerra cultural é o viático perfeito para o novo capitalismo, delimitando o velho mundo que resistia à transformação do planeta num centro comercial e num novo mundo sem identidades, sem fronteiras, sem limites e sem chão.

O simulacro de esquerda é perfeito para a hegemonia hiperliberal, fornecendo uma caução à derrocada dos valores de uma civilização e da sua história às mãos do crescimento do novo capitalismo. Nos partidos desta esquerda pós-moderna, os seus quadros são dominados por gente que só consegue viver no sistema capitalista e são bons burgueses, mas parecem desprezar o povo.

Esta esquerda tem a função de demolir qualquer forma de identificação, resistência ou enraizamento. Essa destruição é a condição fundamental para a expansão infinita que move o grande capital que não deve conhecer qualquer limite. A ideia de um indivíduo atomizado sem laços, nem chão, a não ser os estímulos induzidos pelos média e pela ‘internet’ é o epítome do consumidor ideal.

Roger Debray sinalizava o maio de 1968 como a primeira revolução hiperliberal e escreveu Pasolini: «O retrato deste novo rosto ainda em branco do novo Poder atribui-lhe traços vagamente “moderados”, devidos à tolerância e a uma ideologia hedonista auto-suficiente; mas também traços ferozes e substancialmente repressivos: a tolerância é falsa, pois nunca nenhum homem foi obrigado a ser tão normal e conformista como o consumidor». Neste quadro, importa referir, que a direita admitida pela mundividência hiperliberal é também a que se converteu à inevitabilidade desse poder transnacional e ao predomínio dos mercados sobre os Estados e as pessoas. Como explica Baudrillard, se a antiga dominação passava por um sistema de práticas autoritárias e de valores positivos inquestionáveis, a hegemonia hiperliberal contemporânea passa pela liquidação simbólica de todos os valores. Estamos também, até pelo uso de recursos tecnológicos inéditos, perante uma obra de homogeneização total de um novo totalitarismo, que para colmatar a ausência de valores, os substitui por uma farsa, o progressismo, ou seja, a nova esquerda.

…Sobre essa nova direita, ainda é cedo para sabermos ao certo o que é.