A maré branca

Ou se aposta mais no combate ao tráfico, não assumindo que é uma luta perdida, ou se formaliza o mercado, como sucede com o tabaco ou o álcool.

Lê-se no Le Monde que o Ofast, a agência francesa de combate ao narcotráfico, fez uma radiografia preocupante sobre a ameaça do tráfico de droga e o crescimento do mercado da cocaína, com a exacerbação da violência associada a grupos criminosos. O diagnóstico é comum a vários países europeus, porque o valor da cocaína se multiplica por 30 quando atravessa o Atlântico, o que proporciona recursos inesgotáveis às redes. Os nossos portos e praias estão a ser invadidos por uma maré branca. Na Europa – e, pior ainda, nos Estados Unidos – há cada vez mais toxicodependentes, muitos dos quais não encontram forma de sustentarem licitamente a sua adição, e muitos outros cidadãos são consumidores frequentes, que não estão viciados, mas usam drogas.

Sabemos que este flagelo tem forte impacto na saúde, na segurança e proteção de pessoas e bens, nos equilíbrios sociais e na economia. É incompreensível, por isso, que o tema não mereça maior atenção na discussão pré-eleitoral em Portugal, onde se fala de insegurança, de pobreza, dos sem-abrigo, da corrupção, da falta de produtividade, dos problemas na saúde e na escola, mas nunca se identifica o tráfico e o consumo de drogas como uma das fontes dos problemas. Aliás, se alguém suscita o tema, como é o meu caso, acena-se sempre com o fator social e a prevenção, o que é apenas um dos vértices do problema, ignorando-se a questão da saúde e evitando-se a questão securitária. De resto, a mais recente legislação aprovada no Parlamento serve os interesses da distribuição, facilitando o retalho através do consumidor.

Entretanto, vemos sinais exteriores de riqueza que resultam do branqueamento de capitais do negócio da droga, vemos um incremento nas doenças infetocontagiosas que antes estavam controladas (como a tuberculose), aceitamos que haja territórios nas nossas cidades onde a autoridade do Estado não é exercida, admitimos que os cidadãos tenham que contratar vigilância para a sua vizinhança, deixamos que as crianças de famílias humildes vejam nos seus colegas de escola ou vizinhos de famílias de traficantes o melhor exemplo, porque têm acesso aos bens mais cobiçados, proibimos os cigarros em estádios onde os fumos não são só das tochas. Para alguns, em particular para o Bloco de Esquerda, este é um discurso populista. Sucede que o populismo e a demagogia alastram, isso sim, quando os estados não cumprem cabalmente os seus deveres perante calamidades sociais flagrantes.

Outro aspeto que raramente se refere é que a inação dos nossos estados relativamente ao consumo e ao tráfico tem um terrível impacto nas sociedades dos países produtores, condenando as suas populações. Há dias, Roberto Saviano, jornalista italiano e autor de Gomorra, escrevia no The Guardian que «a ausência de uma reflexão séria sobre a adição e o consumo e sobre a legalização está na origem do que está a suceder no México e Equador. Se olharmos às cenas violentas nas ruas, entenderemos do que as máfias são capazes. Temos dois caminhos: ou tratamos do tráfico, ou ele vai continuar, por meios militares, a ocupar a democracia – ou o que resta dela».

Podemos fechar os olhos e ignorar o problema distante. Mas o risco não reside apenas nos países produtores. As democracias dos países consumidores já sofrem as consequências, mas o pior está certamente para vir. Só há duas soluções: ou se aposta mais no combate ao tráfico, a tudo de que ele depende e ao que proporciona, não assumindo que é uma luta perdida, ou se formaliza o mercado, como sucede com o tabaco ou o álcool. O que não se pode é assobiar para o lado.