Bruno Pereira: “Depois das eleições podemos ter um problema sério”

O oficial da PSP é um dos rostos da contestação e tem lutado, com outros, para que os movimentos inorgânicos não radicalizem os protestos. Mas acredita que se o próximo Governo não atender às reivindicações, poderemos ter um problema bastante sério.

É a primeira vez que se vê o sindicato dos oficiais numa luta sindical.

É verdadeiramente histórico ter oficiais a assumir a dianteira e a encabeçar o movimento e  um protesto da maneira como estamos a assistir. Acho que foi uma coisa muito natural. E vai também com aquilo que é a naturalidade da essência do que é um oficial de polícia. Nas alturas em que se impõe, um oficial tem que se chegar à frente, e o Sindicato Oficial de Polícias também se chegou à frente, exatamente para ser, digamos, um bocadinho a cola, não é a única, mas a cola maior para conseguir ter uma unidade tão alargada como a que temos na Plataforma, com todos os sindicatos da PSP e com todas as associações da GNR, exceção feita a uma, a dos oficiais da GNR, mas que têm colaborado. Não foi o Sindicato Nacional de Oficiais de Polícia, mas foi sim a apatia, omissão e incúria e esta forma incompreensível de o Governo tratar as forças de segurança. Isso sim, foi a verdadeira cola e ainda hoje é a cola que nos liga de uma forma histórica.

Isso deve-se ao facto de o interesse ser comum, até por questões monetárias.

Mais do que uma questão monetária, é uma questão de dignidade. A questão monetária dá apenas respaldo àquilo que é a forma também ela indigna de um Governo, e em particular este, continuar a tratar as forças de segurança desta forma, ainda para mais quando tantas vezes embelezam os seus discursos sobre-elevando o trabalho e o papel essencial das forças de segurança. Ainda agora o fez outra vez, quando o senhor primeiro-ministro me dirigiu a carta que dirigiu e onde destaca, e muito bem, aquilo que é a dimensão insubstituível das forças de segurança. Porque diz o que diz e assume, mas depois os atos e as decisões não acompanham exatamente este discurso, muito bem preparado, muito belo daquilo que é uma área essencial. Ainda esta semana fui revisitar uma declaração dele enquanto ministro da Administração Interna, onde ele tomava posição na questão do direito à greve, em que já assumia, até de forma conservadora, que as forças de segurança não poderiam ter direito à greve. E isto foi debatido outra vez agora, nesses debates eleitorais mais recentes.

Como sabe, grande parte da opinião pública é contra a greve das forças de segurança.

Mas isso é uma discussão que acho que devemos ter com toda a sobriedade democrática que se impõe, não agora, mas a breve trecho.

É a favor da greve?

Tenho dúvidas que haja uma restrição absoluta do direito à greve. Admito uma restrição relativa, admito que, efetivamente, os critérios de recurso à greve possam ser um bocadinho mais limitados, mas tenho imensas reservas à luz daquilo que é a arquitetura da Constituição e das suas formulações que possa haver restrições absolutas de direitos, ainda para mais quando temos aqui várias assimetrias. Desde logo, e à cabeça, o facto de termos serviços de segurança que o podem fazer de forma completamente livre, quer o SEF o podia fazer, a Polícia Judiciária pode fazer, os serviços de informações podem fazer. Temos inclusivamente os magistrados a poderem fazer. Não há impedimento. Aquilo que é uma classe representativa de um dos pilares do Estado de Direito, que é a Justiça, tem pleno direito à greve e as forças de segurança não têm.

Por que tem a ver com o dia-a-dia na rua, as pessoas não serem assaltadas, não se sentirem inseguras, etc.

Sim, diz-se que os criminosos não têm folgas, não fazem greve… Então pergunto: se é assim tão importante assegurar e ter uma garantia plena de que as forças de segurança não falham naquilo que é uma área que só elas ocupam, como é que as compensam? Fazendo, mais uma vez, um esquecimento, não se lembrando delas. É isto que é o paradoxo, é isto que é incompreensível, intolerável. E isto não é só de agora, esta decisão foi longe demais e fez exatamente com que houvesse uma propagação de desgosto e desalento como nunca antes vista. Esta diferenciação foi cavada e criada ao longo de anos e, sobretudo, com o Governo socialista.

Como é que dizem que o subsídio de missão da PJ é de mil euros, quando a percentagem vai desde os 30% para o diretor nacional até aos 5%.

Um inspetor da PJ ganha 15% dos 6800 euros do diretor nacional.

Mas isso é comparado com os oficiais da PSP?

Não, não. Um inspetor da PJ é equiparado a um agente da PSP e aos guardas da GNR. Os inspetores nem desempenham funções de comando, tão pouco.  A base é 15%, discutindo, porque nós não temos uma correspondência direta em termos de estrutura.

Então os oficiais da PSP e da GNR ficariam com quanto?

Não sei, agora tem de haver uma graduação possível.

Mas na PJ vai de 30 a 5%.

Não, 5% é para outras carreiras. Carreira de inspeção e de investigação são os únicos que são polícias, os outros não são polícias. Não vou comparar os meus polícias com agentes da segurança privada. Isso até é ultrajante. Nem com polícias de laboratório, que estão sujeitos a que risco? O que é certo é que houve um arrastamento para as outras carreiras da Polícia Judiciária.

O que lhe ocorre dizer quando o sindicato da PJ diz que vocês não têm o curso que eles têm, não têm a licenciatura, a formação, etc.

Ter licenciatura em quê? Em artesanato, conservação. Pode ir para a PJ com qualquer licenciatura de três anos. Vamos fazer então a comparação entre graus académicos. Um oficial da Polícia ou da Guarda tem cinco anos de formação superior, cinco.

A ASFIC já disse que os vossos cursos não têm grande credibilidade. É dado por vocês próprios e não tem grande credibilidade.

O Instituto Superior de Ciências Policiais não tem grande credibilidade? Eles são certificados da mesma forma que os vários cursos que dão a licenciatura em Desporto, Literatura e Artesanato, em História, em Agronomia. Qualquer um destes cursos permite o poder de concorrer à PJ, é isso que faz deles uma pessoa mais competente para a missão de polícia? Podemos ir por aí, não tem problema nenhum. Os oficiais têm cinco anos de formação superior em Polícia, cinco anos! Cinco anos de formação superior. A única que existe e que os forma para virem a assumir funções de alta direção e de comando. Não são funções de meros executantes. Do ponto de vista material, a função é exatamente a mesma. Em relação aos inspetores e aos agentes, eles dizem que um inspetor tem que ter um curso superior, enquanto na PSP ou na GNR basta o 12.º anos. E que, portanto, a investigação criminal feita pela PJ não se pode comparar à da PSP ou GNR.

Porquê? Porque eu tenho um curso de três anos? E estamos aqui a discutir o salário ou o subsídio? Se eu admito, do ponto de vista abstrato, que isso tenha que ter uma tradução de valorização do salário maior, ela já existe e, pior, ela continua assimétrica, porque um inspetor da PJ ganha mais do que um oficial da PSP e da GNR no início de carreira. Isto é que é claramente um paradoxo, porque, por comparação em termos de conteúdos funcionais, nem é comparável, e é ultrajante, no limite. O desempenho material de funções de um oficial da Polícia, no início de carreira… Imagine, na investigação criminal onde eu trabalhei, eu comandava 60 polícias de investigação criminal, como subcomissário, com 24 anos. Em termos de comando ou supervisão do mesmo número, sabe o que é que precisava de ser na PJ? Coordenador. Sabe quantos anos demora a chegar a coordenador? Mais de 20. É a comparação única que pode fazer. Eles naturalmente vão-lhe dizer assim:  ‘Mas eu lido com a criminalidade mais grave’. E eu pergunto: quem é que está sujeito todos os dias ao perigo? Quem é que está todos os dias sujeito a estar nas zonas mais difíceis, a ter que confrontar os criminosos na primeira linha? Quem tem de responder às situações mais graves e imprevisíveis? O número de mortos, é só ver de um lado e de outro, bem como o número de agredidos. Está bem de ver quem é que naturalmente reage ao risco. Já fui comandante de brigadas durante 12 anos. Sempre que levo a cabo comissões de investigação criminal, desenvolvo-as e tenho tempo para as pensar, para as planear, para as executar. Porquê? Porque estou a controlar o quê? O cenário, eu consigo controlar as variáveis. Sei o que é o meu alvo, ou os meus alvos, quando é que os vou abordar, quando é que os vou neutralizar, quantos recursos é que vou utilizar exatamente para o fazer. Se vou utilizar cinco, dez, 20 polícias? Operações Especiais? Helicópteros? Aviões? O risco é mitigado. Não tem nada a ver com a resposta de primeira linha e, sobretudo, a primeira linha que é a mais difícil. Mas você vai ter que reagir perante cenários que não conhece, o número de pessoas que não conhece, com eventuais posse de
armas que não conhece, num sítio que não conhece. Isto sim, é risco.

Normalmente são os polícias e os guardas que vão à frente e depois é que entra a PJ?

Sempre, a PJ entra no momento em que a situação está controlada.

Acha que não há nenhuma diferença entre um agente da PSP que faz investigação criminal e um inspetor da PJ que faz o mesmo?

Do ponto de vista material? Do ponto de vista daquilo que faz? Não.

O trabalho é equivalente?

Materialmente falando, sim, indiscutivelmente. Aliás, quantas investigações quer que já transitaram da PJ para a PSP? Quantas grandes investigações em Portugal já foram levadas a cabo pela PSP e não pela PJ? E com isto não estou a tirar qualquer mérito ou valor àquilo que é o trabalho essencial que a Polícia Judiciária faz. Não me compreenda mal.

Os sindicatos foram ultrapassados pelo agente Pedro Costa? Isto é, ele liderou, de certa forma, os protestos.

Não consigo ver dessa maneira, tanto mais que dia 30 foi agendado pela Plataforma para as manifestações de Lisboa e do Porto. Desde o início que saudámos e estivemos ao lado de  Pedro Costa, naquilo que foi um ato admirável que desbloqueou uma adesão massiva de milhares de polícia a uma causa que é uma causa de todos. É uma causa de todos nós. Pedro Costa tem um grande mérito por ter sido ele, nesta dimensão, o dínamo que veio aglutinar ou a desencadear aqui um efeito de aglutinação total. Agora, a Plataforma já existia, já estava a fazer o seu trabalho, já tinha anunciado várias formas de protesto.

Não acha que o primeiro vídeo dele teve uma grande importância para os polícias irem para a rua?

Indiscutivelmente, isso ajudou imenso.

Tem consciência de que as afirmações do líder do SINAPOL sobre as eleições foi um momento de viragem em que vocês perderam, de certa forma, a população?

 Relativamente à questão das eleições? Admito pelo menos que isso tenha desfocado o caminho que estávamos a fazer. E compreendendo a nota que o Armando Ferreira, presidente do SINAPOL, quis fazer, relativamente ao papel insubstituível das forças de seguranças em termos de missões em áreas estratégicas e críticas sobre as quais, havendo uma qualquer paralisação da natureza da que tinha ocorrido, poderiam ser extremamente nefastas para o estado de Direito. Não é só em termos de eleições. Por exemplo, quem entrega e recolhe os exames nacionais são as forças de segurança. Exatamente da mesma forma que os boletins de voto para qualquer ato eleitoral. E vou fazer um parêntesis: o ato eleitoral dos Açores correu normalmente como sempre correu. As forças de segurança cumpriram o seu papel e a sua missão e não era certamente no próximo que se iria colocar essa questão. Na linha 112… Sabe quem está na linha? Agentes da PSP e militares da GNR. Se houvesse uma paralisação… O caos, o caos… Estamos a falar de milhares de chamadas. Controlo de fronteiras: quem é que está?

No Aeroporto de Lisboa 60 estiveram de baixa.

Mas, mesmo assim, continua a responder. O que lhe estou a dizer é que há um acervo, uma multiplicidade tremenda de áreas onde a PSP e a GNR atuam, em que ninguém mais pode atuar. Ninguém os pode substituir.

Onde quer chegar com isso?

 Se a polícia continuasse… A possibilidade de haver aqui paralisações ou quebras naquilo que é a capacidade de resposta da polícia e da GNR, várias áreas críticas podem ficar em crise.

Admite, então, que isso possa acontecer?

A contaminação e a infiltração e introdução daquilo que possa ser uma influência negativa por parte de movimentos inorgânicos, coisa que não está a acontecer até agora, pode levar a que rapidamente se viralizem comportamentos que extravasem aquilo que é o limite do sacrifício, o limite do razoável, o limite do comportamento exemplar… Isto pode levar a que haja problemas…

Tem consciência de que me está a dizer que há essa hipótese?

Não, o que eu disse…

Quando diz que os movimentos inorgânicos…

O que a Plataforma tem feito é tentar evitar exatamente que, face à perpetuação deste estado emocional, de uma apatia total, de um silêncio ensurdecedor, de uma não resposta do Governo, que isso pode contaminar aquilo que é o bom senso, a tolerância e a exaustão que já reina em 43 mil polícias e militares. E o alerta que foi feito foi no sentido de… Há um sem número de áreas onde a polícia é insubstituível e, portanto, se isto acontecer, na possibilidade hipotética de isto acontecer, pode influir não só sobre o comando de policiamento de eventos privados, como num sem número de outras coisas. Se me perguntar, ao dia de hoje, se eu acredito que algum deles está em risco… Não. Nós trabalhamos pelas pessoas e para as pessoas e, em momento algum, independentemente daquilo que esteja subjacente ao nosso protesto, que é altamente justo, não iremos pôr em causa aquilo que é, pelo menos, a resposta de primeira linha e aquilo que é crítico. Onde também se inclui, naturalmente, um ato eleitoral.

Também tem consciência de que a história do futebol e a vulgarização das baixas também não jogaram a favor da causa?

Da mesma forma que o comentário do Armando Ferreira conseguiu… Também elas levaram a que se recentrasse a discussão em algo que, para mim, não é o prioritário e essencial. O essencial é perceber se a luta é justa, o porquê da luta, o que levou a que ela se constituísse, o que levou a que um protesto ganhasse dimensões singulares e históricas como ganhou…

Vamos a perguntas mais diretas. Não vai haver um jogo de futebol adiado por falta de segurança?

Isso foram movimentos puramente espontâneos, foi algo que aconteceu provavelmente por decisões inorgânicas ou por eventos inorgânicos que levaram exatamente a que houvesse este tipo de resultado. Isso não teve qualquer tipo de gestão da Plataforma. A Plataforma, tudo aquilo que previu, tudo aquilo que projetou, tudo aquilo que calendarizou aconteceu e como foi cumprido exatamente com maior elevação, construído com o cumprimento regras.

Não quer deixar a ‘luta’ sair da agenda até às eleições?

Não queremos deixar de sair.

Mas obviamente não vão bloquear nem o aeroporto, nem fronteiras?

Isso é contranatura e aquilo que é a nossa essência enquanto polícias. Os polícias não paralisam…

Mas, como sabe, 60 estiveram de baixa no aeroporto de Lisboa…

Se estão de baixa o conjunto, o que devemos perceber é: primeiro, por que é que estão de baixa. Segundo, porque é que, efetivamente, o estado emocional de tal ordem negativo levou a que se sentissem incapazes para prestar, para cumprir o seu dever. Isto é que devemos perceber. Costumo dizer que os polícias têm um trabalho normalmente com um limite de sacrifício muito grande, maior do que a normalidade das pessoas. Mas há um limite e as pessoas não podem continuar a cumprir a sua missão, ainda por cima sendo portadores de uma arma de fogo, que é um instrumento de trabalho – não é uma caneta – que, não se sentindo psicologicamente confortáveis para continuar a fazê-lo, naturalmente recorram a um médico e deem nota isso ao médico, porque não podemos, nem podemos admitir que um polícia não esteja com condições mínimas para poder fazer recurso à arma de fogo.

É uma coincidência dos diabos ficarem 60 polícias maldispostos…

Se calhar já estavam antes. Não estou a falar de uma questão passional, de uma indisposição. Estou a falar daquilo que é uma indisposição emocional para continuar a cumprir sua missão minimamente digna e equilibrada. E se calhar muitos polícias já estavam numa situação que já há muito tempo deviam ter colocado baixa. Os polícias lidam com o pior que há na sociedade. Os polícias lidam, impactam e têm que gerir e processar as emoções mais negativas que qualquer um de nós pode imaginar. Já vi coisas, já senti coisas, já cheirei coisas que ainda bem que uma parte das pessoas não cheiraram, não viram, não sentiram. Porque isso impacta sobre o nosso bem-estar e o nosso equilíbrio emocional, não tenho a mínima dúvida. Agora, se me disser que os polícias vão aguentando e que têm uma resistência tremenda, têm. Se calhar quiseram deixar de ter, provavelmente. Isso é ilegítimo? Não é. É ilegal? Também não é. É criticável? Isso deixo para si.

Se o próximo Governo não satisfizer as vossas pretensões…

Vai ser um problema sério. Se eles efetivamente não cumprirem com a palavra que já vieram dizer publicamente mais que uma vez, ambos [PSD e PS], de que é prioridade máxima discutir e resolver logo esta questão, vamos ter um problema sério. E não sei até que ponto os polícias vão admitir isto.

Não sabe como vão…

Como é que a plataforma vai conseguir ter mão nisto? Admito que não seja particularmente fácil.

Tem esperanças?

Tenho esperanças que não aconteça porque espero imenso dos meus polícias mas também compreendo que a dor seja muito grande.

Mas aceitam, por exemplo, que alguém apresente um plano a três anos?

É uma questão a ver. Até eu próprio lancei para cima da mesa a possibilidade de ser uma possibilidade. Depende exatamente do compromisso. O que estou a dizer, eu próprio não vejo com maus olhos que se possa discutir com alguma razoabilidade, com elevação, com veiculação com o compromisso, uma proposta a um ano, a dois, a três, dependendo daquilo que seja verdadeiramente a vontade de querer resolver esta questão. Nós não somos nenhuns mercenários. Somos polícias de Portugal. E os polícias prestaram compromisso de honra. Um compromisso não são meras palavras. São atos. E os polícias têm que saber estar à altura daquilo que qualquer um de nós espera deles: serem verdadeiros exemplos, verdadeiros modelos.

vitor.rainho@nascerdosol.pt