A dimensão da pobreza em Portugal é mais grave do que é revelado pelos números oficiais. O alerta é feito pela Cáritas e, de acordo com a presidente do organismo, Rita Valadas, «o que tem sido feito não é suficiente». «É manter a pobreza na mesma situação», considera Rita Valadas, revelando que no último ano foram apoiadas 120 mil famílias. Ainda assim, referiu que há muitos que não pedem ajuda e que não querem viver de apoios do Estado: «São pessoas muito desesperadas, muito desalentadas. Este desalento é mais difícil de combater do que a situação financeira».
Um cenário que vai ao encontro do que tem vindo a ser acompanhado pelo presidente da União das Misericórdias Portuguesas. «A sensação que temos é que continua a haver muitos pedidos de ajuda. Também temos a consciência que há cada vez mais pessoas empregadas que estão na pobreza ou no limiar da pobreza, temos ainda consciência que os casas monoparentais estão na mesma situação e aparentemente os números do INE não cobriram todo o tipo de situações», diz Manuel Lemos ao Nascer do SOL, referindo que o estudo da Cáritas «é um bom retrato do Portugal pobre que temos hoje». E lembra que esses números ‘arrasadores’ referem-se a situações após o recebimento de apoios por parte da Segurança Social. «Se assim não fosse, os números ainda seriam piores. Os apoios, por mais pequenos que fossem, foram ótimos e foram de saudar».
A organização católica afirma que, nos últimos anos, «houve apenas progressos ténues na luta contra a pobreza», realçando, em particular, a pobreza infantil como «uma clara violação dos direitos humanos fundamentais com um custo social e económico muito elevado» e referindo que, «entre 2019 e 2023, não se observaram progressos significativos no combate à pobreza mais extrema em Portugal. Em várias dimensões a situação até se deteriorou».
E acrescenta: «Em Portugal são ainda muitas as famílias marcadas pela pobreza e exclusão social. Esta assume múltiplas facetas e tem uma natureza eminentemente estrutural. Este primeiro relatório anual da Cáritas enfatizou a situação das famílias que acumulam inúmeras privações, de caráter monetário e não monetário», como indicam as conclusões do estudo que teve como base os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
Segundo o último relatório divulgado pelo gabinete de estatística, quase 4,4 milhões de pessoas em Portugal seriam pobres se não houvesse transferências sociais, baseando-se em dados de 2022, ano em que a taxa de risco de pobreza aumentou para 17%, sendo que o contributo das transferências sociais para a redução da pobreza foi de 4,2 pontos percentuais em 2022. Já considerando apenas os rendimentos do trabalho, de capital e transferências privadas, 41,8% da população residente em Portugal estaria em risco de pobreza em 2022, o equivalente a 4.365.675 pessoas.
Números nada animadores
Ao Nascer do SOL, a professora universitária Maria João Valente Rosa afirma que os dados «não são nada animadores em termos de coesão social» e chama a atenção para dois indicadores por comparação com 2021: «Em 2022, a taxa de risco de pobreza após transferência sociais aumentou particularmente para os mais vulneráveis – menos escolarizados e desempregados – e o fosso entre os rendimentos dos 20% mais pobres face aos 20% mais ricos aumentou».
Manuel Lemos chama a atenção para o facto de haver «muita gente que precisa de ter o segundo e o terceiro emprego para fazer face às despesas, nomeadamente aquelas que têm casa e que foram confrontadas com a subida das taxas de juro. Isto é, se não tivessem mais do que um emprego não conseguiriam pagar a prestação da casa».
Nos vários indicadores que avaliam as carências da população existe um que reflete de forma mais imediata os efeitos da subida dos preços dos bens e serviços. É a taxa de privação material e social. O estudo da Cáritas indica que «são mais de 500 mil as pessoas que vivem em privação material e social severa em Portugal. De acordo com as estatísticas oficiais, são particularmente afetadas as famílias com mais baixos níveis de escolaridade, com menor participação no mercado de trabalho, as famílias monoparentais, as que incluem pessoas com deficiência, e as famílias imigrantes».
O documento revela também que as maiores taxas de privação material e social severa são registadas nos desempregados (18,4%) e nos outros inativos (8,2%).
Em relação a 2023, o estudo aponta para o aumento da proporção da população com incapacidade de manter a casa aquecida (+3,3 pontos percentuais), com incapacidade de encontrar amigos/familiares para uma refeição (+1,6 pontos percentuais), com incapacidade para assegurar o pagamento imediato de uma despesa inesperada (+0,6 pontos percentuais) e com incapacidade em gastar semanalmente uma quantia consigo (+0,6 pontos percentuais). «Apesar do aumento dos rendimentos do conjunto da população, persistem segmentos de grande vulnerabilidade, muitos deles de natureza absoluta», diz o documento.
Manuel Lemos lembra, no entanto, que o conceito europeu de pobreza não tem só a ver com o rendimento, mas também com o acesso a um conjunto de coisas que um europeu deve ter, como férias, automóvel, viagens, etc. «Tudo isso que um europeu normal tem e que muitos portugueses deixaram de ter», conclui.