João Pedro Marques. ‘No movimento woke há sentimento de culpa, ingenuidade e fanatismo’

Como historiador especializado no tráfico transatlântico de escravos, tem combatido estereótipos e ideias feitas. A propósito do seu livro A culpa do homem branco, explica por que acha que o movimento woke está a tentar ‘envenenar a História’.

Ao longo dos últimos anos tem-se empenhado em denunciar exageros, simplificações e omissões relativas ao papel dos portugueses na escravatura. Gosta de combater o politicamente correto e, no seu mais recente livro, A culpa do homem branco (ed. Guerra & Paz) enfrenta abertamente o movimento woke, que acusa de tentar «envenenar a História». Nascido em Lisboa em 1949, João Pedro Marques é licenciado em História e deu aulas no ensino secundário durante oito anos. Em meados da década de 1980 entrou para o Instituto de Investigação Científica Tropical. Especializou-se no estudo do tráfico transatlântico de escravos e acabou por doutorar-se na Universidade Nova de Lisboa, onde também lecionou. Atualmente vai repartindo o seu tempo entre os estudos históricos, a ficção (é autor de oito romances) e as controvérsias que alimenta com artigos na imprensa.

Aqui há tempo contaram-me, mas não sei se é verdade, que nos Estados Unidos da América haveria grupos que abordavam pessoas na rua e as forçavam a ajoelharem-se e a pedirem perdão pelos pecados do homem branco. Tem algum conhecimento disso?

Não é nada que saia muito daquilo que é plausível. Sobretudo no meio universitário, nos Estados Unidos, há coisas desse género.

Entre alunos?

Lembro-me de ter visto um filme, há uns quatro anos, de um tipo de direita que foi com uma bandeira provocar aqueles grupos antifa e depois foi perseguido na universidade e chegaram mesmo a vias de facto. Isso foi filmado. E as acusações, as exigências, eram coisas desse género.

Faz lembrar um bocadinho a revolução cultural chinesa, em que os professores eram humilhados por supostamente terem reprimido os alunos.

É a mesma gente. Estas pessoas, mesmo que não tenham consciência disso, são filhas dessa corrente de esquerda que vem inclusive da Revolução Francesa. Este título do meu livro, A Culpa do Homem Branco, é o título de um dos artigos que estão aí…

O artigo em que fala do debate que se gerou em torno de uma revolta de escravos no atual Haiti.

Exatamente, sobre esse debate que há na Assembleia em Paris [em 1791]. Nessa altura já é muito evidente que todo o mal que acontece no mundo pode ser reportado ao homem branco, que é o máximo responsável pelos malefícios da Terra. Todas as barbaridades que o branco fez dão direito a quem as sofreu de fazer barbaridades ainda maiores. No fundo, este espírito persiste entre a gente de esquerda. Já ando a escrever sobre estes temas e sobre estas pessoas desde o início do século, numa revista de direita chamada Atlântico. E de facto o argumentário dessas pessoas tem subjacente a convicção de que o homem branco tem uma culpa suprema de todos os malefícios da Terra.

Este é um confronto ideológico entre esquerda e direita?

É, ainda que em registos diferentes. Para ter uma ideia, o movimento woke fez um projeto de recontar a história dos Estados Unidos. Chamaram-lhe ‘Projeto 1619’. Publicaram no New York Times vários artigos de vários colaboradores – alguns historiadores, mas também jornalistas, psicólogos, economistas, ativistas – e depois puseram tudo num livro. Queriam que se considerasse que a origem dos Estados Unidos não remete para a guerra da independência face à Inglaterra no final do século XVIII, em que 1776 seria a data da fundação. Não. Para eles, a data da fundação dos Estados Unidos seria 1619, que é a data da chegada dos primeiros escravos africanos ao território dos atuais Estados Unidos. Nessa ótica wokista, são eles os fundadores dos Estados Unidos e não o homem branco.

Também há outro momento importante que é a chegada dos Pilgrim Fathers [protestantes ingleses que estabeleceram a primeira colónia americana em Plymouth, em 1620] no Mayflower.

Segundo esta ótica, os brancos são de somenos importância, a história do país foi construída pelos negros que vieram a partir de 1619, esses são os verdadeiros fundadores.

São os primeiros escravos a chegar à América, é isso?

Os primeiros escravos negros. Porque nos anos iniciais havia aquilo a que chamavam ‘indentured servitude’, isto é, trabalho coercivo por tempo limitado, em que usavam muitos ingleses e irlandeses brancos. Gente miserável que se sujeitava a vender a sua força de trabalho por um período limitado de tempo.

Uma espécie de servos?

Podemos dizer que sim. Isso continuou a usar-se até ao século XIX e equivalia quase a uma forma de escravidão, porque as pessoas, terminado seu contrato, não tinham meios para regressar nem para sobreviver. E, portanto, reentravam no circuito. Isso aconteceu muito, por exemplo, com os coolies chineses que foram para Cuba e para a América do Norte e do Sul – para o Peru, por exemplo. Tinham contratos de cinco anos, oito anos. Terminados os contratos, estavam na miséria, tinham que fazer um novo contrato. Não saíam desse ciclo. Entre os portugueses isso também se verificou. No século XIX, à medida que o tráfico transatlântico de escravos para o Brasil e para colónias das Caraíbas foi acabando, era necessária mão-de-obra e começaram a importar não só chineses e indianos, mas também muitos, muitos portugueses vindos da Madeira e do Minho. Eram pessoas que iam para o Brasil sem nada. Pagavam o transporte com a promessa do seu trabalho futuro. Chegavam ao Brasil destituídas de tudo e eram vendidas – o termo técnico é ‘arrematadas’: os interessados no trabalho dessas pessoas subiam aos navios, levavam, separavam famílias e tudo. Iam como trabalhadores temporários, mas depois acabavam por ficar. Os ingleses também usaram isso no século XVII. Houve um período em que, na América do Norte e nas Caraíbas, estiveram lado a lado escravos negros e esses trabalhadores forçados brancos. Mas, de facto, a capacidade da resistência dos brancos naqueles climas tropicais era muito menor e o sistema acabou. Passaram a importar exclusivamente escravos negros, que resistiam muito mais facilmente à malária, à febre amarela, às doenças tropicais.

Eu tinha perguntado se isto era um confronto entre esquerda e direita porque me parece que subjaz a estas reivindicações uma visão marxista de luta de classes, de uma divisão do mundo entre opressores e oprimidos.

Acho que é um confronto entre esquerda e direita, ainda que em registos diferentes. Porque a esquerda é ativista neste campo. A esquerda é que põe a questão. Por exemplo, quer impor este ‘Projeto 1619’ nas escolas, quer que seja esta a versão ensinada. A direita trumpista reage taco a taco a estes avanços e apresentou o ‘Projeto 1776’. Mas aqui em Portugal não temos essa direita tão reativa. A direita está…

À defesa?

Está numa posição de omissão, de silêncio, de atordoamento. Ou tem estado, está cada vez menos. Mas ao princípio a direita ficou numa posição de passividade, sem se pronunciar, como quem diz ‘vamos lá ver para que lado é que isto tomba’. Não estava bem por dentro.

Isso não pode ter a ver com o facto de se sentir desconfortável com os factos?

Sabe quem é o Jordan Peterson [psicólogo e autor canadiano, representante do pensamento conservador]? Ele disse, e parece-me adequado, que a esquerda não tem pejo em utilizar a mentira, o exagero…. A direita por um lado é escrupulosa e, por outro lado, não ter sido capaz de montar um discurso que seja motivador para os jovens e para as pessoas que estão a acompanhar estas questões. A esquerda tem este discurso justicialista.

Justiceiro?

E justiceiro: ‘Vamos repor a justiça no mundo’. Isto cativa muito as pessoas.

Em especial os jovens, que são por norma idealistas.

E os ‘psicopatas da esquerda’, como ele diz, os ‘narcisistas da esquerda’ são muito bons a explorar o nosso sentimento de culpa. Porque de facto o tráfico transatlântico de escravos é uma coisa brutal. Mas não fomos nós que descobrimos que era brutal. Aperceberam-se de que era brutal no século XVIII. E foram essas pessoas que lhe puseram fim. Não viemos agora descobrir a pólvora, descobrir uma injustiça que não tinha sido remediada. Isso já foi confrontado e custou muitas vidas, custou muito dinheiro, custou muito esforço político pôr fim a essa barbaridade. Mas não fomos nós que fizemos isso, não foi a Catarina Martins nem a Mariana Mortágua, ou o Daniel Oliveira, que escreve o Expresso. Não, foi o [William] Wilberforce [deputado britânico, líder do movimento abolicionista], foi o Lincoln [Presidente americano], que pagou com a vida, e milhares de norte-americanos que também pagaram com a vida uma guerra civil que tinha como um dos seus objectivos pôr fim à escravidão. Tudo isso já foi feito, mas a direita fica como que culpabilizada e sem saber o que fazer. E não monta um discurso de confronto desta narrativa. É necessário uma outra narrativa. E a outra narrativa é esta: abolição foi posta em marcha pelo homem branco. A escravatura é de fato uma coisa terrível que aconteceu à escala mundial e que vem desde…

Desde a Antiguidade, pelo menos…

Desde o Neolítico. A partir do momento em que começou a ser possível acumular comida – tanto os cereais como os rebanhos –, passou a ser possível manter mais gente e passou a ser possível manter escravos, em vez de os matar imediatamente. E até comerciar com eles. Portanto, a escravidão tem milénios. Encontramo-la por todo o mundo, em todas as épocas, desde a Coreia até à América pré-Cristóvão Colombo. O que é de facto específico é o fim dessa situação, e isso é um processo histórico exclusivo do Ocidente, e que o Ocidente depois impõe ao resto do mundo.

Neste e noutros livros seus tenho notado uma certa tendência para relativizar o papel dos portugueses neste flagelo. Mas há uma mudança importante quando os portugueses trazem esta prática para a Europa e ela adquire, por via disso, uma escala nunca vista. Nesse sentido, os portugueses não têm uma responsabilidade acrescida?

Acho que não. Não foi nada voluntário, não foi nada premeditado. O que acontece é que houve um pôr em contacto vários mundos a partir do século XV, com os Descobrimentos. Dá-se ali uma confluência de acontecimentos que foi infeliz. A escravatura sempre existiu na Europa e manteve-se durante a Idade Média. Em países como a Inglaterra ou a França, tornou-se residual porque foi substituída pelos servos da gleba, mas nas cidades italianas manteve-se. Para ter uma ideia, uma cidade como Veneza, no século XIV, tinha mais escravos do que Lisboa no século XVI. Só que eram escravos brancos, escravos que vinham, na maior parte dos casos, do que é hoje a Ucrânia, das orlas do Mar Negro. Eram eslavos – daí a palavra ‘escravo’ –, tártaros, etc. Alguns deles trabalhavam na produção de açúcar, em Creta, em Chipre, na Sicília, na Catalunha. O que acontece é que, no momento em que os portugueses iniciam os Descobrimentos ao longo da costa africana, há o fecho desses ‘mercados abastecedores’ de mão-de-obra escrava no Mar Negro, porque os turcos otomanos conquistam Constantinopla [1453] e bloqueiam a passagem do Bósforo e dos Dardanelos. Deixam de chegar escravos brancos ao Ocidente com essa proveniência, e os portugueses descobrem um mercado que tem disponibilidade e vontade de os fornecer. Porque, ainda que os primeiros contactos tenham sido violentos – os escudeiros portugueses desembarcam e arrebanham homens nas aldeias – isso terminou rapidamente.

E criam-se aquelas ‘redes de abastecimento’.

Exatamente. Porque se percebe que os africanos têm disponibilidade para fornecer pessoas em troca de panos, armas, cavalos, álcool, tabaco… Para agravar esta situação, no mesmo momento em que bloqueia o fornecimento de escravos brancos a Leste, e que se descobre um manancial de escravos negros no Sul, descobre-se o Novo Mundo.

Que vai precisar de muita mão-de-obra.

É um sugadouro de mão-de-obra. Portanto está aqui criada a tempestade perfeita. Os portugueses têm responsabilidade? Têm. São os iniciadores de todo este sistema, porque são os primeiros a chegar lá, porque são aqueles que têm o monopólio da África até ao século XVII, com o beneplácito da Igreja e sem a oposição dos outros países, que depois chegarão: a França, a Inglaterra, a Holanda, a Dinamarca, todos canalizando mão-de-obra negra para as Américas.

Portanto há esse ónus de os portugueses terem sido os primeiros.

Existe esse dedo apontado. Se tivesse sido uma coisa premeditada… mas não foi. E há outro factor ainda. Se pensarmos até parece uma coisa palerma: porquê todo o esforço de transportar aqueles milhões de pessoas da costa da África para as Américas e não explorar localmente, do ponto de vista agrícola e dos recursos, a própria África? Porque não era viável. Isso só foi possível mais tarde, quando se venceram as doenças tropicais, com o quinino e as vacinas, e quando as armas automáticas permitiram a conquista da África. Todo este transpor para as Américas existiu porque não era viável a exploração da costa africana nos séculos XV e XVI.

A conversa foi avançando, ainda não tive ocasião de lhe perguntar. No livro fala muitas vezes de cultura woke. O que é a cultura woke, o que a define e donde vem esse nome?

Esse nome vem do verbo ‘acordar’ em inglês, ‘to wake’. No fundo, incentiva os negros a estarem acordados para as injustiças que se cometem contra eles. E depois isso foi apropriado para associar a outras injustiças que existem no nosso mundo – relativas às mulheres, por exemplo, e por aí fora. Digamos que o movimento woke tem várias prateleiras, várias vertentes. É um movimento benévolo, positivo, nos seus intuitos. O problema é que estas pessoas querem corrigir o passado. Querem repor justiça olhando para as coisas antigas com os olhos do presente. Toda a gente olha com os olhos do presente – são os únicos que temos [risos]. Mas quando digo ‘olhar com os olhos do presente’ é olhar com os conceitos e com os juízos morais do presente. A história foi feita pelos homens que viveram cada momento e que avaliaram os problemas da sua época com os seus conceitos, com os seus valores, com a sua capacidade de intervenção. É possível, aceitável, corrigir coisas recentes. Agora, tentar corrigir coisas que aconteceram há 400, 500 anos, e que eram consideradas aceitáveis na altura é uma coisa completamente absurda. E o movimento woke é isso que quer. Neste caso concreto da escravatura, quer reparações pagas pelos brancos – e apenas pelos brancos, esquecendo que o tráfico transatlântico de escravos foi um negócio com duas partes, os europeus de um lado e os potentados africanos do outro lado…

Que forneciam escravos aos europeus.

Foi um negócio lucrativo para ambas as partes. E por isso os africanos não queriam largá-lo, tiveram de ser forçados muitas vezes manu militari, com navios de guerra, porque para eles era lucrativo. O movimento woke considera que a culpa é exclusiva dos brancos, ignorando esse aspeto que referi e ignorando outra coisa igualmente importante: é que a escravidão e o comércio de escravos a larga distância já existiam em África antes de os brancos lá chegarem. África já vendia escravos para o mundo muçulmano desde o séc. VII/VIII d.C. Quando os portugueses lá chegam, no século XV, já África tinha vendido mais de cinco milhões de escravos negros para o mundo muçulmano. Os woke ignoram isso tudo e querem que os brancos assumam a responsabilidade exclusiva. E querem que paguem indemnizações fortíssimas. Os woke julgam-se Deus, julgam ter poderes de justiça divina, julgam ter capacidade para recompensar os justos e castigar os pecadores.

Uma espécie de juízo final?

É uma visão milenarista, quase medieval. Cristo desce à Terra, recompensa os justos, castiga os malvados e fica um reino de harmonia para sempre. O woke é um movimento milenarista, que acredita que de facto pode haver uma justiça suprema que nivela tudo e que repõe a harmonia quando tudo for devidamente compensado. Acha que, se isto for feito, o handicap de África relativamente ao resto do mundo será ultrapassado. Associado ao movimento woke há paternalismo, há sentimento de culpa, há ingenuidade. E há fanatismo. Que depois desemboca nestes acontecimentos que são frustrantes. E isso é um velho sentimento face a África. Os planificadores ocidentais fizeram sempre imensos projectos para África. Havia a convicção de que era possível fazer de África um universo pacífico e próspero quando terminasse o tráfico de escravos, isso era a ideia no século XVIII. Aconteceu que todas estas boas intenções embateram nas realidades africanas e isto trouxe consigo uma frustração enorme, quando se percebeu que os africanos não cumpriam aquilo que os brancos achavam que deviam cumprir. Tinham a sua autonomia e a sua forma de pensar.

Recentemente estive em Bruxelas, onde há todas aquelas lojas de chocolate, e dei por mim a perguntar-me donde viria esse fenómeno do chocolate belga. E concluí que muito provavelmente teria origem na colonização do Congo, que foi especialmente brutal. É um contraste revelador, entre o prazer provocado pelo chocolate e o sofrimento terrível daquelas pessoas.

Essa é uma ideia que foi muito explorada pela campanha abolicionista desde o século XVIII. Há um escritor francês do final do século XVIII, Bernardin de Saint-Pierre, que diz mesmo isso: ‘Senhoras da nossa França!’ – ele dirige-se às mulheres francesas. ‘Pensem que o algodão que usam nos vossos vestidos, o chocolate que bebem ao pequeno-almoço, o açúcar que adoça os vossos bolos é obtido com o sofrimento dos negros’. Começa a haver a percepção de que grande parte dos prazeres da Europa nessa altura estavam apoiados no esforço, no sofrimento, daquela massa humana que trabalhava para os produzir. Sobretudo o caso do açúcar. A produção de açúcar era muito difícil, muito penosa… matava gente.

A propósito do que referiu sobre as expectativas dos europeus e dos projetos de desenvolvimento, no caso da Bélgica o saque foi feito precisamente com o pretexto de levar os benefícios da civilização ao Congo, o que é ainda mais chocante.

O problema é sempre dar carta-branca, digamos assim, a esses funcionários que usam todos os meios para enriquecer, independentemente dos direitos humanos e de quaisquer considerações de humanidade. Porque é que houve sempre mais revoltas escravas, e mais graves, nas Caraíbas inglesas do que no Brasil? Tinha que ver com o facto de boa parte dos proprietários das plantações inglesas estarem em Inglaterra, eram absentistas, enquanto no Brasil estavam no local. O dono da propriedade podia vigiar, podia amenizar as coisas, enquanto na Jamaica, ou em Barbados, estava tudo entregue a um capataz que queria enriquecer o mais depressa possível, portanto não olhava a meios, era completamente brutal. Mas tudo isto o Ocidente percebeu. E tentou, dentro das suas possibilidades, confrontar, corrigir e endireitar as coisas. Fizeram-se muitas barbaridades. O erro do woke é pensar que apenas se fizeram barbaridades no Ocidente e esquecer todas as barbaridades que se fizeram em todo o mundo, e continuam a fazer-se.

Não pode haver um lado positivo em contar o outro lado da História? Antigamente falava-se dos Descobrimentos sempre na perspetiva heroica…

Laudatória.

Agora vem este movimento e diz: ‘Eles eram escravistas, cruéis, sádicos, racistas’. Fazendo-se a síntese destas duas perspetivas não podemos obter uma História mais completa e com mais nuances?

Acho que sim. Vasco da Gama é apresentado como herói descobridor. Mas tem facetas extraordinariamente violentas. Há uns anos, um historiador indiano chamado Sanjay Subrahmanyam fez aqui uma conferência na Sociedade de Geografia em que apresentou essa visão de Vasco da Gama como um bárbaro, um tipo que mandou incendiar a nau que vinha de Meca com peregrinos, mulheres e crianças, na sua segunda ida à Índia. E deu escândalo aqui entre os nacionalistas. Tudo isto sempre se soube. Mas é verdade que quando se olha para os Descobrimentos há uma tendência para olhar sobretudo para os seus aspectos positivos, heroicos, de façanha, de abertura dos mundos. Também houve a parte sangrenta. Agora, o problema dos woke é que querem única e exclusivamente acentuar e focar a parte negativa. É por isso que a nível do ensino os woke em Portugal querem uma alteração dos manuais escolares e dos programas, e querem que se ensine às crianças que o Descobrimentos portugueses foram sobretudo violência, violação, estupro, etc. Isto é uma visão completamente redutora.

É a isso que chama ‘envenenar a História’?

É. É dar uma visão completamente desequilibrada e unilateral do que foram esses grandes acontecimentos. Remover toda a parte positiva e focar única e exclusivamente a parte censurável, negativa, brutal. É enriquecedor ver os dois aspectos do problema, mas tem que se ver os dois aspectos do problema. E depois há outra questão. Eu fui professor do secundário durante oito anos, e tenho filhos e netos. Há um tempo para as várias nuances e aprofundamento do conhecimento. Não é pedagógico nem humanamente construtivo ensinar a uma criança de onze anos os estupros, as violações, os massacres, etc. Haverá tempo para descobrir essas coisas quando chegar a uma determinada fase da sua vida. Não é que isso lhe vá ser sonegado, escondido ou censurado. Não, está reservado para quando ele tiver amadurecimento emocional e afetivo suficiente para lidar com essas informações.

Quando eu era miúdo ouvia dizer muitas vezes que a cor da pele não interessava. Mas hoje tornou-se uma coisa quase central para muita gente. Fala-se do black lives matter, do stupid white man, da supremacia branca e por aí fora. Ouvimos muitas referências à cor da pele. Acha que regredimos?

Acho que sim. Isto tornou-se paradoxal. Este movimento de bipartição, tripartição, etc., de divisão da sociedade em tribos, em setores, veio trazer de novo a questão da cor da pele para o centro da discussão. Isto é uma coisa completamente estúpida. Se é preto, branco, azul, amarelo ou encarnado nem sequer devia fazer parte da equação. É uma pessoa, é tudo o que interessa. Acho que este enfoque nalguns casos só vem reforçar o estigma.