Tenho passado muito do meu tempo a entrevistar amigos. A culpa não é minha. Nem deles. É desta empatia que fui criando com gente das mais diversas profissões, gente cheia de histórias para contar, gente carregada de mistérios, gente que se foi distinguindo ao longo das suas carreiras pela paixão e pela qualidade que lhes impôs e que nelas conquistou. O Bernardo é um bom exemplo. Cresceu com o pai, Tarcísio Trindade, no mundo complexo dos livros antigos, tem um faro único para encontrar obras incomparáveis, pode dizer-se, sem lhe passar a mão pelo pêlo – algo que definitivamente ele não precisa – que é, hoje em dia, o mais completo dos alfarrabistas de Lisboa. Estivemos na sua nova casa, agora no Largo da Escola de Belas Artes, depois de ter sido violentamente arrancado da Rua do Alecrim, onde tudo começou e se prolongou durante décadas, e ouvimos histórias que poderiam caber, sem dificuldade, em livros policiais. Ah! Quem julga que a profissão que ele transformou em arte é poeirenta e maçadora, desengane-se. Tem muitos mistérios para desembrulhar. Já vão perceber porquê.
Qual é o teu método de trabalho?
Bem… não tenho. O meu método é aquele que fui aprendendo ao longo da vida, primeiro com a minha avó, antiquária lá em Alcobaça, depois com o meu pai. No fundo, nesta profissão, o método é livre. Tive dois tios antiquários, um deles médico, mas grande apaixonado por antiguidades, e o meu pai sempre seguiu o caminho dos livros, um universo no qual sempre me senti bem..
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Começas, portanto, a trabalhar com o teu pai...
Sim, sim. Mas, repara, nunca foi nada forçado. Eu sou o terceiro filho e aconteceu tudo de forma natural. Era onde me sentia bem.
Já aqui em Lisboa? …
Eu tenho imagens de andar pelo meio dos livros em Alcobaça… vim para cá com quatro/cinco anos. As imagens são difusas, claro, mas trazem a sensação do lugar onde sempre quis estar. Depois, a partir dos doze anos comecei a andar com o meu pai, a ir ver livros com ele, um enorme privilégio de ter podido aprender muita coisa do «métier», só que é difícil explicar isso. Há diversas formas de se estar nesta profissão. Mais agressiva ou mais discreta. Na minha vida de alfarrabista nunca fui à procura das coisas, elas têm vindo ter comigo. O que é aliciante. Porque as surpresas tornam-se muito mais vivas, mais coloridas, entre aspas…
Tens ideia de qual terá sido a tua primeira descoberta?
A primeira coisa minha foi a coleção completa das gravuras dos Caprichos do Goya. Ainda trabalhava com o meu pai, claro, comprámo-la ali na Linha do Estoril. E, lá está, esta profissão é feita destes acasos magníficos. O que faz dela diferente de todas as outras.
Deves ter encontrado, ao longo de todos estes anos, coisas absolutamente surpreendentes… Sim, claro! E nos sítios mais incríveis. Como a primeira edição da Mensagem, do Pessoa, no Barreiro, num armazém de velharias, perdida num molho de livros. De outra vez abrimos uma porta enorme, com uma chave para aí de trinta centímetros, num ugar perto do Largo da Sé. Nunca mais me esqueço. Estivemos a olear a chave, a porta não era aberta para aí desde 1850, e de repente só vimos uma parede branca – teias de aranha mas compactas. Imaginámos que deveria estar tudo estragado. Entrámos com uns paus, a enrolar as teias, e como os livros não apanharam luz e as aranhas comeram todos os insetos, estavam todos num estado impecável. Coisas incríveis, o Civitates Orbis Terrarum, vários volumes com os mapas de todas as cidades conhecidas na altura, uma carta do rei da Etiópia para o rei Dom Manuel. Estamos a falar de coisas do século XVI ao século XVIII. Claro que isso hoje é muito difícil de acontecer. Há mais informação. E os livros não crescem como os cogumelos. Por isso é que muitas coisas preciosas vão ficando cada vez mais raras.
NO MEIO DE PRECIOSIDADES
Qual foi a descoberta mais preciosa de que te recordas? Ui… o problema aqui é que todas as coisas têm um valor especial. E às vezes coisas que não são tão antigas como isso. O momento de encantamento, de magia, desta profissão é aquele em que entras no universo de uma família que tem ali o material à tua disposição para que tu o estudes, o classifiques… Mas foi um documento em pergaminho. manuscrito, do Damião de Goes.
Mas não é de um momento para o outro que aprendes aquilo que vale ou não vale dinheiro.
Tem de haver uma aprendizagem. Implica ter conhecimento sobre muitas coisas. Porque, ao contrário do que sucede na pintura, por exemplo, a imitação de livros exige muito: o papel da época, por exemplo, com as suas marcas de água específicas… Fazer a falsificação credível é muito, mas muito complicado. Agora, o meu processo de aprendizagem foi esse mesmo: não ficar sentado à secretária e andar pelo país inteiro a descobrir peças interessantes.
E é isso que te dá prazer?
Sim, é a parte mais bonita e mais aliciante da nossa profissão.
Em que altura é que o teu pai abriu a loja da Rua do Alecrim?
Quando viemos de Alcobaça para Lisboa, em 1975 ou 1976. O meu pai foi Presidente da Câmara de Alcobaça antes do 25 de Abril, e tivemos de vir, então, para Lisboa recomeçar a vida. O facto de termos estado mais de um ano a viver na loja, marcou-me. Hoje era impensável. Os meus pais num quarto, eu e os meus irmãos noutro. Uma altura da minha vida da qual sinto muitas saudades. A altura em que a família esteve mais unida e tínhamos a sensação de que estávamos a reconstruir algo de novo vindo do nada…
Mas acabaste por ser o único a seguir com o negócio…
Dos quatro irmãos, sou o terceiro. Mas o meu pai nunca influenciou nenhum de nós em termos profissionais, nunca nos empurrou para sermos advogados ou médicos, nem sequer para seguir os passos dele. Eu sempre me senti atraído pelo que ele fazia, lá na loja, e hoje tenho o privilégio que muito poucos têm de trabalhar naquilo que gosto e que me dá prazer. Foram tempos fantásticos: conheci escritores, editores, trocavam-se ideias, havia tertúlias… De todas as áreas e de todos os quadrantes políticos. E, muito provavelmente, nessa altura, o meu pai era a pessoa que mais sabia de livros antigos em Portugal. Tenho tudo anotado por ele, tenho tudo anotado por mim, sempre que compro algo de novo faço uma ficha com o ano, com o preço por quanto o vendi, se tem falhas… Isso é uma grande vantagem. Não preciso de usar a internet para consultas. Tenho todos os elementos comigo.
É um trabalho duro…
É um trabalho que implica muitos anos de estudo.
Mas tu não trabalhas só com livros, pois não?
Não, não. Olha, estás a ouvir trabalhar atrás de ti um relógio Granfather Clock, uma peça muito antiga. Mas, lá está, é algo que vem de família. O meu pai interessava-se por tudo, mas principalmente por letras, escreveu um livro de poesia que foi publicado em 1962 ou 63 e que eu reeditei. Eu também me interesso muito por pintura, por exemplo. Ou por outras peças. Mas só me interessam a partir do momento em que saiba de onde provêm e passo a ter segurança em relação ao seu valor… Tenho três quadros que estão neste momento a restaurar e que vão servir para que eu faça aqui um momento de comemoração dos 500 anos do nascimento de Camões! Parece que as pessoas se esqueceram dessa data, apesar de terem posto a funcionar uma comissão para o efeito. Dá ideia que tudo ficou canalizado para os 50 anos do 25 de Abril, tudo bem, também vou colaborar, mas vou fazer aqui, em Maio ou Junho, um momento comemorativo dos 500 anos de Luís de Camões. Com coisas surpreendentes.
Esta é uma daquelas profissões nas quais não dá para errar.
Não podes! Perder a confiança de quem nos procura é fatal. Isso também aprendi com o meu pai. Até porque se criam relações muito fortes, até de amizade, com cliente, e destrinçar isso é difícil.
O MISTÉRIO DO PRIMEIRO LIVRO
Calculo que, neste momento, a tua profissão não seja centro de concorrência muito ativa. Falo de livros verdadeiramente antigos, não de peças simples como primeiras edições do Eça. Também tive o privilégio de poder conhecer e conversar com colegas de profissão de grandes nomes na praça, como foram os casos de José Maria Almarjão, António Tavares de Carvalho, entre outros. Claro que hoje em dia somos menos, houve muito que fecharam as portas, mas a autêntica concorrência que tenho são livreiros encapotados, que não têm a profissão de livreiros, compram livros fora, ou em leilões. Tem-se notado isso cada vez mais.
Mas é uma profissão que corre o risco de acabar?
Não sei se não serei, neste momento, o alfarrabista com loja aberta há mais tempo. Embora tenha colegas mais velhos do que eu.
Era nesse ponto que eu queria tocar. Ainda és um menino…
Espero, pelo menos, ter ainda muito mais anos para poder desfrutar desta profissão. E oferecer alegrias e emoções aos clientes e amigos que me vêm visitar e que confiam em mim. Ao mesmo tempo é uma responsabilidade. Uma responsabilidade com a qual gosto de arcar apesar de muitas contrariedades que tenho ultrapassado. Muitas vezes estou aqui sem surgir nada, apenas a catalogar o que tenho guardado e, de repente, sou surpreendido com alguém que me entra pela porta com algo de fascinante. Sim, porque geralmente são as pessoas que me procuram. Não sou eu a procurá-las.
Esta é uma profissão que dá para viver?
É engraçado perguntares-me isso. Até porque alfarrabista é um termo que o meu pai recuperou e que as pessoas tinham uma certa vergonha de utilizar.
Confundia-se o alfarrabista com um vendedor de livros de cordel?
É isso. Os alfarrabistas preferiam autointitular-se como antiquários. Então o meu pai pôs um cartaz enorme na nossa loja da Rua do Alecrim dizendo «Alfarrabista». Era um espaço diferente no qual se vendiam livros de cem escudos da mesma forma como se vendiam livros caros.
Bem… não me respondeste à pergunta…
Sim, dá para viver. Se o teu trabalho for bem feito. Tanta gente me pergunta: «Como é que consegues viver com o trabalho que fazes?» E eu explico que vivo tendo em conta uma certa forma de trabalhar. Com paciência, neste momento. Na loja antiga, mal recebíamos material vendíamos logo quase tudo. Agora não. Agora estou mais pausado. Muitas vezes compro material que não vendo de imediato. Procuro o momento e o cliente certo.
Imagino que ter saído da Rua do Alecrim tenha sido doloroso… Foi muito duro.
E foi preciso fazer o luto da saída de lá. Eu disse à minha família que ia ficar um ano sem trabalhar. Precisava de reerguer-me. Fiquei sem nada. Mas tive a felicidade de ter um amigo que veio dizer-me que tinha este lugar para arrendar. E aproveitei-o com a filosofia de fazer dele um espaço de partilha, com esta mesa a que estamos sentados, enorme, com esta vista para oTejo, com o objetivo de recuperar tertúlias, algumas delas temáticas, outras sem sequer serem combinadas, o que as faz serem ainda mais interessantes. Quero que este seja um lugar com vida. É também por isso que não trabalho on-line, ou uso a internet. Não sou capaz de vender um livro a um cliente sem cara, sem rosto. Por que não sei para onde ele vai. Quero ter a certeza de que aquele livro que comprei, que cataloguei, que restaurei, que tratei folha a folha com o maior carinho, vai parar à pessoa certa, às mãos certas. Saber que os 300 ou 400 anos que ele já viveu continuarão a ser respeitados e poderá viver mais 200 ou 300.
Já falámos várias vezes sobre o assunto da polémica da descoberta da primeira publicação feita em Portugal. Não em público, mas esta é a altura certa para esclarecermos quem nos lê.
Se alguém pegasse nessa história podia muito bem fazer um filme. Eu só existo como sou por causa desse livro que o meu pai encontrou, a primeira publicação em língua portuguesa. É natural que tenham havido peças publicadas anteriormente mas não chegaram aos nossos dias, até porque falamos de impressos muito pequenos e muito pouco resistentes.
Então vamos a factos: qual o primeiro livro impresso em Portugal?
Ora muito bem, o primeiro livro impresso em Portugal, com os caracteres inventados por Gutenberg, foi o Pentateuco, terminado em 30 de Julho de 1487, em Faro, por um judeu chamado Samuel Gacon. É uma obra em hebraico e o único exemplar que existe está em Inglaterra depois de ter sido roubado por Francis Bacon quando este atacou o Algarve em 1587. Já o segundo terá surgido em Chaves, em 1489, e trata-se d’O Tratado de Confissão, neste caso o primeiro livro cristão a ser impresso entre nós pelo método de Gutenberg.
(Abra-se aqui o tal parêntesis policial de que falava ao início. O caso da história d’OTratado da Confissão fez correr muita tinta nos jornais. Houve quem apresentasse não apenas dúvidas em relação à data da sua publicação como procurasse acusar Tarcísio Trindade de querer negociar à revelia do Ministério da Cultura uma peça que era de inegável interesse nacional. Repare-se neste artigo vindo a lume n’O Primeiro de Janeiro: «Dar quatrocentos contos pelas velhas e amarelecidas páginas de um livro impresso há quase cinco séculos é um excelente indício de prosperidade que só será incompreendido por quem, quezilento de natureza, pretender que tanto dinheiro ficaria bem melhor atribuído em obra útil para gente viva. (…) A descoberta do volume ficou a dever-se ao dr. Pina Martins, da Faculdade de Letras de Lisboa. (…) Revelada a novidade, o ministro da Educação fez saber que iriam ser tomadas providências para fazer entrar o preciso livro na Biblioteca Nacional, lugar que lhe era certamente devido». Mais adiante, numa reportagem saída do Diário de Notícias, aparece finalmente a família Trindade (na verdade foi Tarcísio Trindade que descobriu a peça em Madrid, na Feira do Rastro, segundo os jornais consultados) envolvida no assunto. «Na sua qualidade de conhecedor de antiguidades, especialmente bibliográficas, o sr. Tarcísio Trindade, profundo conhecedor do seu ramo, interessou-se apaixonadamente pelo precioso livrinho em 60 páginas, resolvendo examinar em minúcia a sua história e verdadeira origem».Tarcísio Trindade, pai do nosso entrevistado, procedeu a um estudo profundo desta publicação e não teve dúvidas de que se tratava de uma obra genuína e de profundo valor. No dia 26 de Maio de 1965, o incunábulo desaparece do círculo de conhecedores, pelo vistos vendido pelo livreiro responsável por O Mundo do Livro, João Rodrigues Pires, por um valor de 400 contos. É aqui que a Polícia Judiciária entra em campo na busca de uma raríssima peça literária que acaba por ser localizada pouco mais de uma semana mais tarde nas mãos da sra. Virgínia das Neves Duarte da Silva que, por evidente má-fé, dera ao vendedor uma morada falsa. Continua a reportagem: «No nº 26 da Rua Lopes Vieira, fornecido pela compradora com local de habitação, não é conhecida tal senhora. Estamos claramente em presença de uma compradora que não quer ser conhecida nem encontrada, ao contrário do que acontecia antes com o sr. Tarcísio Trindade que se dera a conhecer ao proprietário de O Mundo do Livro, tendo-lhe este confiado a obra para venda). Fechemos os parêntesis. Venda anulada, o livro passa para a posse de Tarcísio Trindade, que o tinha comprado por 100 escudos, Vendido por João Rodrigues Pires por um valor da 300 contos, o que acabou por vir a trazer-lhe problemas com a PIDE. Em seguida passa para as mãos do banqueiro Manuel Quina, que o foi a Alcobaça comprá-lo e acabaria por o oferecer à Biblioteca Nacional. Em seguida, o Bernardo remata: «Na verdade, e o meu pai pediu-me que só tornasse isto público dez anos após morrer, o livro foi encontrado em Castro d’Aire, numa pilha que estava a segurar um candeeiro na casa de um ajuntador de velharias. Foi muito difícil perceber do que se tratava porque vinha encadernado à mistura com outros sem interesse. O meu pai preferiu divulgar a história da Feira de Rastros para não correr o risco de ser acusado de estar a querer apropriar-se de algo que poderia vir a ter o valor nacional que teve. Depois viveu toda aquela confusão que até meteu polícia ao barulho».
Imagino que a tua clientela seja muito específica. Não entram pela porta dentro assim à toa, a ver o que fisgar…
E cada vez mais vai ser assim. Gente bem informada que sabe do que anda à procura. Olha, livros de cozinha. Tenho aqui mesmo na mão o primeiro livro de cozinha impresso em português. Mas também de botânica, de História, de viagens… Até nisso esta profissão é um pouco extravagante. Há sempre alguém para um livro que se escreveu. Às vezes guardo livros sem saber porquê. Passados dez anos surge alguém à procura desse livro específico. E lá vou eu à procura neste jardim em que me perco, como diz a canção. Mas tenho uma memória visual muito forte. Sei os livros que tenho.
Esta é uma profissão que obriga a ter memória…
Aliás esse é o meu grande medo. Vir a perder a memória no futuro. Mas tento não pensar muito nisso.
Sentes-te realizado profissionalmente? …
Acho que ainda estou a tentar acabar, aqui, a encaixar as peças do puzzle, para poder vir a afirmar isso. Vim de um lugar que tinha o seu espírito próprio, como era o da Rua do Alecrim, agora estou a montar o meu mundo e, quando o conseguir, estarei cem por cento realizado. Porque deu-me um certo gozo começar do zero com quase 50 anos e poder dizer ao meus amigos, com satisfação, que consegui.
Há muita rivalidade nesta profissão?
Sempre houve, mas aprendi com o meu pai pôr-me um bocado à margem dessa vida dos leilões que é onde essa rivalidade é mais visível. Há gente que compra livros a preços excessivos só para dizer que os tem e, depois, acaba por perder dinheiro com eles. O meu pai sempre ajudou vários livreiros e eu também. E até trouxemos gente de outros campos para o mundo do alfarrabismo. Não me importo nada que ganhem dinheiro, às vezes até à minha conta. Porque se não for assim isto morre. Por exemplo, amanhã noto que me falta um volume numa colecção e vou à procura de outro livreiro porque sei que posso contar com ele. Muitas vezes estas coisas até se fazem troca por troca, sem dinheiro envolvido.
Qual é o livro mais valioso que tens aqui na loja?
Na verdade, o mais valioso vai ser sempre aquele que eu ainda não encontrei. Mas não gosto muito de falar de valores, de preços.
Então?
Porque um livro pode ter, para mim, um determinado valor monetário e para outra pessoa não representar esse valor. Vou-te mostrar aqui um, Regras e Estatutos da Ordem de Santiago, que usa a mesma portada da primeira edição d’Os Lusíadas. E, lá está, ainda não vendi o livro porquê? Porque foi impresso aos 15 dias do mês de Junho de 1548. E eu faço anos a 15 de Junho. Estava cheio de buracos, restaurei-o todo, mandei encaderná-lo pelo meu grande amigo Vasco, que faleceu este mês, uma pessoa brilhante… Fez uma especialização de encadernação em Oxford e nunca disse a ninguém, trabalhou em coisas incríveis como neste catálogo que fiz em homenagem ao meu pai antes de ele falecer. E era assim… Se tivesse encomendado, custaria mais de mil euros, muito mais, e ele surgiu aqui para mo dar, com toda a modéstia de um homem que nunca assinou uma encadernação. Tínhamos uma relação muito própria. E, agora, fiquei órfão de encadernador. Mas não posso deixar de prestar honras ao meu amigo Vasco Antunes, que era um profissional enorme.
Tu tens um horário especial aqui na loja, não é?
Um horário especial do qual toda a gente se queixou. Mas é o meu horário. E chegou uma altura da vida em que eu precisava de funcionar segundo o meu horário.
Só abres à tarde…
Sim. Só abro à tarde.
E porquê?
Porque muitas vezes dou por mim a trabalhar pela noite fora, quando olho para o relógio são quatro ou cinco da manhã e eu aqui, no meu silêncio, como gosto, a fazer aquilo que gosto. Sábado estou aberto o dia todo. De terça a sexta estou aberto das três da tarde às sete e meia.
Já começaste a recuperar clientes que tinhas na outra loja?
Sim, sim. Podes não acreditar mas há muita gente que precisa disto para viver. É um escape. Por vezes sinto-me uma espécie de psicólogo de muitas delas. Outras vezes quase sem palavras, mas sente-se. Por isso se criam relações de proximidade. Ao contrário do que acontecia na Rua do Alecrim, isto não é um sítio de passagem. Mas ainda bem. Era isto mesmo que eu queria e procurava neste momento. Trabalho com mais calma, com menos interrupções, sem todo o barulho que tinha no outro lado. Agora trabalho à porta fechada, têm que tocar à campainha, mas quem visitava a Rua do Alecrim já descobriu o caminho até aqui.
Na Rua do Alecrim foste mais uma vítima desta voracidade que não nos deixa viver ou ter negócios na Baixa de Lisboa sem pagar rendas selvagens…
Olha, eu podia ter-me inscrito nas Lojas com História e ainda lá estar a pagar a renda antiga. Mas face à minha forma de estar, enviei uma carta ao senhorio a avisá-lo que não ia fazê-lo pela consideração que me merecia por já lá estarmos há quarenta e tal anos. Entretanto o senhor faleceu, vieram os filhos, houve o aumento da renda, deu-se a pandemia que nos obrigou a aprender a viver de forma diferente, e agora estou a sofrer, isso sim, a ressaca dessa altura, como podes notar aqui na loja. É preciso aceitarmos aquilo que a vida nos traz. Como tive de aceitar o facto de deixar de trabalhar com o meu pai, com todas as questões inerentes a trabalhar com um pai, reconhecendo as suas forças e a suas fraquezas. Isso é que é o verdadeiro amor. Foi mágico isso ter-me acontecido.
Mas estás de volta, numa fase de crescimento…
Sim, é verdade. Mas preciso de ir com calma. Ainda há muitas fragilidades que tenho de enfrentar e não posso avançar para um ritmo que me ultrapasse. Estou agora a fazer um grande catálogo de livros sobre o Ultramar, coisas muito interessantes, algumas que eram de um grande cliente e amigo que faleceu: entregaram-me a missão de tomar conta dos livros que o pai juntou. Não consigo fazer isso numa semana ou duas. É uma enorme responsabilidade.
Por falar em Ultramar: Goa é um fenómeno curioso no mundo da impressão, não é? Curiosamente, o livro mais valioso impresso em Goa, é do Garcia da Horta, o Colóquio dos Simples. O que combate um bocado a ideia de que é uma zona em que a impressão de livros ligados à Igreja seja primordial. Este é um livro impresso por João de Endém, em 1563, um indivíduo de sangue judeu. Portugal tem sempre casos raros e curiosos. Daí despertar o interesse do mercado estrangeiro. Fomos os únicos europeus que imprimimos livros no Japão, por exemplo. Porque os japoneses abriram as portas a jesuítas que criaram missões e se dedicaram à impressão de vários livros. Geralmente manuais ou tentativas de sebentas para cristianizar os habitantes locais, coisa que não conseguiram, como sabemos. Acabaram por ser todos mortos, na sua maioria, alguns empalados, mas eu já tive o privilégio de ter em mãos peças dessa época. Depois há o caso dos livros impressos na Índia ou no Brasil – com o calor era impossível terem chegado até aos dias de hoje se tivessem permanecido lá. Se pensares no século XVII e nas dificuldades de uma viagem de barco de Goa até Lisboa, qualquer livro que tenha percorrido esse caminho é um milagre por si só. Por isso é que são de tal maneira raros que quando aparecem é sempre um acontecimento cultural.
O que é que te ocupa mais tempo na tua profissão?
No estudo, na verificação, na certeza de que estou perante uma obra com o valor de mercado que lhe quero dar. Posso estar doze, treze ou catorze horas aqui a fazer esse trabalho. E é nisso que me sinto bem.
Continuas a surpreender-te?
Todos os dias, não tenhas dúvidas. Tal como tenho deceções… faz parte do jogo.
Há algo que desejasses muito ter?
O Colóquio dos Simples, do Garcia da Horta, do qual aliás já te falei. Bem mais do que uma primeira edição d’Os Lusíadas, das quais até já tive três. É de extrema raridade. Não vou desistir de encontrar um exemplar.
Qual é o livro mais valioso que existe hoje em Portugal? É muito difícil responder a isso, mas eu diria que não é um livro impresso. Não te vou responder a essa pergunta. Responderei se alguma vez me incumbirem de o vender.
É o segredo do negócio?
É.