Com a segunda volta à vista

A AD deve tentar governar em minoria, abrindo-se a propostas das oposições que não inviabilizem o seu programa.

Ler a contracapa do jornal Público permite entender melhor as duas faces da moeda, direita e esquerda, nas colunas de João Miguel Tavares e Carmo Afonso.

Tavares veio defender que «ignorar o Chega (…) é ignorar um milhão de portugueses, muitos dos quais se deram ao trabalho de votar pela primeira vez. Nesse sentido, é ignorar a própria democracia quando ela se torna incómoda para os partidos instalados e para as elites que dominam o comentário nas televisões e os lugares nas empresas do regime.» O colunista entende que Montenegro nunca devia ter garantido que o «não é não», ainda que reconheça que, se o não tivesse dito, teria perdido as eleições para a esquerda. Considera, portanto, que o Chega tem o direito de partilhar o poder, em função dos resultados que obteve.

Carmo Afonso, por seu turno, lembra que «muitos eleitores votaram AD por causa da garantia dada por Montenegro e não voltarão a fazê-lo se se sentirem enganados. (…) Um entendimento entre a AD e o Chega poderá trazer uma governação estável de quatro anos, mas nem isso é seguro com André Ventura. E será certamente a sentença de morte da direita democrática.»

Temos dois retratos antagónicos, com o eleitorado do Chega como vértice. Ora, estes eleitores conheciam, antecipadamente, a posição do PSD. Não foram enganados: o seu voto foi, legitimamente, de protesto. Não estão a ser ignorados mas, sim, a ser confrontados com as consequências da decisão que tomaram livremente quando votaram. O que não os exclui, antes os coloca na oposição.

Quem seria ignorado, se Montenegro alterasse a sua posição, eram os eleitores da AD, porque votaram na convicção de que não haveria um acordo de governação com o Chega. E, certamente, alguns preteriram o PS por este partido levantar suspeitas sobre a posição da AD e não colocar idêntica linha vermelha relativamente ao BE e à CDU.

Os resultados são o que são: há quatro, e não três, blocos. O Chega à direita, a AD e a IL no centro-direita, o PS no centro-esquerda, o BE, Livre e CDU à esquerda. O facto de as esquerdas se unirem sob a batuta de Mortágua exemplifica a inabilidade de Pedro Nuno Santos, porque falta a essa geringonça a tração maioritária para governar. E, se o Chega é populista, o que dizer do BE ou do PAN? Se o Chega é antissistema, o que dizer do PCP?
Um bloco central, liderado por Montenegro, interpretaria o sentido de voto de 2/3 dos portugueses? Marçal Grilo defende esta solução, que poderá ser inevitável, se a conjuntura internacional se agravar. Invoca-se, ad contrarium, que isso pode fazer crescer as franjas do regime. Mas também se pode argumentar que a ingovernabilidade é, precisamente, o que mais interessa a essas franjas. O que torna impossível este cenário é a pré-anunciada preferência do PS pelo frentismo.

De resto, também Marcelo não tem interesse ou autoridade para promover tal comunhão. Resta saber se os novos líderes do PS ouvem Medina e Santos Silva e compreendem que é de manter um diálogo e procurar convergências e entendimentos com a AD.

Neste contexto, a AD deve governar, ou tentar governar, em minoria, abrindo-se a propostas das oposições que não inviabilizem o seu programa. Se isso não for tolerado pelos outros blocos, teremos então novas eleições. E, provavelmente, com uma “frente de esquerda”, o que obrigará, talvez, a AD e o Chega reverem as suas estratégias de alianças ou acordos.

Também no Público, Manuel Carvalho escreve acerca dos resultados eleitorais: «Se o meio foi péssimo, a contundência da mensagem é (…) uma prova incontestável da beleza da democracia».. Não sei, contudo, se resta beleza a um sistema que parece precipitar-se na autofagia…