Frank Herbert. A compreensão das consequências

Por muitos considerado o grande romance da ficção científica, quase seis décadas depois da sua publicação Dune continua a vender milhões de exemplares. Explorando questões existenciais e urgentes, do messianismo à ecologia, a sua influência foi tal que sem ele não teria havido A Guerra das Estrelas.

Os começos são momentos tão delicados”, lembra o autor de Dune, que precisou de vários esboços, de uma aturada pesquisa e de seis anos, ao todo, para projectar a humanidade num futuro distante, fixando o contorno daqueles elementos intemporais que nos permitem considerar a relação trágica que dinamiza os planos da nossa existência. No seu entender nada há pior para um homem do que deixar-se enredar em situações que limitem a sua capacidade de mudar a sua perspectiva sobre a realidade… “Parece-me ser um erro agarrarmo-nos ao futuro como se fosse um só. Deveríamos treinar-nos no esforço de planear futuros como uma forma de arte. Somos capazes de realizar tantos futuros quantos aqueles que conseguirmos inventar.”

Quase seis décadas após a sua publicação original, aquele que é por muitos considerado o grande romance da ficção científica continua a vender milhões de exemplares em todo o mundo, e os dois filmes de Denis Villeneuve conseguiram por fim a proeza de adaptar ao cinema uma saga que redefiniu aquele cânone, provando a actualidade de um enredo terrivelmente complexo, e que, sem deixar de ser coeso, explora uma série de questões existenciais, do messianismo à ecologia, passando pelo colonialismo, a guerra por recursos naturais e as viagens interplanetárias. A influência desta obra foi de tal ordem que sem ela não teria havido Guerra das Estrelas, tendo George Lucas copiado a papel químico muitos dos seus elementos para dar vida ao seu universo.

Se Frank Herbert foi capaz de transportar consigo um mundo desmedido, isto deve-se menos aos dotes estilísticos da sua prosa do que a uma capacidade de arquitectar uma narrativa imensamente fluída a partir de uma infinidade de fontes e influências, misturando tradições, elementos religiosos e filosóficos, com um grau de disciplina mental e um uso da vida invulgaríssimos, sabendo cativar os leitores. Adulterando de forma astuta os caracteres do passado, soube abrir as possibilidades do futuro, num salto que não se fica por algumas décadas ou séculos, mas milénios, e isto só é possível por ter uma imensa confiança no processo e naquilo que sempre nos fascinou. Ele sabe como, no fundo do inconsciente humano, sempre existiu uma necessidade de um universo lógico e coerente, e que a nossa tendência é para distorcer e lançar sobre a realidade um trilho excepcional. Queremos vencer o acaso, e impomos a nossa lógica ao universo, e este parece desenhar sempre novas formas de fazer ruir todas essas conjecturas. Vivemos dominados por horizontes fanáticos, sonhos fervorosos, e assim vamos acicatando a imaginação e, tantas vezes, destinando-nos cegamente à barbárie. Somos os dementes da utopia. Ora, Herbert, tendo sempre manifestado um interesse por uma infinidade de áreas de conhecimento, explorando territórios onde grassam elementos de estranheza e de fantasia, sentia-se intrigado por todo o tipo de crenças e superstições salvíficas, mas estudava-as sem se deixar agarrar. Não acreditava em desfechos, procurando compreender a regularidade de certos ciclos, e, desde logo, reconhecendo que não se pode compreender um processo suspendendo-o. “A compreensão tem de se mover com o fluxo do processo, tem de se juntar a ele, fluir com ele.”

No início, aquilo que atraiu Frank Herbert para a ficção científica foi a forma como esta favorece um certo tipo de improvisação, pelo menos nos movimentos que o pensamento desenha. Considerava que “a ficção científica está para a ficção convencional como o jazz está para a música clássica”. Como nos diz o seu biógrafo, Timothy O’Reilly, um dos pressupostos de Herbert como escritor é o de que é possível dirigir-se directamente a partes da consciência do leitor sem que este se dê conta, criando assim efeitos inesperados. “Em algumas pessoas, o simples facto de confrontar a ideia de hiperconsciência aguça a sua atenção mental a um nível notável”. Ele notou que esta é uma reacção comum, e apostou nisso em Dune. “Ao lermos a história de um homem perante o qual caem as barreiras do tempo-espaço e que consegue ler as motivações humanas como se fossem gritadas em voz alta, somos empurrados pela possibilidade de sermos a resposta aos nossos próprios sonhos”, refere O’Reilly.

Num dos momentos-chave do romance, o protagonista, Paul Atreides, diz isto: “O meu pai disse-me certa vez que o respeito pela verdade está próximo da base de toda a moralidade. ‘O que num dado momento se impõe não pode surgir do nada’, disse-me ele. Este é um pensamento profundo, se compreendermos como a ‘verdade’ pode ser instável.”

Num mundo onde a ideia de verdade está tão próxima de um sentido de desordem e instabilidade, este universo tem uma atração poderosa, e é como se a urdidura que Herbert criou servisse como um organismo vivo que responde a tantas das ansiedades do nosso tempo. Não se entra ali de forma leviana para se sair incólume desta, a sensação é mais a de ser engolido. E o que tem a dizer depende de quem empreende a travessia. O certo é que, diante dos sinais ominosos e dos relatos persistentes dos efeitos da emergência climática, e face ao espectro de uma escassez de água a nível mundial, num momento em que recrudescem as tensões imperialistas e a Europa se vê puxada de novo para o conflito, com a crise no Médio Oriente a deixar antever um ciclo interminável de retaliações, não exageramos minimamente ao identificar em “Dune” um desses quadros implacáveis que ilustram perfeitamente as noções maquiavélicas do poder, uma ficção científica que se soube servir do prisma da Guerra Fria para desenhar uma rede em que qualquer evento rima e abre caminho a um outro plano, numa prodigiosa ramificação de ecos, reforçando a sensação de estarmos perante uma obra profética.

Hoje, e perante os desafios que enfrentamos, estamos ainda longe de compreender como a decomposição deste mundo, assumida como tal, abre caminho a outras maneiras de viver, mesmo em plena situação de emergência. Começa até a ficar claro que a verdadeira crise do nosso tempo é sobretudo da imaginação, uma recusa em ver para lá da actual configuração e do estado de coisas, recusando esse impulso essencial de produzir ficções auspiciosas a partir da degradação do horizonte industrial. De tal modo que, mesmo se recaímos num frenesi apocalíptico, e se muitos reconheceram já essa sede de Armagedão que atravessa a época, parecemos incapazes de perspectivar algo de diferente, vivendo siderados com esses documentários de antecipação com infografias que mostram nuvens de gafanhotos que virão abater-se sobre as vinhas de Bordéus e as hordas de “migrantes climáticos” que tomarão de assalto as costas do sul da Europa.

Na nossa relação desastrosa com o mundo, vivemos dominados por esse fascínio do apocalipse, calculando a velocidade a que desaparecem os calotes polares, medindo o extermínio de tantas espécies, soterrando-nos numa linguagem pretensamente científica, em números e médias. É uma forma degradada de profetismo, pois nunca se coloca o problema em termos sensíveis, e mesmo enquanto se estabelece que a temperatura vai subir tantos graus e que a precipitação vai diminuir tantos milímetros, escapa-nos o esforço de tentar compreender exactamente o que é a vida. Como notam os autores do Comité Invisível, “o esgotamento dos recursos naturais é provavelmente muito menos avançado do que o esgotamento dos recursos subjectivos, dos recursos vitais que atingem os nossos contemporâneos. Se nos satisfazemos tanto a detalhar a devastação do ambiente, é também para cobrir a assustadora ruína das interioridades. Cada maré negra, cada planície estéril, cada extinção de espécies é uma imagem das almas em farrapos, um reflexo da nossa ausência do mundo, da nossa impotência íntima para o habitar.”

Esta é a verdadeira dimensão do deserto que se expandiu por toda a parte e que estendeu os efeitos da sua seca e escassez até à nossa capacidade de imaginar e propor futuros alternativos. E é a este respeito que a invenção de Dune deve sobressaltar e encorajar-nos. Quanto às origens, e numa história que veio a assumir o prestígio das lendas, conta-se que a inspiração para o romance remonta a 1957, quando Herbert andava a estudar as dunas de areia de Florence, no estado do Oregon, em busca de um tema para um potencial artigo de revista. Prestes a fazer 40 anos, desde os 19 anos que vivia como escritor a soldo, vendendo contos e reportagens para uma série de publicações, e vivendo em condições bastante precárias. É importante referir que, durante o período em que escreveu Dune, a sua mulher, Beverly Ann, era a principal responsável pelo sustento da família, com a sua carreira de escritora a ser posta de lado, vendo-se obrigada a produzir textos publicitários para grandes armazéns. Uma eventual homenagem a este sacrifício da sua companheira pode estar no facto de as mulheres que integram o seu universo ficcional terem sempre um papel preponderante, e contenderem com os homens muitas vezes nos momentos críticos, nunca assumindo uma postura subserviente.

Foi a imagem daquelas dunas que, empurradas por ventos fortes vindos do Pacífico, se deslocavam para leste, enterrando tudo no seu caminho, que impressionou fortemente Herbert e contagiou o seu imaginário. Havia algo de bíblico naquelas ondas de areia que se expandiam ao ponto de invadir a cidade, enquanto os ecologistas e os engenheiros, num programa financiado pelo departamento de agricultura norte-americano, procuravam deter este avanço, plantando uma espécie de matagal de origem europeia, no que veio a ser descrito como uma técnica bastante básica de “terraformação”, noção que em breve se tornaria um elemento crucial nos enredos de ficção científica.

Herbert alugou um avião ligeiro Cessna para sobrevoar o local e, na proposta do artigo que enviou ao seu agente, de forma a aliciar os editores, enfatizava que “estas ondas podem ser tão devastadoras como um maremoto… até já causaram mortes”. Mas o que mais o instigou foi a ideia de que seria possível gerar um ecossistema de forma a travar a expansão de uma paisagem desértica hostil, reverdecendo-a. Em breve, a sua investigação suplantou os elementos necessários para vender um artigo, e começou a estudar as técnicas de sobrevivência das sociedades do deserto, a política de conservação e a compreensão de que “o homem ocidental… inflige ao ambiente a sua própria degradação”. Eventualmente, estes elementos começaram a permear vários dos seus contos, e ele acabaria por aglutinar tudo isso numa obra de um fulgor e uma ambição até ali inédita no campo da ficção científica. Era uma regra não escrita que os leitores e as publicações que popularizaram este género preferiam formatos curtos, naquele registo pulp, em que a narrativa sacode os habituais ademanes estilísticos para ir ao que interessa, para criar uma vertigem na leitura e impor esse quadro de virtualidades e excepções absorventes.

Com a acção a decorrer mais de 10 mil anos no futuro, o livro centra-se na batalha pelo controlo do planeta Arrakis, conhecido como Duna, e que devido às particularidades do seu ecossistema é a única fonte do recurso mais valioso do universo: a melange, ou especiaria, é uma substância viciante que não só tempera os alimentos como tem um efeito alucinógenico, e ainda prolonga a vida. Em alguns casos também oferece vislumbres do futuro. Tem ainda o curioso efeito secundário de tornar os olhos daquele que a consome num azul intenso. Mas se a melange se tornou tão importante é por induzir um estado de perceção espaciotemporal intensificado nos pilotos de naves espaciais, permitindo-lhes traçar as suas rotas entre as estrelas. Sem ela, todo o sistema de comunicação e transporte do Império entraria em colapso.

A mineração desta especiaria envolve riscos enormes, não só por causa das tempestades de areia e dos ataques dos nómadas, mas também porque todo o barulho na superfície de Arrakis atrai gigantescos vermes da areia, o predador alfa daquele planeta, que atravessa as dunas e que, tal como as baleias, é um elemento-chave de todo o ecossistema planetário. São estes seres que produzem a especiaria e a lançam sobre a superfície do planeta. Herbert procurou investir a especiaria de um valor simbólico absurdo, numa combinação que parece unir as propriedades da cocaína às do petróleo. A partir daí desenha-se esse quadro de tensões que faz de “Dune” um épico capaz de magnificar as vertentes da política, procurando compreender as forças de subjugação e aniquilação que determinam o balanço do poder, e amplificando o quadro ecológico sem deixar de lado os aspectos religiosos e também essas formas de controlo psíquico que as narrativas messiânicas representam.

Com mais de 400 páginas na edição original, em capa dura, e cerca de 900 na versão de bolso, o manuscrito foi recusado por umas 20 editoras.

No final, acabou por ser um editor da Chilton, mais conhecida pela sua colecção de manuais de reparação de automóveis, que o quis publicar depois de o ler numa série de fascículos de uma revista de ficção científica. Mesmo tendo conquistado os prémios Nebula e Hugo, os mais prestigiados prémios de ficção científica, Dune não se tornou de imediato um sucesso de vendas. Foi construindo aos poucos o seu estatuto enquanto obra de culto, sendo passado de mão em mão, mais como uma obra filosófica que exige uma certa abertura de espírito para produzir a sua descarga onírica, cultivando aos poucos essa rede de influências no quadro da contracultura. Tendo um exemplar chegado às mãos de Denis Villeneuve quando o realizador canadiano tinha apenas 13 anos, o romance veio a causar uma impressão de tal modo forte que este guarda até hoje o planeamento que então foi fazendo da adaptação que ambicionava um dia realizar.

Há muito que se esperava por uma adaptação cinematográfica que fizesse jus ao quadro visionário de Herbert, mas ao longo dos anos, e depois de tantos fracassos, esse parecia um horizonte quimérico. A célebre tentativa do escritor, tarólogo e cineasta chileno Alejandro Jodorowsky de transportar o romance para o grande ecrã fez muito por este mito. Em 2013 saiu um documentário que relata as peripécias de Jodorowsky depois de ter sido convidado por um grupo de produtores de Hollywood para pôr em marcha a operação, tendo este chegado a contar com uma equipa extraordinária e que é o suficiente para nos deixar extasiados com o potencial dessa proposta. Para os efeitos visuais contaria com Moebius e HR Giger, as naves espaciais seriam desenhadas pelo ilustrador inglês Chris Foss, os Pink Floyd e os Magma teriam já assumido a responsabilidade pela banda sonora, Orson Welles ia interpretar o Barão Harkonnen e Salvador Dali o Imperador, falando-se em Mick Jagger para o papel de Paul Atreides. Mas Jodorowsky, que parecia estar mais interessado em aproveitar a oportunidade para caçar a sua baleia branca, e já falava num filme de mais de dez horas, forçou os executivos de Hollywood a porem fim à sua odisseia alucinante. Depois de um período em que os direitos foram passando de mãos, foi Dino De Laurentiis quem assumiu o leme, e chamou David Lynch para filmar a sua versão em 1984, mas com o filme terminado, a Universal levantou problemas e decidiu impor uma versão com cortes substanciais, provocando a ira de Lynch, que exigiu que o seu nome fosse retirado dos créditos. Até hoje recusa-se a falar deste filme.

Se aquele filme custara 40 milhões de dólares e não conseguiu fazer mais do que 30 milhões nas bilheteiras, muitos têm sugerido que a grande adaptação de Dune ao cinema fora feita por George Lucas, com a Guerra das Estrelas. Basta notar que, nos seus primeiros esboços, Lucas nem se deu ao trabalho de disfarçar o rastro até à origem, colocando o seu herói num planeta deserto, uma espécie de messias que tem pela frente um destino galáctico, enfrentando um império maléfico num quadro que incluía também casas nobres em guerra e uma princesa que protegia um carregamento de uma substância com o nome “especiaria aura”. Há um sem número de paralelos entre o universo da Guerra das Estrelas e Dune – dos poderes mentais das Bene Gesserit, em tudo semelhantes aos dos Jedi, até à mineração e à “agricultura húmida” em Tattooine. Herbert estava perfeitamente consciente de que fora plagiado, mas reconhecia uma série de outras dívidas no universo do Lucas face a outros escritores de ficção científica. Em lugar de se engalfinharem numa guerra de créditos para reclamar uma parte do quinhão, preferiram a troça, tendo formado uma organização chamada We’re Too Big to Sue George Lucas Society.

Só em 1969, as vendas de Dune permitiram a Herbert tornar-se escritor a tempo inteiro e embarcar finalmente numa sequela, sendo que esse hiato acabou por mostrar-se decisivo no arco narrativo da saga, uma vez que lhe deu a possibilidade de reagir aos ecos que lhe iam chegando dos leitores. No fundo, o propósito dele ao escrever este romance nunca foi sedimentar ainda mais todo esse complexo messiânico, mas precisamente instigar a dúvida, levar os leitores a compreenderem que não devem contar que nenhum líder é a resposta às preces de um povo. Villeneuve foi obrigado a mutilar muitos elementos cruciais da complexa trama política de Dune, mas não perdeu de vista o principal da sua mensagem, e na abertura da sua adaptação, Chani, uma indígena Fremen interpretada por Zendaya, faz uma pergunta que antecipa a conclusão violenta do segundo filme: «Quem serão os nossos próximos opressores?»

Como assinalava, em 2006, David Itzkoff num artigo no The New York Times, um dos aspectos mais curiosos na repercussão que a obra de Herbert foi tendo ao longo das décadas na cultura popular, é o facto de nunca se ter tornado um fenómeno de massas comparável a “O Senhor dos Anéis” ou “Guerra das Estrelas”. Não existem convenções anuais de “Dune”, e as pérolas que o seu autor espalhou ao longo do texto não adquiriram a mesma resonância proverbial. Mas os sucessivos fracassos nas adaptações ao cinema e à televisão não foram o suficiente para dissuadir Hollywood, tendo-se multiplicado uma série de produções bastante fracas, entre sequelas, prequelas e spin-offs, e se Herbert dedicou seis volumes que abarcam um período de milénios, depois da sua morte, em 1986, o seu filho mais velho, Brian, continuou o processo de mineração, e escreveu a meias com Kevin J. Anderson mais 13 volumes, além de ter colaborado nas adaptações a diferentes formatos, de filmes e séries a livros de banda desenhada e inúmeros jogos de tabuleiro e jogos de vídeo.

Foi preciso Villeneuve trazer o balanço do seu fascínio por este universo e a audácia de construir um reflexo que, na verdade, não ocupa o lugar do romance, mas dialoga com ele, em muitos aspectos actualiza-o, e isto é possível não apenas por se tratar de um leitor que descobriu o livro na adolescência e trazia todo esse embalo que lhe deu a capacidade de levar a cabo este prodigioso efeito de tradução, mas também, ou sobretudo, porque só agora o romance parece ter alcançado a sua plena legibilidade. Num momento em que, como nos diz o já citado Comité Invisível, nos damos conta de todas as consequências dessa forma de degradação a que o homem ocidental se sujeitou no seu divórcio com a existência, consigo próprio, com ‘os outros’, tornou-se claro que “a mentira de todo e qualquer apocalíptico ocidental consiste em projectar sobre o mundo o luto que nós não lhe podemos fazer. Não foi o mundo que se perdeu, fomos nós que perdemos o mundo e o perdemos sem parar; não é ele que em breve vai acabar, somos nós que estamos acabados, amputados, cortados, nós que recusamos alucinadamente o contacto vital com o real. A crise não é económica, ecológica ou política, a crise é antes de tudo crise de presença.”

A legibilidade plena desta saga ficou a aguardar pela emergência de todos os efeitos do domínio tecnológico, de toda essa “aparelhagem sofisticada da ausência, e dessa série infinita de gadgets e de soluções que recobrem todas as formas de acesso ao mundo e aos outros. De tal modo que cada vez mais parece ser o homem que é a prótese física para que esse organismo virtual se reproduza e subjugue toda a realidade. Se a cibernética, até no seu significado etimológico, é uma forma de governo, um regime logístico que se estendeu a todos os aspectos das nossas vidas, o Comité Invisível entende que se trata de uma forma de poder que não pode ser instrumentalizada para outros fins, mas apenas combatida com acções de bloqueamento e sabotagem. Para este grupo reunido em torno da revista francesa Tiqqun, a Internet é uma máquina de guerra, e o processo de digitalização é o ponto de partida e de chegada do quadro de subjugação global capitalista.

E para que este quadro de análise não nos apareça como uma imposição teórica exorbitante, recorde-se que o primeiro livro da saga Dune se passa milhares de anos depois da Jihad Butleriana, uma revolta contra as máquinas que haviam adquirido a capacidade de pensar como pessoas. Logo nas primeiras páginas do romance, depois de Paul ter resistido a um teste de dor da líder da ordem das Bene Gesserit, ela diz-lhe: “Em tempos, os homens entregaram as suas faculdades de pensamento às máquinas, na esperança de que isso os libertasse. Mas isto só abriu caminho a que outros homens com máquinas os escravizassem.” A isto, Paul responde citando um texto religioso: “Não farás uma máquina à semelhança da mente de um homem.”

Aquela primeira “guerra santa” serviu para libertar os homens de todo esse complexo cibernético, estando até ali dependentes das máquinas para traçar percursos no quadro espaciotemporal, mas, tendo-se libertado do seu jugo, acabaram dependentes da especiaria para as viagens interestelares, o que determinou o sistema de domínio colonial que vigora em Arrakis.

Embora o termo “ecologia” houvesse sido cunhado há mais de um século, na altura em que o romance foi publicado raramente era mencionado nos jornais e revistas, e poucos leitores estavam a par desta ciência emergente, assumindo esta uma relação quase esotérica face às concepções da época, completamente alheadas dos quadros de previsão quanto ao futuro do nosso planeta, esses nos quais hoje vivemos imersos. A certa altura, o leitor de Dune deparava-se com esta passagem: “O que os analfabetos ecológicos não percebem sobre um ecossistema é que se trata verdadeiramente de um sistema. Um sistema! E um sistema mantém uma certa estabilidade fluida que pode ser destruída por um passo em falso num só nicho. Há uma ordem subjacente a cada sistema, fluindo de ponto para ponto. Se algo bloqueia esse fluxo, a ordem colapsa. Os não iniciados podem não dar pelos sinais desse colapso até ser demasiado tarde. É por isso que a função mais importante da ecologia é a compreensão das consequências”.

Onde Herbert levou mais longe os elementos de caracterização do seu universo, e aquilo que faz com que o seu romance se tenha imposto de pleno direito como uma fulgurante obra literária, foi no retrato que faz dos Fremen, a população indígena de Arrakis. Ao contrário de Lucas, ele nunca escondeu as suas dívidas, e tanto podemos detectar a influência de T.E. Lawrence, e dos seus Sete Pilares da Sabedoria, cuja adaptação ao cinema estabeleceu o valor-padrão do épico de aventuras, como soube integrar uma série de elementos a partir dos estudos etnográficos de Wilfred Thesiger dos beduínos nas planícies desérticas que se estendem no sul da Península Arábica. A dureza das suas condições de vida naquele ambiente instituiu entre eles uma ética de extrema lealdade solidária, fazendo essencialmente deste povo uma verdadeira irmandade. São o exemplo daquilo que Kipling denominou “uma das raças marciais”: absolutamente dignos de admiração, tendo expurgado inteiramente os traços que o regime do progresso e da competição instilou na cultura ocidental. Uma das frases mais destacadas no romance de Herbert diz-nos que “deveria haver uma ciência do nosso descontentamento”, reconhecendo que “as pessoas precisam dos tempos difíceis para desenvolverem os músculos psíquicos”.

Como refere o seu biógrafo, “uma das suas ideias centrais é a de que a consciência humana existe sobre – e em virtude de – uma perigosa margem de crise, e que a virtude humana mais decisiva é a capacidade de dançar sobre esse limite. Quanto mais o homem se confronta com os perigos do desconhecido, mais consciente se torna. Todos os livros de Herbert retratam e testam a capacidade humana de se adaptar conscientemente. Ele coloca os seus personagens nas situações mais angustiantes que se possa imaginar (…). Não há teste tão poderoso capaz de trazer à tona a adaptabilidade latente como aquele em que o que está em causa é a sobrevivência.”

O facto deste universo não ter encontrado um tão grande eco na cultura popular pode relacionar-se com essa perspectiva bastante crítica e até deletéria face aos elementos da nossa civilização. Dune não alinha nos contos de fadas do progresso, sejam de ordem tecnológica ou não, mas dá-nos a sensação do quanto o mundo está cansado do humano, o quanto nós próprios estamos cansados da humanidade e das suas persistentes fábulas e ilusões. Há um certo repúdio por esta espécie que se considerou a joia da criação, ao ponto de se sentir legitimada para pilhar tudo de forma a fazer valer os seus apetites e necessidades. É essa centralidade do humano, que está na base do projecto ocidental, e que Herbert põe em causa, sugerindo que está na hora de acatar um fluxo de outra natureza, traindo as aspirações desta espécie condenada aos seus ciclos de devastação. Na identificação de Herbert com os Fremen, parece residir o eixo moral que organiza e dá força a todo este regime ficcional. Assim, a perspectiva ecológica não surge como mais um tema, mas como a própria chave que promete libertar-nos.

Paul Atreides não se torna o seu líder propondo-se transformar os Fremen à sua imagem, mas deixa-se educar e adaptar às suas tradições e cultura, acabando por se entregar à lenda messiânica que se foi propagando ao longo de milénios, sobre um líder que os levaria de volta ao Paraíso. Logo viremos a saber que essa profecia foi mais um sistema de controlo que as Bene Gesserit semearam para manter o seu domínio. Neste quadro, tudo parece ser resultado de uma manipulação anterior, tudo está irresistivelmente encadeado, e a nossa tarefa passa sobretudo por reconhecer as causas em relação às quais o presente se configura enquanto consequência.

Todo o individualismo, toda essa prepotência que o nosso quadro cultural contemporâneo alimenta, tudo isso apenas nos inscreve num regime de submissão. Afinal, e como se lê em Dune, toda a grandeza é uma experiência transitória, e nunca chega a mostrar-se consistente. “Depende em parte da imaginação criadora de mitos da humanidade. A pessoa que experimenta a grandeza deve ter alguma ideia do mito ao qual tenta corresponder. Ela deve reflectir quanto ao que está a ser projectado sobre ela. E deve aguçar e preservar um forte sentido de sarcasmo. É isso que a imuniza face à crença nas suas próprias pretensões. O sarcasmo é tudo o que lhe permite mover-se dentro de si mesma. Sem esta qualidade, mesmo a grandeza ocasional destruirá um homem.”

Ainda que no período final da sua vida Herbert tenha gozado de um grande sucesso, sempre que era instado a lançar um olhar sobre o futuro só conseguia ver a humanidade entregue a esse regime de lutas de preservação num ambiente de penúria face aos desígnios do poder. Em Dune, aquela personagem que num primeiro esboço começou por ser a sua protagonista, Liet Kynes, a ecologista imperial, pondera se, para além de um ponto crítico dentro de um espaço finito, não estará a liberdade condenada a diminuir à medida que os números aumentam. “Isto parece ser tão verdadeiro para os seres humanos no espaço finito de um ecossistema planetário como para as moléculas de gás num frasco selado. A questão humana não é quantos podem sobreviver dentro do sistema, mas que tipo de existência é possível para aqueles que sobrevivem.”

De algum modo, Herbert antecipou que a guerra que nos pode libertar será declarada ao Homem, e toda a operação do movimento ecológico passa por corrigir essa pretensão de uma espécie que, com toda a sua soberba, chegou ao ponto de baptizar uma era geológica de “antropoceno” sem retirar daí as devidas consequências no que toca à disrupção dos sistemas vitais do planeta. Segue-se necessariamente uma correcção terrível, e, com as suas concepções libertárias, Herbert estava consciente de que a sua previsão não teria acolhimento, e que se fosse mais directo seria considerado um traidor da espécie. No fim, ele compreendeu como todas as profecias são um modo de actuar sobre o presente, são já um modelo de dominação. Paul Atreides acaba por se reconhecer um joguete de forças que determinaram as regras do jogo e o seu próprio destino muito antes de ele ter vindo ao mundo, e ao ser-lhe dada a possibilidade de espreitar o futuro, isto apenas o leva a compreender que está capturado pelas dinâmicas de um sistema que o ultrapassa. À medida que acata a profecia, vai perdendo o controlo das suas acções e da sua própria individualidade, acabando por se dissolver no mito. Vê-se como parte de um processo, de um fluxo, reconhece que não haverá nunca paz sobre esta terra e também que qualquer noção como um paraíso terrestre é apenas mais outro modelo de controlo.