José António Saraiva. ‘‘Os portugueses, por natureza, tendem a ser anarquistas’’

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Subitamente, o povo dos brandos costumes, sempre tão sereno, nos últimos dias deixou clara a sua revolta. Se quisermos contrariar a noção de um povo amorfo, é um facto que a monarquia teve um fim brutal. José António Saraiva quis revisitar este capítulo sanguinolento da nossa história para fazer enfim sair das sombras O Homem que Mandou Matar o Rei D. Carlos.

Tendo adestrado a mão nesse primeiro esboço da História que o jornalismo procura lançar, promovendo um contorno dos factos que assumem especial relevo na atualidade, José António Saraiva dominava há muito essa habilidade que passa por ir cativando e articulando um enredo, uma espécie de reportagem que funciona como um organismo vivo, alimentando-se de certas noções e criando uma visão congruente do mundo, e particularmente da realidade portuguesa. Não surpreende, por isso, a facilidade com que passa da crónica às monografias historiográficas, que conseguem aliar a prosa direta e cheia de leveza com uma magistral organização dos livros, em que o leitor se sente sempre situado, como se tivesse entrado numa casa com um desenho sóbrio e harmonioso. A isto não será estranha a formação do autor como arquiteto. Mais conhecido hoje como um foco dos incessantes debates sobre costumes, José António Saraiva surge tantas vezes como o desmancha-prazeres, entrando de rompante nesse baile de máscaras e mistificações onde se posiciona como um monstro de perplexidade, exprimindo uma forma de aversão que lhe sai com tintas de ultraconservador. Se isto o levou já a exasperar muitos, outros não deixam de lhe guardar estima e saudar essa forma de desacato no meio da gelatinosa fanfarra dos egos que tomou conta do espaço público. Contudo, e enquanto historiador, tem procurado oferecer um relato em que, depois de um trabalho de pesquisa e investigação, cose tudo com uma linha que vai sendo molhada na boca do bom senso, e é assim que, desta vez, com O Homem que Mandou Matar o Rei D. Carlos, nos convida a penetrar nos bastidores do regicídio, e se propõe desvendar a identidade do homem que, a partir das sombras, manobrou e planeou os eventos do dia 1 de fevereiro de 1908, conseguindo impor o fim da monarquia e abrir caminho à Implantação da República.

O livro termina numa nota bastante dolorosa, em que vemos como todas as pessoas que tiveram alguma participação no regicídio vieram a sentir sérios remorsos. Ficamos também com a sensação de que a monarquia significava um compromisso de dignidade e uma relação de abertura face às restantes sociedades europeias, e que, a partir do momento em que Portugal corta esse vínculo, se condena a uma espécie de clausura. Em seu entender, o regicídio terá sido um desses traumas, como a morte de D. Sebastião?
Tem razão quando diz que todas aquelas figuras ligadas ao regicídio viriam a mostrar remorsos. Mas também essa consciência de um vazio, de uma orfandade, foi sentida até por essas pessoas que chegaram a detestar D. Carlos. A figura do rei, sendo em grande parte simbólica, pelo menos na monarquia constitucional, não deixava de ser uma referência para todos, sendo uma figura representativa da pátria, uma figura nacional, um homem onde o país, para o mal ou para o bem, ia buscar um reflexo de si. Nessa medida, a morte de D. Carlos provocou um vazio inesperado. É uma morte violenta, e que não abre caminho a nada de esperançoso. Em geral, na história, os assassinatos de monarcas ou de grandes líderes tendem a provocar uma particular forma de desolação e desorientação, uma sensação de agonia da própria ideia de pátria. Mas na sua pergunta levanta outro problema, que é o de saber em que medida a ditadura de João Franco conduziu ao regicídio. Ora, havendo interpretações diferentes da parte dos historiadores, eu creio que já havia a perceção de que era preciso um regime mais forte, que garantisse alguma estabilidade governativa. A ditadura de João não foi causa mas consequência. Mais tarde, o salazarismo vai levar isso ao extremo, até porque tem uma visão ideológica muito mais estruturada. O franquismo era menos fechado…

Até porque continuava a haver partidos.
Sim, não foram proibidos. Mas com a morte do rei, não houve só aqueles que mostraram remorsos. Alguns dos elementos que conspiraram naquele período para dar fim à monarquia desapareceram depois de cena, que é um outro modo de arrependimento. Mas essa época também foi a expressão do drama português, em que os períodos de democracia são geralmente bastante turbulentos, e acabam por levar a sociedade como um todo a alguma forma de agonia. A primeira república é extremamente turbulenta, tal como o é o período que se seguiu ao 25 de Abril. Felizmente, a integração na Europa afasta a possibilidade de se impor uma nova ditadura, mas a sensação que fica é de que temos muita dificuldade em nos organizarmos, havendo entre nós essa disposição para aguardar a vinda de um salvador, ou, em alternativa, de um regime que, pela força, imponha a ordem.

Faz uma análise da própria historiografia portuguesa, de uma certa tendência para os investigadores ligados à academia ficarem por uma postura algo titubeante, tendo dificuldade em levar até ao fim algumas especulações ou linhas de investigação. E este seu livro propõe-se violar por fim essa interdição ou tabu em relação a uma figura que terá tido algum relevo na conspiração, e que neste livro é apontado como o principal mandante do assassinato do rei D. Carlos e do seu filho D. Luís Felipe. Afonso Costa que, já enquanto membro do executivo republicano, tutelando a pasta da Justiça, fez desaparecer o processo de investigação sobre o regicídio. Porque é que lhe parece que persiste até hoje este tabu no sentido de reconhecer quem foram verdadeiramente os autores morais daquele ato?
É evidente para todos os investigadores que os regicidas não atuaram sozinhos. Nem dinheiro tinham para comprar as armas que foram usadas. Alfredo Costa empunhava uma pistola de último modelo, e sobretudo a carabina do Buíça, que era fabricada nos EUA, e foi importada da Alemanha, sendo o último grito em termos de precisão, era caríssima. Estes eram homens modestos. Que por si só não seriam capazes de levar a cabo aquela ação. E é curioso que um historiador como Rui Ramos, que tem um livro magnífico sobre D. Carlos, investigue duas das figuras que se considera, unanimemente, que estão por trás do regicídio, o José de Alpoim e o visconde da Ribeira Brava, que eram dois políticos monárquicos, mas não investiga aquele homem que com eles tinha relações mais próximas, e que viria a ser uma das figuras dominantes da primeira república, Afonso Costa. Isto para mim é um mistério. Em relação a outros investigadores, dá a sensação de que se permitem ir até um certo ponto e que às tantas se deparam com um abismo, parecem subitamente tomados pelo receio de dar o passo seguinte. Depois do regicídio circulou pelas ruas de Lisboa um panfleto onde se lia: «Morte a Alpoim, Ribeira Brava e Afonso Costa, os verdadeiros assassinos de D. Carlos»… Ora, há até livros que, citando este panfleto, não referem o nome de Afonso Costa. Portanto, há aqui uma omissão e um silêncio que vai até ao 5 de Outubro e depois se prolonga até aos nossos dias.

E porquê?
Depois do regicídio, havia o fundado receio de que este fosse seguido de uma revolução republicana. Algo pouco conhecido é o facto de a própria D. Amélia ter intervindo no sentido de as investigações não irem muito longe, pois se estas viessem a apontar o dedo aos republicanos isso poderia ser o gatilho para fazer eclodir a revolução. Já no exílio, D. Amélia dá uma entrevista muito curiosa em que, ao ser interrogada sobre por que não fez mais para se apurarem os mandantes do crime, diz que a polícia estava a investigar pessoas apenas por serem políticos republicanos e não por terem necessariamente alguma responsabilidade no crime. Ora, a razão era outra. Já lhe tinham matado o marido e o filho mais velho, e D. Amélia teria receio pela vida do mais novo, D. Manuel II. E assim não queria que remexessem muito no caso. Depois do 5 de Outubro, o processo chega ao Ministério da Justiça e desaparece. O ministro da Justiça é Afonso Costa. Dizem que uma cópia teria sido levado por D. Manuel II para o exílio, e que teria sido roubada do interior da sua residência. E o caso foi encerrado.

E o que explica a relutância dos historiadores?
Percebo que os académicos, em certo sentido, assumam a postura dos juízes, e na ausência de provas conclusivas se escusem a uma condenação, se eximam de fazer esse papel de detetives, apontando um culpado. Querem provas conclusivas, não aceitam os sinais. Mas é na conjugação desses sinais que é possível muitas vezes resolver um crime. Depois, há a influência da Maçonaria, que tem um papel decisivo na investigação histórica, particularmente naquele período. E Afonso Costa estava muito ligado aos círculos maçónicos. Há outra reflexão a fazer sobre o mandante do regicídio: é óbvio que teria de ser uma grande figura da República. Se fosse um republicano de segunda linha, não haveria qualquer interesse em esconder o seu nome. E se tivesse sido um monárquico, o seu nome acabaria exposto, como aconteceu com Alpoim e Ribeira Brava.

Na transição de D. Luís para D. Carlos, há um momento de alguma esperança da parte de alguns intelectuais, incluindo os Vencidos da Vida, de quem este era bastante próximo, de que isso pudesse vir a trazer alguma frescura, mas, no fim, o próprio rei parece ter perdido a confiança na elite política e cultural, acabando por dar o seu apoio à ditadura. Porque lhe parece que este homem, que tinha tanta estima pelas artes e pelos valores liberais, acabou por perder a fé na democracia?
D. Carlos foi, de facto, muito próximo do grupo dos Vencidos da Vida, e depois vem a escolher para seu secretário particular um homem que o integrava, que era Bernardo Pindela. Havia nele também essa vontade de ver Portugal tornar-se uma sociedade arejada, um país desenvolvido, que pudesse ombrear na sua cultura e expressão com os países do centro e norte da Europa. Essa ânsia de modernidade estará sempre presente no seu espírito. D. Carlos é das primeiras pessoas em Portugal a terem uma máquina fotográfica, empenha-se nas campanhas oceanográficas, que eram então algo completamente novo a nível mundial. Portanto, D. Carlos foi sempre um homem que valorizou o saber e a cultura, mostrando o seu talento como pintor. Foi um homem que se sentiu valorizado desde muito novo, e nunca perdeu a sua crença no progresso, num envolvimento com as grandes correntes artísticas e do pensamento da época. E foi com esse espírito que sucedeu ao pai, que era um homem mole, diminuído pela doença, um homem desanimado, em contenda com a mulher, D. Maria Pia, por quem continuou a mostrar alguma afeição, isto apesar das infidelidades que esta foi cometendo. D. Carlos surge com todo o brio da juventude, e os Vencidos da Vida entendiam que ele poderia trazer uma nova dinâmica à sociedade portuguesa. Mas o seu reinado foi imensamente tempestuoso, e ele próprio acabou por ter em algum momento a consciência de que não havia futuro para aquele regime. De resto, esse pessimismo caracterizava também a postura daqueles intelectuais: o próprio nome do grupo mostrava que aqueles homens foram perdendo os seus ideais e vergados pela vida. D. Carlos foi certamente um deles. O apoio que deu a João Franco foi o seu reconhecimento de que não havia reforma que desse conta dos problemas daquele regime, e a ditadura foi uma saída desesperada.

E isso resultou apenas da leitura dos elementos políticos?
Um facto que é pouco conhecido é que D. Carlos soube por esses dias que padecia de uma doença grave, sendo diabético em alto grau, não lhe restando muito tempo de vida. A consciência desse pouco tempo que tinha à sua frente, levou-o a querer acelerar o processo político. Um dado curioso é a decisão dele de se retirar do Palácio das Necessidades, onde a sua zona privada lhe garantia todos os luxos, para o Convento das Necessidades, que fica ao lado, mas que é um espaço bem mais austero, sem vistas, sem grande conforto, sinal de que se estava a despedir já. Esse despojamento corresponde, no plano político, à tentativa algo desesperada de salvar o regime, que ele sente que está a definhar.

É curioso que o pai dele tenha morrido sifilítico, em condições pavorosas, pagando muito caro as suas paixões dos tempos de marinheiro, em que se deitava com tantas mulheres quantas lhe suscitassem algum entusiasmo. Depois temos D. Carlos, que acaba os seus dias sendo frequentemente alvo de mofa na imprensa, caricaturado como um porco, e que assume uma figura algo patética, destinando-se também a uma morte dolorosa. Dá a sensação de que, fosse como fosse, havia nos comportamentos dos nossos monarcas um grau excessivo que tendia para a dissolução, sendo que as próprias intrigas e as infidelidades tornavam o ambiente bastante pesado. Parece assim que se degradam, e abdicam de uma disciplina e de um compromisso com as suas causas e convicções… Porque é que esta é a imagem com que ficamos dos nossos monarcas quando o próprio regime estava tão ameaçado?
Em relação às infidelidades entre o rei e a rainha, há uma explicação simples. Os casamentos eram determinados por razões de Estado, e não por amor. Assim, todos os reis acabavam por manter relações fora do matrimónio, e D. Carlos não é exceção. Mas há no seu casamento uma novidade, que o diferencia de outros. É que este começa por ser verdadeiramente um casamento em que havia, pelo menos da parte dele, um encantamento por D. Amélia. Antes do casamento, ele faz questão de ir a França conhecer a futura noiva, passam uns dias em Paris, na propriedade de um tio, e ele realmente parece ficar muito cativado por ela. Sem ser uma mulher de uma beleza deslumbrante, D. Amélia tinha uma bela figura, era elegante, tinha uma grande educação, e era muito inteligente. Dominava perfeitamente os códigos sociais, partilhando com ele muitos interesses artísticos. As cartas que D. Carlos escreve ao pai denotam claramente que ele ficara apanhado por aquela mulher. D. Amélia não sentiu o mesmo encanto, mas reconheceu que tinha nele um par, e não levantou problemas à união. Deixou-se ir.

E como se degradou a relação entre eles depois do casamento?
No princípio da sua vida em comum, eles vivem aqui no palácio de Belém, e é uma vida a dois, o que é muito raro nessa altura nas cortes europeias. Depois a relação estraga-se, e isto está relacionado com um facto que os historiadores também não exploram muito, por ser algo um tanto incómodo: uma relação homossexual que a rainha tem com uma dama de companhia de origem espanhola, chamada Josefa Sandoval, cujo petit nom é Pepita. Esta relação é importante porquê? Porque assinala o momento em que começa a deterioração no casamento. Encontrei um jornal de Mafra que nos informa sobre o preciso momento em que D. Carlos e D. Amélia fazem a mudança de Belém para as Necessidades. E estava com eles uma irmã de D. Amélia, Helena, com quem ela tinha uma ótima relação. Mas a partir daqui tudo se estraga. Através da leitura da correspondência, descobrimos que esta Pepita intrigou de forma a convencer D. Amélia de que D. Carlos tinha assediado a irmã de D. Amélia. Esta fica magoadíssima, sentindo-se traída de dois modos: pelo assédio do marido à irmã e por esta ter supostamente correspondido. Esta crise teve um grande impacto na relação e no estado de espírito de D. Carlos, que dizia que quando punha os olhos na tal Pepita era como se sentisse uma navalha encostada à carótida.

Isto teve repercussões públicas?
A imagem que se constrói de D. Carlos é a de um femeeiro, um homem dissoluto, sem princípios, por contraposição a D. Amélia, elevada a um símbolo de virtudes, uma mulher que tinha vindo da corte francesa, a quem era reconhecido o porte e a distinção. Ora, tudo isto é falso. Até ao fim da vida, D. Carlos manifestou sempre uma grande afeição pela mulher, ao passo que ela muito cedo se desligou dele. Note-se que, no quarto dela nas Necessidades, não havia uma só fotografia de D. Carlos, enquanto na zona privada dele são várias as fotografias de D. Amélia. Assim, mesmo a nível pessoal, D. Carlos acabou por sair ferido por uma sucessão de golpes. E recorde-se que, logo a seguir a ser aclamado rei, cai-lhe em cima o Ultimato inglês, uma declaração brutal vinda de um país com o qual ele mantinha relações, até ali, excelentes, sendo sobrinho da rainha Victória, e que significa um viragem súbita, e um momento de grande hostilidade face a este aliado histórico. É uma declaração que desaba inteiramente sobre este jovem rei, a quem os republicanos acusam de não ter grandeza para segurar o Império colonial.

E D. Carlos?
Não pode fazer grande coisa. Sendo humilhado publicamente pelos ingleses, fica sujeito a ver parcelas do Império serem roubadas. Portanto, temos um reinado que começa logo com esta chaga profunda, e que vem inflamar ainda mais a sanha por parte dos republicanos. Se mais tarde é a esquerda que assumirá uma postura anticolonialista, aqui são os partidários da República, que estão mais à esquerda que os monárquicos, que se julgam os verdadeiros guardiães do Império, acusando o rei de ser incapaz de o fazer. Depois desta acusação brutal, o próprio deslassamento dos partidos monárquicos, com um rotativismo que acaba por ser fraudulento, chegando ao ponto de os partidos combinarem entre si antes das eleições os lugares no parlamento. Isto com o partido republicano a ganhar um ascendente claro, campeando a defesa dos interesses da pátria, face a uma monarquia ineficaz e cada vez mais frágil. E até ao nível dos bons costumes, apontando uma vez mais a monarquia como o motivo do atraso nacional e da dissolução dos valores. Depois há uma série de eventos que são aproveitados para vexar publicamente o rei, como as celebrações do tricentenário de Camões. Assim, fica a sensação de que D. Carlos, como apontou Raul Brandão, parecia ter tudo para ter sido um grande rei, mas vai sendo minado quer na sua estatura e poder, quer a nível moral, tornando-se o protagonista de uma campanha incessante para lhe quebrar o espírito.

O seu livro acaba por resultar como uma biografia do último fôlego da monarquia, e particularmente da figura do D. Carlos, mas pergunto-lhe porque é que não escolheu o ângulo inverso, mergulhando nessa zona mais sombria e convulsa dos movimentos revolucionários, investigando os grupos anarquistas, a Carbonária, a própria influência da Maçonaria, toda aquela sociedade civil bastante tumultuosa e de onde surgem os regicidas, e que mostram uma capacidade de sacrifício pessoal espantoso. Porquê preservar essa visão classista e conservadora, em vez de reconhecer que no regicídio o que vemos é precisamente aflorar o choque entre essas duas tradições, com dois homens do vulgo, representando a massa, a darem o golpe que vem a determinar o fim da monarquia, dessa preservação de uma linhagem que parece estar entretecida na própria ideia da pátria?
Essa sua questão é muito curiosa… Como sabe, mesmo na leitura sobre o regicídio, há duas tendências interpretativas: uma que entende que o grande trauma foi a morte do rei, que é sentida como uma grande perda. E há a visão de que a tragédia foi a morte dos regicidas. São aos milhares as pessoas que lhes prestam tributo, fazendo romagens ao lugar onde foram enterrados, tendo os seus corpos sido lançados em covas muito fundas precisamente para dificultar o acesso aos restos mortais. Aos domingos, houve o costume de ir levar flores a Manuel Buíça e a Alfredo Costa. No fundo, a sua pergunta tem a ver com isso, com o motivo por que não fui por esse outro lado… o do povo, digamos assim. Afinal, para muitos republicanos, o regicídio foi um ato de heroísmo, de imensa generosidade, de homens que deram a vida em nome de uma causa que tinham como justa. No fundo, entregaram-se à morte para salvar o país, pois é nisso que acreditavam. Eles e os anarquistas, que acreditavam profundamente nos seus ideais. Eu percebo isso muito bem, pois comecei a estudar este período há muitos anos, e cheguei a fazer um livro a quatro mãos com o Júlio Henriques, um homem que estava então e continua ligado aos movimentos anarco-sindicalistas…

Fez um livro com o editor da Flauta de Luz!?
Sim, chama-se O 28 de Maio e o Fim do Liberalismo, e começa precisamente nas guerras liberais. Ora, esse livro segue mais essa perspetiva do povo e menos a do Estado. Foi publicado há uns 40 anos. A resposta que lhe posso dar sobre o motivo porque segui agora a orientação oposta tem a ver com a própria ideia que esteve na origem deste livro. Foi quando li um diário do Afonso Costa, em parte redigido na prisão: dei-me conta de que, estando atrás das grades na altura em que se dá o regicídio, em nenhum momento ele dá conta do que acabou de acontecer. Pelo contrário, foge a tocar no assunto. E mesmo sobre o que se passou no dia 1 de fevereiro de 1908, o que nos diz é que lá dentro só se aperceberam de que estariam a dar-se alguns tumultos nas ruas, falando-se de que o rei foi morto. Mas faz questão de mostrar a sua incredulidade, alvitrando que um atentado, a ter ocorrido, teria visado antes João Franco. Ou seja, Afonso Costa faz-se de «desentendido». Ora, é difícil acreditar que ele não estivesse a par do que estava a ocorrer. Ele estava preso no Cabeço de Bola, um quartel em Arroios, próximo da Praça do Chile, uma zona operária, sendo impossível que não tenha sabido o que estava a passar-se. E quatro dias depois continuava a dizer-se a leste de tudo aquilo. Acontece que, em 1984, sai uma entrevista (que não vi citada por nenhum historiador) na qual a filha do Buíça diz explicitamente que o Afonso Costa participou nas reuniões de preparação do regicídio. Portanto, naquele diário ele estava a mentir…

Ela aponta o lugar que ocupava Afonso Costa no Café Gelo, e que o pai dela a instruiu a nunca mencionar a presença dele.
Exatamente. E é normal, dada a importância de Afonso Costa. Mas foi a leitura daquele diário que fez me saltar a fagulha de que haveria ali um indício de uma participação mais direta deste homem no regicídio. Percebo que os historiadores se recusem a confiar na intuição. Mas a partir do momento em que uma pista surge, a investigação deixa de ser feita no vazio, não é um mero acumular de dados para serem depois trabalhados. Passa a ser uma investigação dirigida, indo atrás dos elementos que possam validar ou invalidar aquela intuição. Seguindo os passos do Afonso Costa, dei-me conta de que ele na altura se tinha desligado do diretório do Partido Republicano; depois, juntamente com o Alpoim, o Ribeira Brava e um outro republicano, Álvaro de Castro, se não me falha a memória, organiza um comité para a preparação de uma revolução. Mas os planos logo caem na rua, e às tantas era o tema de que todos falavam nos cafés… No seio desse comité eles formam então uma outra estrutura chamada Coruja, mais secreta, e esta sim vai preparar o regicídio. E como acontece noutras alturas, o Afonso Costa some-se da vida pública. Diz que lhe foi detectado um foco infeccioso num pulmão e que precisa de ir receber tratamento à Suíça. Faz mesmo questão que se saiba que estará ausente e chega a tirar uma fotografia lá na companhia da mulher. E chega a enganar os historiadores. O Oliveira Marques (a quem a família entregou todo o espólio e que o biografou) diz que ele estava em Cauterets, em França, numa altura em que ele envia da Suíça um postal a um amigo, em Agosto de 1907. Ele reaparecerá em Lisboa em meados de Janeiro de 1908 e vai pôr na rua a revolução a que parecia ter virado costas.

Mas a sua tese é de que essa revolução não passou de uma fachada.
De uma forma geral, os historiadores dão esta revolução que sai à rua em 28 de Janeiro como algo que foi levado a sério por quem nela participou, e entendem que é o seu falhanço que determina que dias depois se dê o regicídio. A minha teoria é a contrária: a revolução foi uma cortina de fumo para distrair as atenções de uma coisa mais grave em preparação. Todas as descrições do que ocorreu naquele dia parecem risíveis, ao ponto de, com o fim de lançarem um ataque à Câmara Municipal, na Praça do Município, Afonso Costa e outros se terem metido na cabina de um elevador que não estava em funcionamento, chamando a atenção da polícia que os levou a todos presos. Ou seja, o 28 de Janeiro não passou de uma farsa, e que funcionou – porque, a partir dali, as chefias da polícia consideraram que o pior tinha passado, que a situação estava sob controlo. A prova de que o regicídio não é uma ação desesperada, na sequência do falhanço do 28 de Janeiro, é que, neste mesmo dia em que essa revolução está na rua, Manuel Buíça está a tratar do testamento, dizendo que vai morrer em breve e pedindo que ajudem os seus filhos. Na altura do 28 de Janeiro, o regicídio já estava marcado.

E ninguém deu por isso?
De todos os relatos que li, só encontrei um jornalista estrangeiro que suspeitou desses acontecimentos de 28 de Janeiro, dizendo que estava tão mal preparado que nenhum dos participantes podia seriamente estar convencido de que fosse produzir algum efeito. Esse jornalista é o único que levanta então a hipótese de o movimento ter sido levado a cabo com qualquer outro fim obscuro. Estando preso e sendo acusado de participar numa revolução com o objetivo de derrubar o regime, Afonso Costa fica salvaguardado de lhe ser assacada alguma responsabilidade no regicídio. Foi este o fio que eu segui. Mas pode ainda assim questionar-me: por que não investiguei antes o rasto dos movimentos anarquistas, portanto, esse outro lado de onde emergem os regicidas? Talvez porque a própria desgraça que foi a vida de D. Carlos, de um homem cheio de talento e que parecia destinado a ter um reinado prometedor, e que acabou por ser sempre incompreendido, envilecido pela imprensa e pelos políticos, esta vida que vai sendo pontuada por uma série de azares e de infortúnios pessoais, tudo isso me empurrou para este retrato que nos permite ver o rei e o próprio regime a definharem. Portanto, tratou-se menos de glorificar D. Carlos ou a monarquia do que de tentar perceber a podridão da corte e as tensões políticas que estiveram na base da implantação da República.

Persiste até hoje a convicção de que o verdadeiro alvo do atentado seria João Franco… Por outro lado, e de acordo com as descrições dos eventos desse dia 1 de Fevereiro de 1908, Buíça e Alfredo Costa parecem ter-se lançado de imediato sobre o coche onde seguia a família real. No livro, diz-nos também que João Franco desvalorizou rumores de que poderia estar para ocorrer um atentado, e o próprio rei recusou ser escoltado por forças policiais, e isto sendo público que naquele dia a família real iria passar em cortejo pelo Terreiro do Paço…
Parece-me que isso não passa de outra cortina de fumo. Pondo-se a correr a versão de que o alvo da conspiração seria o ditador, isto dava uma falsa segurança ao rei. De facto, um dos regicidas terá dito a um amigo que se preparava para matar João Franco. Creio que os rumores terão persistido ao ponto de ainda hoje causarem confusão. Julgo que foi um ludíbrio, e, como se viu, resultou. Sabemos que João Franco não guarneceu o Terreiro do Paço de polícias, e que por esses dias mudou diversas vezes de casa, chegando a passar uns tempos acolhido na residência da sogra, no receio de um atentado contra a sua vida. Ora, é falso que os regicidas tenham virado as atenções para o coche onde seguia a família real por não terem dado com aquele onde seguia Franco. No Terreiro do Paço, o coche onde este ia era o quarto do cortejo, sendo perfeitamente visível. Portanto, o objetivo claro era tirar a vida ao rei. E até tenho dúvidas sobre se não seria matar toda a família real, deixando de fora apenas D. Amélia. A prova é que só ela não foi alvejada, tendo procurado proteger D. Manuel, que ficou ferido num braço. Ele próprio irá relatar que ficou a dever a vida a um movimento instintivo que o livrou de um ferimento possivelmente fatal. A morte de João Franco, da perspetiva dos republicanos envolvidos no regicídio, significaria apenas a substituição do governo; ora o que eles queriam era a substituição do regime. Há outro elemento. Na sequência do 28 de Janeiro, o Alpoim foge para Espanha, acompanhado de dois criados – e quando estes regressam ao país, tendo parado numa taberna, anunciam que por essa altura já o rei estaria morto, o que não era (ainda) verdade. Isto indica que o Alpoim sabia quem era o verdadeiro alvo da conspiração, e o dia e hora do crime.

Mudando de assunto, neste momento parecemos ter recaído num destes períodos de grande instabilidade política, e mesmo um governo legitimado por uma maioria absoluta caiu depois de uma série de casos e de suspeitas de corrupção, e temos uma evidente crise de confiança nas instituições, com uma espécie de guerra entre os dirigentes políticos e o Ministério Público, e isto ainda com os descontentamento das polícias e de outras classes, desde logo os professores e os médicos, e, assim, parece estar a ensaiar-se uma verdadeira convulsão política. Tendo andado a investigar o fim do salazarismo e agora o fim da monarquia, pergunto-lhe se vê aqui, não um ensaio para o fim da democracia, mas pelo menos crise profunda das suas instituições. Cheira-lhe a fim de ciclo?
De facto, este retrato parece indicar um período de grande turbulência. Temos os professores numa situação de grande incerteza e de insustentabilidade da sua profissão, com episódio terríveis a terem lugar nas escolas; temos o descontentamento das polícias a contagiar as próprias forças armadas, temos a Justiça num caos, e mesmo o quadro político-partidário está a atravessar uma redefinição profunda, com a emergência de um novo partido que põe em causa a alternância no poder entre dois partidos do centro, que ocorreu ao longo de meio século. Há aqui uma espécie de rima com o fim da monarquia, pois se ali tínhamos dois partidos a sucederem-se no poder, o Progressista e o Regenerador, num rotativismo semelhante ao que ocorria entre PS e PSD, isto desmorona-se quando João Franco provoca uma cisão, criando um terceiro partido. Foi o fim desse bipartidarismo, que agora se processa com a emergência do Chega. Mas da leitura que faço do quadro político português, não creio que esteja em causa uma mudança de regime. Vivi a transição do salazarismo para o marcelismo, e depois para o quadro democrático no pós 25 de Abril, mas foi quando aderimos à União Europeia que me pareceu que, mais do que os fundos comunitários, isso era o que consolidava o regime democrático. Até então, o nosso país andou sempre aos baldões, entre golpes de Estado, ditaduras militares ou civis, com uma grande incapacidade de escapar a um modelo autoritário; mas finalmente, com essa integração e tutela europeia, tínhamos a garantia de que as instituições democráticas estavam asseguradas. Tendo vivido parte da minha vida em ditadura, essa garantia democrática foi para mim um alívio. O problema agora é que são as próprias instituições europeias que parecem estar a ficar comprometidas, e desafios novos, como a invasão da Ucrânia, deixam-nos um pouco ansiosos quanto à capacidade de a Europa se unir para dar resposta a esse tipo de ameaças. A emergência de movimentos fascistas ou iliberais, e o desaparecimento ou erosão de certos partidos históricos, desde logo os partidos socialistas, tudo isso abre caminho a convulsões profundas que podem pôr em causa o projeto europeu. Portanto, preocupam-me menos os sinais de instabilidade que vemos neste canto da Europa do que essas nuvens negras que se adensam a Leste. O nosso destino está entrelaçado com o da Europa, e é para o resto do continente que olho no sentido de perceber o que pode vir a suceder-nos.

Há uma outra classe de que ainda não falámos e que me parece que tem um papel essencial na articulação do regime democrático, na defesa dos seus pressupostos, e que foi alvo de uma proletarização e precarização avassaladora neste século… Ate há uma década ainda se falava do quarto poder, da capacidade que a imprensa tinha de escrutinar o exercício do poder, e tendo o José António Saraiva estado 23 anos na direção do Expresso, tendo depois criado o semanário SOL, e com uma vida ligada a esta profissão, gostaria de saber como encara a forma como, mais do que a pressão das novas tecnologias e das redes sociais, esta parece ter entrado em rutura por uma viciação das suas funções, com um conjunto de grupos económicos empenhados em submeter este setor e enquadrá-lo nos seus interesses. Pôs muitas questões nessa pergunta. E eu gostaria de introduzir um outro nível de análise, pois entendo que os portugueses, por natureza, tendem a ser um tanto anarquistas, no sentido em que não são naturalmente dados a assumir uma adesão a valores que façam deles um povo «obediente». Não tendem a organizar-se e a bater-se por causas comuns. E isto caracteriza as próprias atitudes face ao Estado. Se pensar nos nórdicos, a eles não lhes passa pela cabeça fugir aos impostos, entendem que isso fere da forma mais clara os valores sociais e da mais elementar justiça. Ora, nós, além de avessos à autoridade, exibimos essa atitude de desafio, essa hostilidade face ao Estado… Ainda é uso corrente nas estradas portuguesas fazerem-se sinais de luzes para avisar os condutores que vêm em sentido contrário de que está ali uma operação policial. Ou seja, há esta cumplicidade entre membros de uma sociedade que encara com grande desconfiança os elementos que garantem a ordem.

Talvez isso ainda seja um resíduo da resistência à vigilância e repressão no período da ditadura.
É possível. Mas tudo isso tem algum reflexo depois na nossa incapacidade de nos organizarmos, numa certa inorganicidade da vida portuguesa. Por outro lado, depois isso também justifica estes afloramentos autoritários, estas pressões dos que se identificam como «pessoas de bem», e sentem estar a pagar um preço indevido face aos demais. Mas, no que toca ao jornalismo, e para falar na minha experiência pessoal, quando entrei no Expresso, com as funções de subdiretor, nunca pensei ser diretor. Era uma experiência. Acabei por subir meses depois a diretor, contra a minha vontade – e por grande insistência de Balsemão –, uma vez que isso me obrigava a deixar a minha atividade como arquiteto, que ocupava a maior parte do meu tempo, e era uma profissão pela qual tinha uma grande paixão, trabalhando com um homem que eu admirava muitíssimo, o Manuel Tainha… Antes de entrar no Expresso, comecei como colaborador, tendo no Vicente Jorge Silva (que viria mais tarde a fundar o Público) um grande amigo. Então o jornalismo era feito segundo um paradigma da independência face ao «patronato», sendo o Vicente a própria imagem desse espírito rebelde e que não aceitava que se imiscuíssem no seu trabalho… Ainda me lembro das suas frequentes diatribes: «O Balsemão anda a encher os bolsos à nossa custa!…» E o que eu lhe dizia era: «Enquanto ele encher os bolsos, estamos nós bem, o pior é quando ele tiver de desembolsar algum capital para garantir a continuação do jornal.» Havia então essa consciência do poder das redações. Nesses dias, o Balsemão tremia perante a audácia dos jornalistas do Expresso, e eu vivi isso, senti essa cultura de desafio na redação. Posso dizer-lhe que Balsemão, em 23 anos, nunca me disse para eu fazer esta manchete ou aquela. Pelo contrário, em diversas ocasiões disse-me: «Esta sua manchete tramou-me com A ou B ou C, e vai incompatibilizar-me com fulano de tal que é um dos meus maiores amigos…» Hoje, caímos no paradigma exatamente oposto. A situação profissional dos jornalistas é de uma grande fragilidade, os jornais estão praticamente a desaparecer e a perder a sua influência, ao passo que naqueles anos eram verdadeiramente um quarto poder. Uma notícia podia realmente fazer cair um governo. E se os jornais estão moribundos, as televisões cederam ao chamado infotainment e não passam de um negócio. Hoje, são inteiramente conduzidas pelas audiências, e pela necessidade desesperada de atrair os anunciantes. As audiências são o caminho para a degradação absoluta dos conteúdos e programas, como fica claro se ligarmos os canais generalistas. E as redes sociais vieram contaminar decisivamente o jornalismo, uma vez que, sendo conteúdos sem qualquer filtro, criam um contexto em que o tratamento noticioso dos factos é avassalado por essa pressão de satisfazer ou alimentar o ânimo das massas. O jornalista vê-se incapaz de fazer valer os critérios de mediação e de isenção. Ao mesmo tempo, e dada a sua precariedade, vive no receio de perder o emprego, sujeito a todo o tipo de métricas e ainda à pressão dos patrões. Hoje, quando um órgão de informação muda de mãos, os jornalistas ficam sem saber a que valores devem agora estar sujeitos. E em muitos casos nem se sabe ao certo quem são verdadeiramente os proprietários, pois estamos a falar de fundos de investimento sem rosto… Mesmo essa imagem do patrão, que Balsemão toda a vida simbolizou, até isso desapareceu. Eu tive a sorte de conhecer e contactar com muitos jornalistas combativos, honestos, que defendiam o seu ofício e tinham um sentido de nobreza no exercício da profissão; mas parece-me que a tendência é para estes abandonarem o barco e o naufrágio ser completo. Os últimos jornalistas «românticos» são figuras isoladas e que se batem desesperadamente para preservar essa nobreza, quando a maioria à sua volta só procura sobreviver. Portanto, e neste momento em que já não estou a fazer jornalismo, tenho a impressão de que a esmagadora maioria da classe é um contingente de pessoas que se limitam a satisfazer interesses particulares ou o apetite das audiências. Assim, a imagem quixotesca que tínhamos do jornalista acabou.