O Japão na palma da mão

Caprichoso, irónico, com um grau de perfeccionismo a roçar o obsessivo, o netsuke evoluiu para uma micro obra de arte que condensa o espírito japonês.

Foi através de um artigo no The Guardian que há meia dúzia de anos tomei conhecimento da existência de um livro chamado The Hare with Amber Eyes – A Hidden Inheritance (A lebre com olhos de âmbar – uma herança escondida), da autoria de Edmund de Waal. Olhando para trás, não é difícil identificar o que de imediato me prendeu a atenção. Logo à partida o artigo juntava dois motivos óbvios de fascínio: uma figura parisiense em que Marcel Proust se inspirou para criar uma personagem inesquecível de Em Busca do Tempo Perdido; e uma coleção de netsuke, pequeninos bonecos japoneses feitos de osso, marfim ou madeira, representando umas vezes animais (ratos e polvos eram dos mais populares), outras vezes situações cómicas.

A tal personagem inesquecível de Proust era Charles Swann, o distinto colecionador judeu por cuja filha o narrador do romance se apaixona perdidamente. Para dar vida a este homem rico, culto, de gosto requintado, Proust ter-se-á inspirado, como quase sempre acontecia, num seu contemporâneo. Usou como modelo Charles Ephrussi, um judeu de origem russa, também colecionador, crítico de arte e patrono dos pintores impressionistas – ao ponto de ser ele um dos convivas representados por Renoir no célebre O almoço dos remadores.

Ephrussi não se interessava apenas por pintura. Nas décadas que se seguiram à abertura do Japão ao mundo – sob ameaça da marinha americana, em 1859 – a arte japonesa tornou-se moda em Paris. E, na década de 1870, o magnata judeu adquiriu primeiro um conjunto de objetos de laca e, depois, uma fabulosa coleção de 264 netsuke. Os bonequinhos cumpriam outrora uma função. Como os trajes tradicionais não tinham bolsos, os japoneses de antanho usavam pequenas caixas para transportar pertences pessoais. Originalmente, o netsuke era uma espécie de botão ou berloque que prendia essa caixa à cintura. Mas, aos poucos, foi-se tornando uma micro obra de arte e uma condensação do espírito japonês: caprichoso, cheio de ironia, com um grau de perfeccionismo a roçar o obsessivo. Pegar num destes objetos é ter o Japão na palma da mão.

Após a descoberta desse texto, que me deixou com água na boca, constatei que A lebre de olhos de âmbar estava publicado em Portugal, numa tradução de Maria Lúcia Lima para a Sextante Editora. Nas suas páginas, o ceramista Edmund de Waal, descendente da família Ephrussi, reconstitui o extraordinário percurso que os 264 netsuke fizeram até irem parar-lhe às mãos. De Paris (onde chegaram vindos do Japão), viajaram para Viena, quando Charles os ofereceu ao seu primo Viktor como presente de casamento. Depois disso ainda haveriam de passar por muitas peripécias e de percorrer muitos milhares de quilómetros.

A arte nunca é a distância mais curta entre dois pontos, e De Waal sabe-o bem. Parte biografia, parte livro de viagens, A lebre de olhos de âmbar tem parágrafos que não destoariam nas notas de catálogo de uma leiloeira. Mas acima de tudo narra a história de uma grande família europeia, com ramificações que se estendem por Odessa, Paris, Viena e chegam até Tóquio e Nova Iorque. As suas páginas oferecem-nos uma escrita contemplativa, táctil, trabalhada, minuciosa. Sempre capaz de surpreender e filtrada por um fino sentido de humor. Tal e qual esses pequenos e preciosos objetos vindos do Japão.