Sofismas e ambiguidades na conflitualidade internacional

O Irão como foco de ação estratégica, pretende igualmente alargar a sua influência económica, política e militar na região.

O sistema internacional que estamos a viver parece caraterizar-se pelo paradigma da ambiguidade e dos sofismas retóricos. Mas todos os fantasmas estão aí. De regresso. Do Norte ou do Sul mais ou menos (Global), da Rússia ao Médio Oriente, da Ásia-Pacífico a África ou até mesmo na Europa. Das guerras, conflitos e ódios regionais ou de fronteira, às declarações de diplomacia cénica. Das ameaças nucleares russas ou norte-coreanas, até aos ataques terroristas, como o recente efetuado em pleno Moscovo. Tudo isto é espelhado nas Nações Unidas e no seu Conselho de Segurança.

Mas vejamos apenas o Médio Oriente. O despertar do velho conflito no Médio Oriente veio agitar a atual ordem internacional e dar visibilidade e afirmação ao eixo geopolítico definido pelo Irão e os seus aliados operacionais: o Hezbollah no Líbano, o Hamas em Gaza, os Houthis no Iémen e as milícias pró-Irão no Iraque e na Síria. Este eixo consagra dois grandes desígnios geopolíticos assumidos: o combate (aos diversos níveis) com o Ocidente e a destruição do Estado de Israel. O Irão como foco de ação estratégica, pretende igualmente alargar a sua influência económica, política e militar na região. Alinha todos estes objetivos com a ambição de deter a médio prazo capacidade nuclear para fins militares. Em termos políticos, económicos e comerciais, o apoio estratégico e posicional da Rússia e da China e a entrada nos BRIC+ garantem-lhe agora uma liberdade de movimentos e de influência, que o seu próprio espaço regional liderado pela Arábia Saudita lhe tinha vedado.

O Irão é para já o grande vencedor do atual conflito entre Israel e o Hamas. Relançou através deste, a questão palestiniana para o palco internacional; a guerra do espaço mediático em curso é-lhe amplamente favorável; não necessitou de empenhar o Hezbollah de forma decisiva na frente do Líbano e garantiu ainda uma visibilidade internacional única e vitoriosa aos Houthis na zona do Mar Vermelho. Tudo isto sem se hipotecar diretamente, mantendo inclusive o apoio militar à Rússia no seu esforço de guerra ofensiva contra a Ucrânia. E, acima de tudo, contribuiu para dividir o Ocidente e em particular a Europa.

Os teatros de operações e zonas de combate foram claramente definidos pelo Irão: a Faixa de Gaza, o Mar Vermelho e a fronteira do sul do Líbano. A guerra em Gaza iniciada em 07 de outubro e a sua continuação, com a devastação da região, o caos humanitário e o enorme sofrimento da população de Gaza, mantém-se um ativo estratégico do regime do Irão e do Hamas. Em simultâneo transformou-se num elemento penalizador e de isolamento para Israel no contexto internacional. Grande parte dos posicionamentos políticos assumidos e das declarações vinculativas, das votações no Conselho de Segurança das Nações Unidas e parte da opinião pública, na Europa e mesmo nos Estados Unidos, favorecem este propósito. A paz negociada, a libertação incondicional de todos os reféns e o regresso a um qualquer entendimento regional estão agora muito mais ausentes. Resta um eventual cessar-fogo acordado. O reforço das posições ultraortodoxas e as políticas mais extremistas em Israel, inclusive no atual governo, ganham também elas igualmente força política e social redobrada. O regresso do fantasma de Gaza é uma realidade consumada.

Mas uma nova guerra pode estar para acontecer. A guerra do Hezbollah com Israel no Líbano, ou até mesmo uma guerra mais geral na região. Finda a guerra em Gaza, e sem qualquer solução política viável para este território, o Hezbollah parece pronto a iniciar, ou a provocar as hostilidades de forma declarada. Desde a guerra civil iniciada em 1975 e que se prolongou até 1990, mas em especial com a “Operação Paz para a Galileia” em 1982, com a invasão de Israel, que o Líbano tem sido palco de confrontos e guerras mais ou menos intensas. Em 2006 o Hezbollah declara-se ele próprio o grande vencedor da guerra que iniciou com Israel. Foi “uma vitória demasiado grande para ser compreendida por nós” dizia então Hassan Nasrallah, que tem liderado o Hezbollah até hoje, e é detentor de um grande prestígio popular neste eixo iraniano. Desde essa data, a Resolução 1701 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que resultou do fim desta guerra, jamais foi cumprida. Esta resolução criava então uma área de segurança entre a “Linha Azul” ao longo da fronteira de Israel, Líbano e Síria e o Rio Litani. Esta zona delimitada deveria ser um espaço livre de grupos e pessoas armadas, da existência de armas e equipamentos militares, à exceção de forças regulares do Exército do Líbano e das Forças das Nações Unidas (UNIFIL). O que nunca aconteceu. Subsistem também questões de disputa sobre a delimitação e controlo de fronteiras na região de Shebaa Farms e na povoação de Ghajar.

Desde 07 de outubro de 2023 que os confrontos nas zonas de fronteira entre o Hezbollah e Israel já levaram à deslocação de mais de 150.000 habitantes das suas residências, 80.000 do norte de Israel e cerca de 75.000 do sul do Líbano. A partir de 2006 o Hezbollah tem-se continuamente reforçado em termos militares e logísticos, alargando inclusivamente o seu controlo a outras regiões do Líbano. O seu objetivo principal foca-se sempre em conquistar o poder político, militar e administrativo no Líbano e combater e destruir o Estado de Israel, nomeadamente apoiando a causa palestiniana de forma direta. Atualmente conta com mais de 30.000 combatentes fortemente armados e treinados e cerca de 20.000 reservistas, tendo reforçado muito as suas capacidades militares, com a sua participação na guerra civil da Síria e o constante apoio militar e financeiro do Irão. Dispõe de um arsenal militar entre 120.000 a 200.000 rockets e mísseis diversos, muitos deles dotados de grande alcance, e um elevado número de drones (iranianos) e equipamentos militares modernos, nomeadamente sistemas de defesa área. Para além disso ativou ao longo do tempo, uma forte estrutura defensiva de túneis, bunkers e abrigos (dados do Center for Strategic and International Studies (CSIS). É provavelmente o maior Exército não regular do mundo. Face aos atuais desenvolvimentos políticos e militares, poderemos estar à beira de um grande conflito nesta região. Mais tarde ou mais cedo. De proporções ainda por identificar. O regresso de mais um velho e perigoso fantasma da conflitualidade internacional.

E assim, entre sofismas e ambiguidades, a comunidade internacional e as grandes potências vão por seu lado gerindo as suas próprias expetativas estratégicas. A fragilidade das retóricas diplomáticas dominam entretanto os areópagos internacionais. A complexidade da defesa de uma geopolítica de paz e cooperação no sistema internacional, que garanta a segurança e a integridade dos Estados e das populações, esbatem-se na clivagem dos interesses exponenciados e dos antagonismos de sempre. Para já o eixo iraniano vai convivendo bem com os sofismas e as ambiguidades da atual retórica nos palcos internacionais.

Coronel e especialista em geopolítica
Eduardo Caetano de Sousa | LinkedIn