Foi em 2018 que o Google decidiu apoiar a inovação jornalística em todo o mundo. Criou um fundo para o efeito e dizia que, com ele, pretendia reconhecer a importância do jornalismo para a democracia. Algo que muitos não concordam, bem pelo contrário.
Ao i, João Canavilhas, professor na Universidade da Beira Interior e pesquisador investigador do LABCOM, explica como começou esta ajuda que até considera “correta”, até porque “quem fica com uma parte do dinheiro tem que distribuí-lo”. O professor diz que isto “vem na sequência de uma série de processos que aconteceram um pouco por toda a Europa em que os meios de comunicação começaram a reclamar porque a Google e a Meta [dona do Facebook e Instagram] estavam a ganhar muito dinheiro quando no fundo o que estavam a fazer era remeter quem fazia pesquisas para muito daquilo que eram os trabalhos feitos pelos meios de comunicação social”, lembrando que até o Google News, “o que estava a fazer era a indexar o trabalho alheio sem pagar nada por isso”.
Mas nem todos aceitaram esta ajuda da mesma forma. Segundo o professor, a partir daqui “começaram vários problemas” um pouco por todo o mundo, dando o exemplo de Espanha onde jornais pediram para desaparecer das buscas da Google. No entanto, “as visitas caíram a pique, aquilo não foi uma solução, e depois voltaram atrás”.
E há casos de outros países, como a Bélgica,onde pela primeira vez a Google foi condenada “a fazer qualquer coisa, a ter que pagar aos meios de comunicação social”. Depois aconteceu algo parecido na Alemanha. Foi assim que a Google decidiu criar o fundo de inovação Digital News Initiative (DNI). Segundo o professor, desta forma, “o que a empresa diz é ‘não vamos pagar diretamente o facto de estarmos a usar essas notícias, mas vamos ajudar o ecossistema mediático a ganhar dinheiro, porque nós já sabemos como é que se faz e, portanto, queremos que vocês também o façam”, diz ao i. Basicamente, a iniciativa funciona com a abertura de concursos com uma certa periodicidade. E baseia-se fundamentalmente em quatro grandes áreas. Uma delas, explica João Canavilhas, é combater a desinformação. Outra, “que é, no fundo, o que está na origem de tudo isto, é encontrar formas de aumentar as receitas digitais dos meios de comunicação”. Existe ainda uma terceira relacionada com a exploração de tudo o que sejam novas tecnologias ligadas à parte da informação e, por último, uma outra que tem a ver com a procura de histórias locais. “E é por isso que todos os anos, quando aparecem os resultados, digamos assim, nós vemos que há uma componente que são os jornais nacionais, que há uma outra componente, que são muito os jornais locais que procuram também estas soluções”, conta ao nosso jornal.
Google News Show Case. Uma ajuda muito duvidosa
Há depois uma outra vertente que se trata do Google News Show Case que chegou a Portugal em 2021, que tem como objetivo “apoiar publishers de todas as dimensões e o ecossistema de notícias do país”. Mas será que ajuda os meios de comunicação? “Em teoria, sim”, começa por defender João Canavilhas, explicando que, depois, na prática, “é que terá que se ver”. E explica: “Sempre que há uma agregação, alguma coisa de bom, em teoria, poderá acontecer. Mas depois na prática nem sempre é exatamente dessa maneira. Como eu digo, os meios são diferentes. E dentro da igualdade que têm, há muita diferença. E dentro da diferença que têm há muitas coisas em comum. E é isso que é difícil tentar explicar. Os meios de comunicação usam um determinado número de métricas, depois a determinado momento entram se calhar com critérios que já não são critérios quantificáveis, como a qualidade”.
Questionado sobre se a Google ajuda ou prejudica os meios de comunicação, João Canavilhas é da opinião que “uma ajuda será sempre”. “Agora, se pensarmos: este dinheiro que eles estão a colocar no sistema – penso que eram 150 milhões de euros – esse sistema que estão a aplicar para ajudar compensa toda aquela parte com que eles ficam e que não vai parar aos meios de comunicação social? Obviamente não compensa”, defende.
Luta desigual
Mas estarão empresas como a Google a ‘aproveitar-se’ da necessidade urgente de financiamento que têm os meios de comunicação? “Claro que sim”, diz o professor da UBI. “No fundo, estamos a falar de um sistema em que há grandes empresas que já nasceram naquele sistema, cresceram naquele sistema e sabem muito bem trabalhar naquele sistema e estamos a falar dos meios de comunicação social que todos eles migraram para a internet e que ao longo do tempo se foram habituando. É claro que uns são nativos e os outros tiveram que se adaptar àquele novo ambiente”, diz, acrescentando que “depois há também a questão da proporção”. “Aquilo que temos feito ao longo do tempo neste campo das nossas gigantes tecnológicas é que sempre que aparece uma nova empresa com algum sucesso, as grandes empresas colocam-na também no seu universo”. Portanto, acrescenta, “tendencialmente eles vão continuar a ser cada vez maiores e cada vez mais dominadores em relação aos meios de comunicação social” que defende que não têm a mesma capacidade de concentração, uma vez que são meios nacionais ou locais e não meios globais. “Há sempre uma luta desigual”, diz.
O problema é que ajudando ou não, os valores pagos pela Google não são iguais para todos e os contratos de confidencialidade do grupo são grandes. Fala-se em pouca transparência e numa “ajuda mais ou menos” com um valor que pode ser visto como quase irrisório. Ainda assim, João Canavilhas explica que “a avaliação é feita em função daquilo que é pedido e da dimensão do projeto”, o que pode explicar a diferença maior na verba atribuída entre órgãos. “E isso tem a ver com a própria estrutura dos meios de comunicação social”, explica o professor. “Se pensarmos hoje num jornal, as dificuldades já são tantas, não tem uma equipa que esteja só a pensar em candidaturas a projetos como existe noutras instituições”, diz destacando que, por exemplo, as universidades têm essas equipas.
Processos contra a Google
A verdade é que a forma como a Google lida com os órgãos de comunicação social já levou a processos. Recentemente, mais de 30 empresas do setor dos média, de 17 países – incluindo uma portuguesa, a Impresa – interpuseram uma ação contra a Google, por “comportamento anticoncorrencial” nos serviços de “ad tech”. Pedem indemnização de 2,1 mil milhões e acusam a Google de dominar toda a cadeia económica da publicidade online. Para João Canavilhas, é claro que “houve quem aceitasse” a solução da Google e quem não aceitasse. “No fundo, estamos a falar que dentro da publicidade digital, digamos assim, entre 80 e 85% está a ir para este grupo. E é por isso que o problema se coloca. Ou seja, apesar de isto ter sido uma resposta da Google para de alguma forma tentar acalmar os ânimos no ecossistema, é claro que nem todos aceitam que as coisas sejam desta forma”. Na sua opinião, “há empresas que efetivamente ficaram satisfeitas, atisfeitas com isto, há outras que não, suponho que aqui é esse o caso. Ou seja, eles querem que de alguma forma se faça algo mais para que as receitas digitais tenham uma distribuição diferente”.
Indiferente às críticas, a Google continua a publicitar o trabalho desenvolvido. Num artigo intitulado “A nossa contribuição para a indústria de notícias em Portugal” e assinado por Bernardo Correia, Country Manager da Google Portugal, lê-se que a Google atribuiu a Portugal “mais de oito milhões de euros” de fundos de inovação DNI e até a essa data fechou acordos com publicações portuguesas para fazerem parte dos Destaques Jornalísticos da tecnológica. “Milhões de editores optam por usar os serviços de publicidade da Google e, quando o fazem, ficam com a maior parte da receita”, diz o responsável, destacando que num estudo que analisou os principais editores de notícias em todo o mundo que usam o Google Ad Manager, “descobrimos que estes mesmos editores ficam, em média, com mais de 95% da receita dos anúncios digitais”.
Google nega falta de transparência
O i tentou perceber junto da Google como reage às críticas sobre a falta de transparência e o facto de o dinheiro não ser distribuído de igual forma, bem como a queixa de grupos de media. Sobre este último assunto, a empresa garante que “trabalha de forma construtiva com publishers em toda a Europa”, acrescentando que as suas ferramentas “de publicidade e as dos nossos muitos concorrentes de tecnologia de anúncios ajudam milhões de websites e aplicações a financiar o seu conteúdo e permitem que empresas de todas as dimensões alcancem eficazmente novos clientes”, garantindo que esses serviços “adaptam-se e evoluem em parceria com estes mesmos publishers”. A empresa atira ainda que “este processo é especulativo e oportunista” e, por isso, deu alguns dados ao i.
A Google garante que as suas ferramentas de publicidade geram um ROI [retorno sobre investimento] positivo. “Em média, os publishers recebem US$8 de lucro por cada US$ 1 que gastam no Google Ads garantindo que os seus esforços são eficientes”.
Além disso, acrescenta, os publishers “ficam com a maior parte da receita de nossa tecnologia de anúncios”. E acrescenta: “As nossas taxas de tecnologia de publicidade são consistentes com as médias divulgadas do setor. E os publishers ficam com a maior parte da receita gerada quando usam as nossas ferramentas de anúncios”.
A gigante tecnológica acrescenta ainda que “a transparência neste espaço é uma prioridade para a Google e é, por isso, que investimos em inovações como o Confirming Gross Revenue”, acrescentando que “as plataformas de publicidade da Google não cobram taxas ocultas e esta solução proporciona aos compradores e aos publishers uma maneira segura de verificar por si próprios que nenhuma taxa é cobrada nas transações de publicidade programática”.
Os números são claros para a Google: “Os publishers podem aumentar a sua base de assinantes aproveitando tecnologias como o Reader Revenue nos seus próprios websites. Eles ficam com 85% a 95% da receita e também são donos do relacionamento com o cliente”, diz ao i, garantindo que hoje em dia, “esta ferramenta é usada por mais de 900 publishers em todo o mundo e apoia os seus esforços para se conectarem com mais de 900.000 novos assinantes pagos”.
A Google adianta ainda que em 2020 anunciou um investimento de mil milhões de dólares ao longo de três anos nos Destaques Jornalístico do Google, “uma nova experiência de notícias on-line e de parcerias de notícias”. E adianta que mais de 2.500 publicações inscreveram-se nos Destaques Jornalísticos “e o produto está disponível em 24 países, com mais por vir”.
As justificações da empresa não se ficam por aqui. No que diz respeito aos acordos de licenciamento, defende que tem trabalhado com publishers em toda a União Europeia à medida que os países transpõem a Diretiva de Direitos de Autor (EUCD) para a legislação nacional. “Desde 2021, concluímos acordos com mais de 3.500 publicações, associações ou sociedades de gestão coletiva europeias em 16 países europeus, com mais discussões em curso” e que as negociações com cada país “refletem as características individuais de cada lei nacional”.
A Google garante que “todas as ofertas são baseadas em critérios objetivos que respeitam a lei e a prática dos direitos de autor, ou seja, com base na extensão e na natureza da utilização do conteúdo e nas receitas geradas a partir desta utilização. Assim, levamos em consideração a frequência com que a Extended news previews de um website de notícias é exibida e qual receita de anúncios é gerada pelo Google em conexão com a exibição das Extended News Preview do conteúdo de notícias”.
E termina garantindo que a sua abordagem “para a conformidade está enraizada no desejo de colaborar com os publishers para resolver desafios de longo prazo e inovar em conjunto”. No entanto, a Google não respondeu qual o critério para a atribuição de pagamentos aos diferentes órgãos de comunicação social.
Lá fora
Sabe-se que, em fevereiro de 2021, a Austrália aprovou a primeira lei a obrigar a Google e também o Facebook a pagarem pelos conteúdos da imprensa. Um valor que não foi divulgado. Nessa mesma altura, a Google chegou a acordo para pagar 76 milhões de dólares durante três anos a 121 editores franceses. O valor, avançava a Reuters, servia para um licenciamento anual por 22 milhões de dólares mais 10 milhões para a Google não ser processada por direitos de autor durante esses três anos.
Mas os valores – tal como acontece em Portugal – não eram iguais para todos. Os títulos mais pequenos recebiam oito mil euros por ano. Mas os meios maiores poderiam receber até um milhão de euros. E os mais conhecidos diários nacionais, como é o caso do Le Monde, Le Figaro e Libération devem receber mais três milhões por ano cada um. O Press Gazette chegou a ter acesso aos valores pagos no âmbito do News Showcase em 2020. Com 1000 milhões de dólares de orçamento, tinha envolvido até essa altura mais de 1000 títulos em 15 países – incluindo, no caso europeu, a Alemanha, Áustria, França, Irlanda, Itália, Reino Unido e República Checa.
Ainda assim, os valores corretos de cada país ou até de cada órgão são difíceis de descobrir até porque cada contrato tem uma cláusula de confidencialidade. “Ninguém sabe quanto recebem os outros”, explicou um executivo dos media à Press Gazette.