Padre Francisco Sassetti da Mota. ‘É de uma irresponsabilidade tremenda o apoio de Américo Aguiar a Pinto da Costa’

Montou, com outros padres jesuítas, o espaço Brotéria, no Bairro Alto, onde se pretende discutir cultura, bem como os problemas da sociedade. Conferências e palestras tanto podem receber Martim Sousa Tavares como analfabetos do bairro.

Ainda não fez 40 anos e já leva 20 dedicados à causa jesuíta. O padre Francisco Sassetti da Mota foi diretor da Brotéria até ao domingo de Páscoa. Agora vai para Boston e para o México fechar o ciclo de formação de jesuíta. Sem papas na língua, entende que «temos tido, ao longo dos últimos anos, políticas educativas e culturais desastrosas».

Como é a vida dentro da Brotéria, desde 2020, e como olham para a vida lá fora?   

O edifício foi restaurado pela Santa Casa da Misericórdia, que é proprietária do mesmo. Nos últimos 20/30 anos funcionou aqui a Hemeroteca municipal. O edifício estava em muito mau estado e a Santa Casa, com a Câmara, fez esta obra grande, com vontade de poder montar aqui um pequenino polo cultural, à volta de São Roque. É a Santa Casa que tem a iniciativa deste projeto e quem lhe dá início, e quem cria as condições para que ele possa existir. A Santa Casa tem a igreja de São Roque, tem o Museu de São Roque, tem o arquivo e a biblioteca da Santa Casa, onde entre outras coisas tem a coleção, que é património da humanidade da UNESCO, que são os sinais que eram deixados na roda, quando alguma criança era abandonada. A Santa Casa tem também, a abrir aqui ao lado, esperemos que muito em breve, a Casa da Ásia – Coleção Francisco Capelo, que é um museu de arte asiática. O projeto Brotéria não é da Santa Casa, mas o edifício é. E foi a Santa Casa que teve a iniciativa de nos trazer para aqui, e montar este centro cultural à volta do Largo Trindade Coelho, com estes vários intervenientes. 

Qual foi o desafio a que vocês se propuseram?

Inicialmente, o que estava em cima da mesa era trazer para aqui a biblioteca da Brotéria, que é muito extensa e bastante única, que contém mais ou menos 160.000 volumes, entre monografias, livros e revistas. A outra coisa que fazia parte do projeto inicial era a revista Brotéria, fundada em 1902, que é a publicação cultural mais antiga no país, em publicação ininterrupta. O que nós percebemos foi que seria insuficiente, neste edifício, ter só a revista e a biblioteca. Precisávamos de lhe somar um espaço de galeria para exposições temporárias de arte contemporânea, e precisávamos de acrescentar também uma área de programação cultural, em sentido vasto, que pudesse oferecer cursos, conferências, workshops, etc. À medida que o projeto se foi desenvolvendo, percebemos que tínhamos interesse em ter um espaço de livraria, uma boa livraria, e estamos a trabalhar com a Snob quase desde o princípio, com ótimos livreiros, muito bom projeto, e um espaço de café, para poder ajudar a receber melhor as pessoas que cá vêm. No fundo, apareceu-nos este espaço, não como uma instituição e por isso é que nos referimos a nós próprios como uma casa e não como um centro cultural. Nós falamos do centro cultural como adjetivo, não dizemos que somos o centro cultural Brotéria, dizemos que somos a Brotéria, que é um centro cultural, que é um bocadinho diferente. Temos esta vontade de ser um espaço que é uma casa aberta, que recebe, e para isso tem um espaço de sala, tem um espaço de trabalho, tem um espaço de cozinha, tem uma série de coisas que vão acontecendo. E, hoje em dia, temos outra coisa que é uma variante da biblioteca, que é uma área de restauro de livro antigo. Temos dois gabinetes dedicados a isso, onde fazemos tudo o que é higienização, conservação básica deste património. Só contratamos pessoas tecnicamente competentes e que sejam pessoalmente recomendáveis. São duas coisas que fazem sempre parte dos nossos processos de due diligence quando estamos a ver quem é que vamos contratar… Nós somos, apesar de tudo, uma estrutura efetivamente grande, já estamos a falar de um orçamento na casa dos 500 a 600 mil euros. Já é uma empreitada de média dimensão.

E onde vão buscar esse dinheiro? 

Temos várias fontes de financiamento. Há um edifício cuja renda reverte a nosso favor, que é a antiga casa da Brotéria, na Lapa, que vale mais ou menos um quarto do total do nosso orçamento. Depois temos uma parte que vem das receitas próprias, assinaturas da revista, compras e subscrições de cursos, vendas de catálogos de exposições, arrendamentos de salas e receitas que vêm das concessões do café e da livraria. Depois temos projetos com parceiros muito variados: com a Jerónimo Martins, principal patrocinador da nossa biblioteca, com o Santander, que patrocina as conferências mensais que temos cá, com a Fundação Calouste Gulbenkian, que patrocina o nosso programa de itinerâncias pelo país – uma vez por mês apresentamos a revista Brotéria num sítio diferente do país, com a fundação Amélia de Melo, com uma série de patrocinadores que temos no site. Também temos projetos específicos para áreas específicas do nosso trabalho, Câmara Municipal de Lisboa, etc. Depois, finalmente, temos as nossas receitas próprias, os nossos patrocinadores para projetos e depois temos tudo o que doadores particulares, que acreditam neste projeto e que contribuem para ele. Famílias, empresas, indivíduos. Esta quarta parte é muito importante para nós. Em Portugal é pouco valorizada e pouco explorada, mas nós temos uma carga fiscal brutal, quer a nível empresarial, quer a nível pessoal, e que faz com que haja muito menos liquidez da parte das famílias e dos indivíduos para poderem, por iniciativa própria, decidir que projetos é que apoiam. 

Tanto quanto percebi, há seis padres jesuítas que vivem aqui neste edifício. 

Sim, porque o acordo com a Santa Casa contempla essa possibilidade. Faz tudo parte desta visão que a Santa Casa teve de querer trazer para esta zona da cidade, junto da Igreja de São Roque, o sítio onde os jesuítas em Portugal começaram a sua atividade da maneira mais consolidada. Já tínhamos tido uma outra casa noutro sítio da cidade, mas foi em São Roque que se começou a estabelecer a presença dos jesuítas em Lisboa, ainda na década de 50 do século XVI. Todos os seis padres estão implicados na Brotéria, em maior ou menor escala. Temos um que é coordenador da galeria, o outro é diretor da revista, o bibliotecário principal da casa, mas todos colaboram de alguma maneira com a Brotéria, em cursos, conferências, apresentações que fazem. Depois temos a ‘capelina’ de toda a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, tudo o que são lares, hospitais, orfanatos, etc.

O que fazem aí?

Visitamos, celebramos missas, damos assistência. Temos a reitoria da Igreja de São Roque e a somar a isso temos uma igreja paroquial aqui em baixo, a igreja da Nossa Senhora da Encarnação, temos um centro social e paroquial que tem uma creche e um jardim de infância e estamos a começar uma nova escola primária.

E o que fazem aí, além de serem financiadores? 

Temos três párocos que são lá de baixo da paróquia.

O que vão fazer à creche?

Faz-se tudo o que é acompanhamento do dia-a-dia, eu como presidente de direção faço tudo o que é estratégia do centro social e gestão, numa dimensão não executiva, mas bastante presente. 

Mas tinha ficado com a ideia que os padres que aqui vivem têm outras profissões…

Além disso, temos padres que são professores na Universidade Católica, outros que dão retiros em vários sítios do país. Temos um que é membro da Academia Nacional de História e eu sou o vice-presidente do Serviço de Prevenção de Refugiados em Portugal (SJR). Há uma série de trabalhos que todos têm, em termos de formação académica é tudo muito variado. O padre João Norton é arquiteto, o padre Vasco Pinto Magalhães antes de ser jesuíta estava a terminar engenharia mecânica, um homem muito interessante, uma grande referência para muita gente, foi capitão da seleção nacional de râguebi, tirou o brevet de avião, há várias coisas com graça à volta dele. Temos o padre António Júlio Trigueiros que tirou Direito, é o nosso historiador residente, o padre José Frazão é teólogo de formação; o padre João Sarmento é escultor, cuida da nossa galeria, estudou nas Belas Artes, tem exposto em vários sítios e colaborado com imensos artistas em coisas diferentes, o padre Manuel Cardoso, que chegou para me substituir, acabou de terminar um doutoramento na Escola de Altos Estudos de Ciências Políticas, em Paris.

Ninguém diria que são padres, pela diversidade: um ex-jogador de râguebi, um escultor, etc. 

O que os une e porque vieram para padres?

É um grupo altamente improvável. O que une estas pessoas todas? Não é a gestão de instituições, nem são os vários trabalhos fragmentados que cada um vai tendo. O que os une é o facto de, em algum momento da sua vida, e até aos dias de hoje, terem sido tocados pelo Evangelho e pela fé da Igreja, que é também a nossa e que é o centro absoluto da nossa vida. Pode acontecer que, por vezes, isso não se veja, porque quem se cruza connosco no dia-a-dia pode ser que nos apanhe atarefados com um conjunto de coisas que são práticas, que são mundanas, que são de gestão, organização e estratégia, e isso muitas vezes é o que se vê, mas o que se vê não é a razão de todas as coisas, é a consequência da razão, e a razão é isto: é algum tipo de amor ao Evangelho que cada um descobriu nalgum momento da sua vida e que se mantém atual. O padre Vasco vai fazer, este ano, 50 anos de padre. Entrou para os jesuítas há sessenta e tal.

Têm pouca pinta de padres, diria eu. Mas qual é a essência da Brotéria, na relação com o exterior?

Aqui é preciso fazer uma distinção importante. Uma coisa é a Brotéria, e outra é o trabalho dos padres que estão na Brotéria, que também fazem noutras coisas. A Brotéria é este espaço cultural, a somar a isto está a Paróquia, a Santa Casa, a galeria, o centro social paroquial, a escola, etc. São duas coisas diferentes. A questão da Brotéria, enquanto Brotéria, que desde o princípio percebemos que é a nossa grande motivação – a questão tem que ver com perceber que tipo de encontro é que é possível estabelecer entre a nossa tradição da fé cristã e o que são as inquietações urbanas contemporâneas. O que são as inquietações de habitação, saúde pública, a imigração, acesso ao emprego e condições profissionais, outras que têm que ver com a relação com o mundo das artes e com o que a arte pode ter para dizer sobre a ordem, a beleza, a violência, etc. 

Estamos a falar de nichos pequenos. São pessoas relativamente informadas. Qual é a transposição para o mundo real?

No ano passado, uma das coisas mais interessantes que cá tivemos, com o patrocínio da Leya, foi um clube de leitura de poesia com pessoas do Bairro Alto, sobretudo idosas, sobretudo pouco escolarizadas, ou não escolarizadas. O que um pequenos espaço cultural como este faz, muitas vezes, é pouco visível. Uma conferência com o Martim Sousa Tavares, há duas semanas, ele é um grande amigo da casa, estava a deitar por fora. Tínhamos 180 pessoas na casa, sentadas nos corredores, em cima das mesas, nos sítios mais improváveis. É extraordinário haver a possibilidade, em Portugal, de um pequeno espaço cultural ter este tipo de impacto com uma conferência. Quando diz que é para um pequeno nicho, o programa de apoio da poesia do Bairro também funcionou com um nicho, pessoas sobretudo não escolarizadas, sobretudo idosas. Não podem ser ignoradas. O que nós vemos é que é preciso andar a coser, a coser, a coser todas estas realidades diferentes que fazem parte da nossa cidade e do nosso país. Temos um projeto com a Gulbenkian que nos permite visitar cidades pelo país inteiro, trabalhar com espaços culturais do país inteiro – viemos há pouco do Funchal. Em fevereiro tínhamos estado em Mirandela, em novembro, em São Miguel.

Estiveram a fazer o quê?

O que fazemos é em parceria, com um espaço cultural local, organizar ou um pequeno workshop ou uma pequena conferência, que permita gerar contacto com a estrutura desse espaço cultural e ao mesmo tempo receber pessoas locais que porventura não tenham tanto acesso à vida cultural que nós aqui propomos, como têm as pessoas de Lisboa. Tudo isto são tentativas de chegar a grupos pequenos do nosso país, porque, na verdade, culturalmente, nós temos tido, ao longo dos últimos anos, políticas educativas e culturais desastrosas. A Fundação Calouste Gulbenkian, que é nossa parceira, e por quem temos um respeito tremendo, publicou há dois anos um relatório sobre os hábitos culturais dos portugueses, que é um relatório absolutamente magnífico, foi esquecido imediatamente até pela própria Fundação, que tem um recurso absolutamente magnífico nas mãos. Creio que não promoveu suficientemente esse relatório para poder chegar ao Governo, exigir grandes mudanças na nossa vida cultural e no nosso sistema de ensino e educativo. Este relatório da Gulbenkian é assustador. Não me lembro com precisão dos números, mas a quantidade de portugueses que num ano inteiro não leu um único livro é uma coisa de pesadelo. Seria importante retomar esses números e haver um trabalho muito sério de olhar para este trabalho que o CCB fez também, embora noutra escala, sobre Lisboa, há uns três anos, mas só sobre a realidade de Lisboa, a Gulbenkian fez sobre a realidade nacional, um estudo sobre leitura, cinema, teatro, etc. E é tirar conclusões. Portanto, claro que estamos sempre a falar de nichos, porque as nossas políticas culturais são desastrosas. Nós, na escola, não aprendemos a gostar de ler, aprendemos a decorar as coisas que temos que ler para fazer testes e exames. Mas como política cultural, nas últimas muitas décadas, temos falhado sistematicamente a nível político, a nível do sistema, a nível informal. E temos uma relação com a arte e com a cultura artística que é muito bárbara. Somos, em geral, um país de analfabetos visuais, não aprendemos a observar cultura, não aprendemos a desfrutar aquilo que nos rodeia… Claro que a poesia nos é estranha, claro que a literatura nos é estranha, claro que o pensamento social, económico, cultural nos é difícil. Por isso é que é espantoso a Brotéria montar um conjunto de conferências com conferencistas nacionais e internacionais, com muita frequência, ter muita adesão àquilo que propõe. É espantoso porque não é suposto. Não é esperado.

Basicamente, procuram, através de pequenos grupos, expandir aquilo que acham que está correto e que o Estado não tem dado…

Não poria as coisas em oposição ao Estado. Acho que tem havido muita coisa insuficiente nas nossas políticas culturais, no nosso sistema de ensino que tem tido muitas falhas… Mas diria que nós não estamos aqui em oposição ao Estado. Estamos aqui a fazer aquilo em que acreditamos que deve ser feito, e, felizmente, tem muitos parceiros e muitas pessoas que acreditam nisto, incluindo o Estado. O Ministério da Cultura tem colaborado connosco e tem-nos apoiado mais do que uma vez. O que nós vimos é que há espaço no nosso país e na nossa cultura para poder ter lugares informais, independentes – esta independência é uma coisa fundamental, absolutamente central. Nós, Brotéria, não respondemos a ninguém. A nossa independência, a nossa liberdade, não são beligerantes de maneira gratuita, isso não nos interessa nada, pelo contrário. Achamos que um pequeno espaço independente, autónomo, crítico, faz falta também. Que pode ser relevante para o presente e o futuro do país. Não somos um centro de investigação, não temos como objetivo criar um conjunto de diplomas sobre políticas fiscais que possam, a breve prazo, ser levadas ao Parlamento. Se calhar, algum dia isso acontecerá, mas não é o nosso objetivo imediato. O nosso objetivo, neste momento, tem que ver com criar estas possibilidades para que haja encontro, diálogo entre o que é a tradição da nossa identidade de fé cristã e o que são as inquietações urbanas contemporâneas de quem vive num mundo como o nosso.

Qual é o livro mais antigo? E já agora, o mais valioso.

O mais antigo é um incunábulo, um livro produzido com um sistema semi-mecânico, prévio à invenção da imprensa. Creio que é de 1493. O livro mais valioso que temos, senão me engano, é o que temos exposto na casa de escritores, que é um tratado sobre o Império Chinês, uma coisa escrita por um jesuíta a meio do século XVIII, que é o primeiro relato sistemático que chega à Europa sobre a História, a Geografia, organização militar, etc., da China. Creio que isso é o mais valioso que temos na Biblioteca. A biblioteca tem tido uma valorização enorme com a Jerónimo Martins e o trabalho que temos feito com eles de digitalização, restauro, de limpeza e de conservação de livros. Têm sido espetaculares connosco. Este ano, terminaremos o processo inicial de higienização da totalidade do livro antigo e, portanto, esperamos que possa haver aqui também um movimento grande de valorização e divulgação deste património. 

Os jesuítas, não tendo historicamente boas relações com a Maçonaria, também historicamente sempre tiveram alguns problemas dentro da Igreja Católica. A vossa visão não corresponde, com todo o respeito, com a do padre de Freixo de Espada a Cinta. Há todo um mundo que vos separa. 

Percebo…

Tirando o Espírito Santo o que vos une?

Aqui há duas coisas diferentes sobre este assunto. Primeira, especificamente em relação à questão da Maçonaria, honestamente, hoje em dia é muito irrelevante, ou então aquilo que faz não me chega aos ouvidos. Em relação à Igreja, os jesuítas têm com toda a Igreja uma atitude permanente de estar disponíveis para aquilo que nos possa ser pedido. Muitas vezes isto é bem entendido, por vezes não é. Mas a questão tem a ver com a disponibilidade. E nós estamos disponíveis para estar, como o Vítor dizia, numa paróquia de Freixo Espada a Cinta, onde a nossa vida seria mais tranquila e teria menos visibilidade, etc., e estamos disponíveis para estar aqui na Brotéria para trabalhar no campo cultural e das artes, onde porventura aquilo que nós fazemos pode ser menos bem compreendido. Temos total consciência disto e total noção disto. É perfeitamente possível olhar-se de dentro da Igreja para nós e alguém achar que nós nos secularizamos ou alguém achar que nós nos perdemos pelo caminho. Acho que é uma visão absolutamente errada, é uma visão que não é ingénua. É uma visão culposamente equivocada.

Mas vocês antes das eleições fizeram um documento bastante crítico, politicamente falando. Não estou a ver na Igreja, tirando D. Américo Aguiar, que tanto concorre a uma lista do FC Porto como aparece ao lado do PS, vocês estão nos antípodas.

A CEP [Conferência Episcopal Portuguesa] também publicou uma nota sobre as eleições legislativas e também tem de ter sido em conta. Mas nós percebemos que há um lugar no espaço público que faz falta à Igreja ocupar, que nos tem sido pedido que ocupemos, e com todo o risco que isso possa ter, nós temos ocupado. O gabinete dos jesuítas em Portugal é bastante ativo, e vai tendo alguma repercussão, a Brotéria é bastante ativa, mais uma vez, não há aqui nada de oposição, não há nada gratuito, de choque, etc., etc. Olhar-se para nós e achar-se que nós nos distraímos, nos perdemos, acho que é uma visão absolutamente errada e grave.

Mas quem acha isso?

Pode acontecer que algumas pessoas dentro da Igreja achem isto.

Quando vocês falam a favor das PPPs na Saúde, quando vocês tomam posições dessas, sabem que vão dividir bastante as águas. 

Sim , mas a alternativa é falsamente nós sermos conciliadores através do silêncio. E isso é um mau contributo para a Igreja, para o país e para o mundo. O diálogo e o encontro muitas vezes vivem da discórdia, e de ser-se explícito em relação aos pontos que têm de ser mudados, alterados. E se daí surge o choque, o choque honesto, transparente, bem intencionado, que leva a lugares bons, leva a discutir as coisas, a que elas se esclareçam…

Permita-me a provocação: vocês são a antítese de D. Américo Aguiar.

D. Américo Aguiar tem um modo de falar e de aparecer publicamente que é diferente do nosso. Isso é indiscutível. 

Para um cidadão comum o que acha que ele deve pensar olhando para o vosso comportamento, para a vossa atitude e para a vossa forma de intervir na cidade com a de D. Américo ou de outras fações muito distantes de vocês? Como acha que a pessoa se situa?

Espero que reconheçam em nós um lugar que é honesto, transparente, de pessoas que, independentemente da atividade que tenham, são humildes, que encontre aqui um espaço onde a beleza pode ter lugar, onde se fala do mundo com esperança. Em relação ao resto da Igreja, creio que o que pode ajudar a maior parte das pessoas a situar-se é reconhecer o papel que a Igreja tem nos momentos de luta, dor e dificuldade de cada um, e o acompanhamento que a Igreja dá aos doentes, aos pobres, etc. Como é que se situam perante nós? Espero que seja numa postura muito desarmada, muito livre. Polarizando as coisas, e falando especificamente de D. Américo Aguiar, não há muitos pontos óbvios de ligação. 

Já agora, o que acha de D. Américo fazer parte da lista de Pinto da Costa para a direção do FC Porto?

Acho absurdo, acho chocante até. É uma coisa altamente fraturante, estamos a falar de um presidente educado pelos jesuítas, mas altamente controverso do ponto de vista legal, moral… Publicamente, parece-me de uma irresponsabilidade tremenda, as coisas pessoais valem o que valem, eu deixei de ser sócio do Benfica quando Noronha Lopes perdeu as eleições para o Luís Filipe Vieira. Não posso continuar a apoiar um clube que sistematicamente elege um homem que é corrupto e que é mentiroso. Não pode ser. Em relação ao D. Américo acho absolutamente chocante que alguém na posição dele apoie alguém como Jorge Nuno Pinto da Costa, tendo em conta tudo aquilo que neste momento está sob suspeita. A questão não tem que ver com estabelecer juízos definitivos em relação a assuntos que não tiveram juízo definitivo pronunciado. Mas com a quantidade de suspeitas que existem neste momento, é de uma irresponsabilidade tremenda o apoio de Américo Aguiar.

Voltando ao casamento dos padres. Não é favorável a que os padres se possam casar?

Há muitos padres que se podem casar. Alguns ortodoxos têm essa possibilidade. Alguns asiáticos têm essa possibilidade, mas às vezes confundimos aquilo que é a disciplina do rito romano com o que é a vida da Igreja Universal. Portanto, não há nenhuma oposição de fundo, não há nenhum obstáculo de fundo à possibilidade de existirem padres casados católicos. Existem os coptas, os romenos, os ortodoxos, todos os que foram recebidos da Igreja Anglicana. A questão não é de impossibilidade. Só tem que ver com o rito romano. E a questão tem que ser posta nesses termos, não é se é impossível haver padres católicos casados. É possível. A questão é saber se é possível haver padres católicos de rito romano casados. Quando se diz que não há padres casados na Igreja Católica não é verdade. É possível ter aqui um discurso que é erradamente conservador, e o que está a conservar, é uma coisa que não é verdade. Está a ser conservador de uma coisa que não é assim.

Quando arrancou com a Brotéria, disse que esteve muito tempo fechado na biblioteca e que não pôde ajudar os paroquianos que o costumavam procurar. Quais são os principais pedidos de ajuda?

Tem variado imenso, a realidade do Bairro Alto também tem variado muito, nós estamos num sítio muito central da cidade, por isso é muito fácil haver pessoas a vir cá e a sentirem-se seguras, porque há muita anonimidade. Quando começámos, em 2018, a grande questão que nos aparecia à porta tinha que ver com dinheiro para alimentação. Durante o tempo de covid, mudou um bocadinho, e passámos a ter cada vez mais pessoas muito diferentes a pedir ajudas para cobrir custos da vida doméstica, gás, eletricidade, transportes, etc. Hoje em dia, o que temos cada vez mais, e isto é muito perturbador, é pessoas, nem é a pedir ajuda para pagar rendas, é a pedir ajuda para encontrar uma casa. Pessoas cujas rendas subiram brutalmente ou foram despejadas, e não conseguem encontrar sequer habitação para arrendar. Isso hoje em dia temos com bastante frequência. Claro que tudo tem que ver com ajuda e apoio espiritual, é uma realidade óbvia. Sejam pessoas que nós conhecemos, sejam pessoas que nós não conhecemos, a partir do momento que vêm ter connosco, por aflição ou de luta ou o que seja. Também temos pessoas que vêm ter connosco em momentos de grande alegria, casamentos, batizados, porque o dia-a-dia também está cheio de alegrias. Mas nós estarmos num sítio tão central da cidade tem esta consequência. Por isso, há muitas pessoas que nos batem à porta em alturas da vida difíceis e de sofrimento. Isso mantém-se.

Falamos de questões amorosas, de saúde… 

Questões amorosas, existenciais, de saúde, familiares… A realidade é mesmo muito variada em termos daquilo que desperta alegria nas pessoas ou preocupação. O que nós vemos, hoje em dia, é que as preocupações deixaram de ser só interiores, isto é, amorosas, existenciais, ou o que seja, e que são cada vez mais preocupações exteriores, muito óbvias e muito fortes. Com problemas da casa, coisas que é preciso pagar, alimentação… tudo isto foi acrescentando, e, ao princípio, víamos isto, sobretudo, com as pessoas mais pobres, agora vemos com aquilo que nós chamaríamos de classe média. E esta preocupação é difícil disfarçar.