Turismo bate recordes atrás de recordes e salva economia

Se o número de dormidas e receitas tem vindo a disparar há problemas que este setor não tem conseguido resolver. Um deles diz respeito à falta de mão-de-obra e a somar há que contar com a falta de habitação, em que, para muitos, o turismo é o principal responsável.

O turismo tem sido visto como a tábua de salvação da economia portuguesa, um setor considerado como um dos principais motores de crescimento e que tem vindo a bater recordes atrás de recordes. Só no ano passado, os números de turistas e dormidas em Portugal superaram os níveis de 2019, antes da pandemia e atingiram novos máximos históricos.

De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2023, os estabelecimentos de alojamento turístico registaram 30 milhões de hóspedes, o que representa um aumento de 13% face a 2022 e 77 milhões de dormidas, uma subida de 10%, o que se traduziu em receitas na ordem dos 25 mil milhões de euros: um crescimento de 37% face a 2019 e de 18,5% face a 2022. Um cenário que levou o ex-secretário de Estado do Turismo, Comércio e Serviços, Nuno Fazenda, a admitir que 2023 foi “um ano muito positivo para o turismo do país, e também para Portugal no seu todo, um ano recorde, o melhor ano da história de sempre do turismo em Portugal”. 

E esse crescimento estendeu-se a todo o país e verificou-se ao longo de todo o ano. “Uma alteração estrutural no nosso turismo”, sublinhou, na altura, o responsável que disse ainda acreditar que o turismo crescerá “ainda mais em 2024”.

Os números são ainda mais significativos tendo em conta os dados europeus. Também no ano passado, o número de dormidas em estabelecimentos turísticos na União Europeia aumentou 6,3% para quase 3 mil milhões. Trata-se de um número recorde e que ultrapassa em 1,6% os valores pré-pandémicos, de acordo com o Eurostat. E neste ranking, Portugal está bem posicionado ao ocupar o quinto lugar dos mercados com maior crescimento. 

Ao i, João César das Neves admite que “o turismo é tradicionalmente um setor muito importante em Portugal e tornou-se mais importante ultimamente”, mas também admite que “tem grande impacto social e influências de muitos outros setores e áreas, o que lhe cria graves problemas que deviam ser resolvidos e não estão a sê-lo”.

Também Eugénio Rosa considera que o turismo é um setor que no nosso país tem atualmente um peso muito grande, “até excessivo, quando comparado com a de outros setores mais importantes para o desenvolvimento do país, na captação de receitas, na criação de riqueza, nas exportações e no emprego”. De acordo com o economista, trata-se de uma atividade de mão-de-obra intensiva, de baixa tecnologia, embora admita que possa incluir alguns serviços com utilização de tecnologia – como plataformas de divulgação e de reserva – de baixos salários e baixa produtividade e fortemente dependente de um conjunto alargado de fatores, a maioria deles não controláveis pelo nosso país. 

“É o caso de epidemias, clima, quebra do poder de compra dos países de origem dos turistas, concorrência baseada de preço, segurança interna, etc., o que torna os seus resultados aleatórios, constituindo um risco elevado quando é tomado como pilar vital do desenvolvimento de um país”, refere ao nosso jornal. 

Um cenário que, segundo o economista, leva a que haja “uma forte dependência da criação da riqueza (PIB) e das exportações, quer de serviços, quer totais do setor do turismo e, por outro lado, a aleatoriedade dos seus resultados anuais já que depende de fatores, a maior parte das quais o nosso país não tem controlo”. E desta forma, considera que “fazer depender excessivamente o desenvolvimento do país de um setor com estas características é correr um elevado risco” e acena com o último relatório do Banco Mundial que “tem o título esclarecedor: ‘Turismo a crescer num contexto macroeconómico internacional marcado pela incerteza’ em relação às perspetivas futuras e concluiu que são cautelosamente otimistas, no entanto, o esperado abrandamento do crescimento global, a persistência da inflação subjacente, as tensões geopolíticas e os fenómenos meteorológicos extremos induzidos pelas alterações climáticas estão a afetar a confiança dos viajantes internacionais, o que confirma a extrema aleatoriedade e os riscos inerentes a este setor”.

Responsável pela crise da habitação? 

Um dos problemas associados ao crescimento do turismo diz respeito à habitação, já que o turismo é apontado por muitos como um dos principais responsáveis pela crise de falta de casas, principalmente nas grandes cidades, e pelos preços cobrados. 

No primeiro trimestre assistimos a um aumento de 1,9% nos preços das casas com o preço por metro quadrado a rondar em média os 2610 euros. Os dados foram revelados pelo idealista e apontam para uma subida de 6,4% quando comparado com igual período do ano passado. O mesmo cenário repete-se a quem procura casa para arrendar. De acordo com os mesmos dados, depois de um abrandamento no final do ano passado, os valores voltaram a acelerar em 2024 ao registarem um aumento de 2% entre o primeiro trimestre de 2024 e o trimestre anterior (a variação trimestral registada no final de 2023 foi de 0,9%), em que arrendar casa passou a ter um custo mediano de 15,8 euros por metro quadrado no final do mês de março. 

Mas nem todos concordam com este apontar do dedo. “O turismo usa vários recursos, um dos mais importantes é o alojamento. Se o Estado não acautela essa necessidade ou, pior, complica a produção desses recursos, depois acusa os utilizadores, como o turismo, de serem os culpados das faltas”, refere César das Neves.

Uma opinião que já tinha sido defendida pelo presidente do Turismo de Portugal, em entrevista ao Nascer do SOL. “O problema da habitação resulta de uma constatação factual que existe: há menos oferta de casas face à procura e não é resultante da dimensão turística. 2008 e 2009 foram os últimos anos em que o nível de construção para a habitação foi o mais elevado, a partir daí os números desceram e mantiveram-se baixos, criando uma pressão muito grande da procura sobre a oferta”. 

E em relação ao facto de muitos imóveis habitacionais se terem transformado em alojamento local tirando ainda mais a oferta ao mercado, Carlos Abade disse apenas que “uma cidade tem de ter a capacidade de evoluir e de estar preparada para todas as dimensões, como uma cidade internacional deva estar. Logo tem de ter uma dimensão da economia, de habitação e de dimensão cultural”.

Mão-de-obra é calcanhar de Aquiles

Outra dor de cabeça do setor diz respeito à falta de mão-de-obra neste setor, não ficando alheio ao que se passa com outros setores de atividade. E muitos responsáveis do setor acenam com falhas na ordem dos 50 mil, defendendo que só poderá ser colmatado com uma forte aposta na imigração. 

Uma preocupação que leva Carlos Abade a reconhecer que o turismo é uma indústria de pessoas para pessoas e, como tal, precisa de muitas. Ainda assim, admitiu que há várias preocupações que o setor tem. “A primeira é a captação de pessoas para a profissão do turismo, e é uma dimensão que temos vindo a trabalhar, nomeadamente através de protocolos que Portugal tem feito com outros países, no âmbito da CPLP, por exemplo, mas também apostar num processo de valorização e de dignificação da profissão. É importante a valorização dos recursos humanos, pois não é só importante captar é também importante reter” e em relação aos ordenados que são praticados afirma que tem havido um esforço por parte das empresas nos últimos anos, defendendo que o tecido empresarial “tem percebido que o incremento salarial é um fator importante naquilo que é a captação e a retenção de talento” e, por isso mesmo, acredita que é um esforço que irá continuar. 

Mas nem todos partilham da mesma opinião. E apesar de reconhecer o peso que o setor tem em termos de empregabilidade, César das Neves lembra que muitos postos de trabalho que são criados “não são necessariamente aqueles empregos que os portugueses querem”. E alerta: “Grande parte são empregos de baixa qualificações e muitos acabam por ser garantidos por estrangeiros, enquanto os portugueses emigram”.

Mais crítico nesta matéria é Eugénio Rosa ao referir que é um setor, onde dominam os baixos salários, o que no seu entender, é consequência de ser um setor de baixa tecnologia e baixa produtividade. “Os dados dos quadros de pessoal, que as empresas são obrigadas a enviar todos os anos ao Ministério do Trabalho, revelam que este é um dos setores onde a remuneração base média e o ganho médio são muito inferiores ao salário médio e ao ganho médio nacional . É um setor em que emprega muitos trabalhadores – em 2023, o alojamento, restauração e similares empregava 328,8 mil trabalhadores, ou seja, 6,6% do emprego, segundo o INE – mas uma grande parte, mais de 40%. recebe o Salário Mínimo Nacional”. 

O que esperar? 

César das Neves reconhece que o setor depende “crucialmente de muitas infraestruturas e regulamentos, que dependem direta ou indiretamente do Governo, pelo que o papel do Estado no setor é muito relevante”, mas também reconhece que “o problema é que os governos concretos não tratam desses aspetos que lhe competem, que são morosos e pouco mediáticos, preferindo interferir em áreas que não lhe competem”. E vai mais longe: “No turismo, como em outros setores porque o Estado se tem interessado, esse interesse acaba por ser mais uma maldição que uma bênção, porque promove políticas erradas e ajuda os operadores que não devem ser ajudados”.

Quanto ao futuro, o economista diz que foram tantos erros cometidos que espera que o novo Governo faça o inverso do que tem feito. “O desinteresse, a burocracia, a estratégia errada e a captura por interesses particulares fizeram das políticas de turismo e de habitação o desastre que hoje é. É claro que os operadores do setor também têm culpas, mas essas deviam ser compensadas não ampliadas pelos poder público”, conclui.

E dá como exemplo o que se passou com o alojamento local que é visto pelo economista como uma das linhas mais dinâmicas do turismo contemporâneo. “Suspendê-lo é destruir essa dinâmica. Claro que essa realidade levanta vários problemas sociais e pessoais, que têm de ser acautelados pela legislação. Mas isso nada tem a ver com suspensão, e a necessidade de lidar com esses problemas não ser capturada por interesses particulares dos vários agentes do setor”.

Quanto aos vistos gold, César das Neves considera que é “uma ideia boa” mas entende “que foi pessimamente implementada por cá, fomentando corrupção e especulação sem benefícios visíveis para o país que vende a sua cidadania. Se fosse possível implementar a medida de forma séria e inteligente, seria de continuar. Como provavelmente não é, o melhor é suspender”.