1874: A invenção do impressionismo

Há precisamente 150 anos, um grupo de pintores malcomportados deu o corpo às balas e fez uma exposição que marcou um ponto de rotura na forma de fazer, mostrar e ver a arte.

A 15 de abril de 1874, inaugurava-se no n.º 35 do Boulevard des Capucines, em Paris, uma exposição de 30 artistas que iria atrair tanta curiosidade quanta maledicência. A promotora era a Sociedade Anónima Cooperativa dos Artistas-Pintores, Escultores, Gravadores, etc., constituída em janeiro daquele ano, que arrendara para o efeito o estúdio entretanto vagado por Nadar, o famoso fotógrafo.

Na sua declaração de princípios, a Sociedade propunha-se realizar «exposições não seletivas, sem júri nem prémios, em que cada um dos associados poderá mostrar as suas obras». Para se tornar membro, bastava pagar uma inscrição de 60 francos e uma quota mensal. Em contraste com o que sucedia nos salões oficiais, as obras foram agrupadas por tamanhos e a localização de cada uma delas tirada por sorteio.

O cartaz incluía figuras esquecidas como Zacharie Astruc, Félix Bracquemont, Louis Latouche, Jean-Baptiste-Léopold Levert e Giuseppe de Nittis. Apesar da novidade da proposta, nem todas as obras eram inovadoras ou sequer entusiasmantes.

Mas entre os protagonistas contavam-se também Cézanne, Degas, Monet, Morisot, Pissarro, Renoir e Sisley. Além da vontade de romper com os cânones académicos, tinham em comum o facto de não terem passado pela Escola de Belas-Artes de Paris, preferindo-lhe escolas independentes, menos marcadas pela tradição e pelo academismo. Este grupo havia começado a encontrar-se às quintas-feiras no Café Guerbois, onde as discussões podiam tornar-se feias.

O mestre em torno do qual gravitavam os audaciosos artistas era Édouard Manet. Cauteloso, o farol do movimento de renovação da pintura francesa não quis participar na exposição organizada pela Sociedade Anónima. Não precisava: depois do escândalo causado pelo nu Olympia em 1865, a sua carreira tinha estabilizado e levantado voo. Já os seus ‘seguidores’ lutavam não apenas por se afirmar, mas pela sobrevivência.

A roçar a miséria

Vendo as molduras douradas nos grandes museus e os valores estratosféricos atingidos em leilão, é difícil imaginar as dificuldades por que passaram os criadores das obras-primas impressionistas. A recusa do comité organizador de um Salão ou uma palavra negativa de um crítico podiam ter efeitos devastadores, fechando as portas de galeristas e colecionadores de cujo patrocínio os artistas precisavam desesperadamente.

Monet, por exemplo, vivia em permanente estado de penúria, ao ponto de não ter dinheiro para as tintas. Em 1867, perseguido pelos credores, não lhe restou alternativa se não ir viver para casa de uma tia. E dois anos depois queixava-se: «Esta recusa fatal [do Salão] quase me tira o pão da boca, […] marchands e amadores viram-me as costas».

Uma grande oportunidade

A dificuldade em vender as obras decorria em grande medida da sua novidade. Estes artistas não pintavam temas históricos nem mitológicos, como os seus rivais da Academia, mas cenas do quotidiano – os cafés e cabarets, o movimento dos boulevards, as estações de comboio, os locais de recreio nos arredores campestres de Paris. Em vez de linhas bem estabilizadas e definidas, usavam pinceladas rápidas, imperfeitas, que traduziam a natureza fluida da vida e as impressões fugidias dos sentidos.

«Na Grenouillère», uma zona nas margens do Sena, «os dois amigos [Monet e Renoir] empregavam traços rápidos, pontos, vírgulas, para recriar a atmosfera cintilante, os movimentos da água e a atitude dos banhistas», escreveu John Rewald. «O que os pintores oficiais teriam considerado falta de acabamento tornou-se […] uma necessidade para mostrar as vibrações da luz e da água, a impressão do movimento e da vida».

Monet apurou ao extremo essa técnica numa pintura radical, emblemática da exposição da Sociedade Anónima. Impression, soleil levant representava o amanhecer no porto do Havre, com os mastros dos navios e as infraestruturas portuárias reduzidas a um borrão pela neblina matinal.

O escritor Émile Zola saudou a audácia dos artistas. Não estava sozinho. Mas a esmagadora maioria da crítica foi demolidora. «Sistematicamente excluídos das exposições oficiais […] os artistas não resistiram a pregar umas partidas infantis», escreveu a Revue de France. Émile Cardon, no La Presse, anunciou: «É_uma grande oportunidade […] que os amantes do farsola e do grotesco não vão querer perder». _E Louis Leroy, no texto satírico em que cunhou o termo impressionismo, designação que o grupo assumiu em 1877, apontava que «um papel parede na primeira fase de produção tem mais acabamento» do que a paisagem marítima de Monet.

Monet, Renoir e companhia não se deixaram intimidar nem pelas balas nem pelo veneno. Até 1886 iriam realizar mais sete exposições, conquistando progressivamente o favor de colecionadores e galeristas. 150 anos depois, com o privilégio da perspetiva dada pelo passar do tempo, todos sabemos onde a História os colocou.

jose.c.saraiva@nascerdosol.pt