Sem rosto e sem pés nem cabeça

A moeda com que a Imprensa Nacional assinala os 500 anos de Camões é uma coisa horrorosa. Faz lembrar os cartoons com que Cid  retratava Balsemão, um homem sem rosto. No caso, José Aurélio, com reputada obra, só faz sobressair a deficiência do Poeta. Muito mau gosto!

H á com certeza quem aprecie, e certamente o autor, mas todas as opiniões que recolhi vão num único sentido: a moeda comemorativa dos 500 anos de Luiz Vaz de Camões cunhada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, cuja face com as Quinas até escapa, é horrorosa e mesmo insultuosa da memória do maior dos Poetas e expoente máximo da História da Literatura Portuguesa.

José Aurélio, o escultor alcobacense a quem foi entregue a criativa missão, tem vasta obra na numismática e na joalharia, como na escultura, com reconhecimento público desde há décadas. Por isso, menos se compreende a desconsideração ou destratamento de Camões.

A imagem – que se reproduz –, tirando os verdes louros, ressalta tão somente a deficiência do Poeta que ficou zarolho. De mau gosto, muito mau gosto.

Faz lembrar as caricaturas que o saudoso cartoonista Augusto Cid fazia de Francisco Pinto Balsemão, um homem sem rosto, sem olhos nem boca. Mas Cid fazia-o propositada e sarcasticamente, porque estava convencido que Camarate não fora um acidente e que a queda da avioneta que transportava Sá Carneiro, Amaro da Costa e Patrício Gouveia no dia 4 de dezembro de 1980 fora alvo de um atentado bombista ‘apadrinhado’ por Balsemão.

Basta, aliás, consultar a página da Casa da Moeda no Facebook e o respetivo anúncio público da peça evocativa do V Centenário de Camões e ler os comentários nele apostos: todos arrasadores.

De «mais parece um Camões de pokemons» (de Manu Augusto Neg Moedas) a «CAMÕES_EM_MODO_CARNAVAL» (Joaquim Lopes) ou «a qualidade como critério deixou de existir a favor sabe-se lá de quê» (Luís Miguel), não falta quem lembre que «há quem diga (… que Camões era cego do olho direito e há outros que dizem ser do olho esquerdo» e «com uma face assim, não erram» (Pedro Triguinho).

Vale a pena citar outros comentários, como o de José Monteiro: «Não consigo perceber, uma moeda que podia e devia ser interessantíssima, não vai passar de uma aberração, o culpado não é quem a desenhou, é quem a aprovou»; ou o de Manuel Barreleiro: «Os decisores da Casa da Moeda estão mesmo bem? Pelos desenhos de moedas que escolhem parece que não».

Mas há mais. Miguel Silva, por exemplo, até considera a moeda bonita pela face com as quinas dos  símbolos nacionais e assume que pondera juntá-la à sua coleção, mas sublinha: «no entanto, a parte que usam para representar Luís de Camões parece um dedo com uma coroa de Júlio César. Vou chamar esta moeda de Zarolho feio». Tita Portal e Ariana Sanches lamentam simplesmente o «mau gosto» e «enfim…».

E Maria Carita Ramalho conclui lapidarmente: «Que horror (…) diria mesmo que aquela caricatura é uma falta de respeito pelo símbolo maior da nossa cultura».

A moeda chegou-me pela partilha de um post de Isabel Morujão, «indignada com a forma como Portugal, sobretudo a nível das suas várias instituições, lida com figuras maiores da História, da Cultura e das Artes», que descreve assim o retrato de autoria de José Aurélio: «(…) um Camões sem boca, sem voz, sem poesia. Só com um olho. Destituído de humanidade e estropiado o rosto, deu-lhe então o golpe final, abonecando a figura, sem queixo, sem pescoço, alargando-a num bócio imenso». E não poupa os responsáveis pela sua aprovação, questionando: «E superiormente acharam o trabalho magnífico e digno de homenagear o Poeta».

A linha desta moeda de José Aurélio não é a mesma do símbolo adotado por António Costa para os documentos oficiais do Governo e da Administração Pública da autoria de Eduardo Aires, até porque o escultor alcobacense fez questão de representar as quinas da bandeira e símbolo nacionais na outra face – aquela que acaba por receber alguns elogios de quem com ela se confrontou.
No símbolo que Costa pagou e aprovou nos últimos meses do seu já então defunto Governo, e que apagou todas as referências históricas aos Descobrimentos e aos símbolos nacionais, mantendo apenas as cores dominantes da bandeira da República, cortar a esfera armilar não foi uma mera opção do designer. Foi uma provocação assumida de quem assumidamente nega a História de Portugal e a pretende reescrever menorizando, ou pretendendo mesmo apagar, os feitos valorosos de quem deu novos mundos ao Mundo e se aventurou por mares nunca antes navegados.

Ou seja, a História que Camões cantou com engenho e arte inigualáveis.

Na moeda evocativa dos 500 anos do Poeta, se lá estão as quinas, o registo não é obviamente o mesmo.

Mas o resultado é.

Como se já não fosse suficiente o amesquinhamento das comemorações oficiais que o anterior Governo chancelou, esquecendo Camões e investindo tudo na evocação dos 50 anos do 25 de Abril.

Se o novo Governo, e bem porque honrou promessa feita, foi lesto a revogar o símbolo provocador e a repristinar o anterior sem mais delongas nem desbaratar mais dinheiro (e por tudo isso são incompreensíveis as críticas que se fizeram ouvir), vai ainda muito a tempo de lembrar Camões condignamente, como o Poeta soube celebrar os históricos feitos dos portugueses e eternizar o Português n’Os Lusíadas.  É o mínimo.

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