Tranquilo, o homem dorme enquanto a tempestade lhe adorna o barco. Como capitão, sabe que deve ser o último a abandonar o navio e, por isso, talvez não esteja grandemente consciente de que acaba, no espaço de cinco dias, contra o mesmo adversário, de ter atirado pela borda fora as duas provas mais importantes do futebol aquém-fronteiras. Alguém que o acorde, se achar necessário, um capitão igual ao capitão do Barco Bêbado de Rimbaud. Batam-lhe à porta com força e gritem: «Ei!, capitão Schmidt, o seu bote foi ao fundo». Bote é uma alcunha que encaixa neste Benfica que, na época passada pareceu um couraçado. Ou canoa. Ou, melhor ainda: jangada. Assim, feita de restos à toa como uma geringonça, para utilizar uma expressão tão na moda na política.
E, no entanto, o Benfica até começou bem a época, ganhando a Supertaça ao FC Porto, um daqueles jogos que tem por hábito perder. Mas não era o mesmo Benfica que, na época anterior, nos surpreendeu e entusiasmou com um futebol de dinâmica superlativa. Deixou de ser uma equipa (claro que as saídas de Grimaldo e Gonçalo Ramos foram muito marcantes, curiosamente por tudo o que o defesa-esquerdo atacava e tudo o que o avançado-centro defendia) para passar a ser um aglomerado de onze jogadores sem saberem bem ao certo o que lhes era exigido fazer sobre o relvado. Nesse aspeto, há que dar os parabéns a Herr Schmidt, um treinador menos do que medíocre e que criou todo aquele caos tático no qual há médios-defensivos e defesas-centrais a fazer o papel de defesas-esquerdos, extremos trocados de posição, médios sem força e sem ritmo e nem sequer um ponta-de-lança para amostra.
As inutilidades!
Perdida a Taça de Portugal e o campeonato para o Sporting, este Benfica tem de ser catalogado, sem dúvidas, com um dos piores da sua mais do que centenária história. Dirão alguns, e não lhes recuso a razão, que o capitão Schmidt teve de trabalhar com o pessoal que lhe meteram a bordo e que não é culpa dele ter excesso de vigias no cesto da gávea e nem sequer um piloto que pusesse, com firmeza, as mãos ao leme. No entanto, todas as informações levam a crer que a invenção que deu pelo nome de Kökçü foi uma opção sua, tirando proveito daquilo que o tinha visto fazer no campeonato da Holanda quando treinava o PSV Eindhoven. É natural que assim seja. Meteu, por assim dizer, a pata na poça, obrigando o clube a gastar cerca de 20 milhões de euros numa nulidade absolutamente arrepiante que nunca justificou o seu lugar no plantel.
Por outro lado, Dí Maria terá sido uma opção do presidente Rui Costa, seu companheiro de equipa há anos e tinha um apreço especial em vê-lo terminar a carreira com a camisola da águia ao peito. Desastroso! Quem olha para a forma continuada como o argentino perde bolas atrás de bolas e não faz o mínimo gesto para recuperá-las, percebe que Di Maria não veio terminar a sua carreira no Benfica porque ela já estava acabada antes de desembarcar em Lisboa pela segunda vez.
Olhe-se, finalmente, para a geringonça que o capitão Schmidt graças ao seu futebol partido (os três da frente são excluídos do processo de recuperação da bola) montou no centro do terreno, principalmente a partir do momento em que foi à equipa B buscar um desgraçado chamado João Neves e o obrigou a fazer de tudo um pouco, de uma baliza à outra, a despeito de ter somente 19 anos e dever ser protegido o mais possível porque é ele (e outros como ele) o verdadeiro futuro do Benfica. Desequilibrado até às traves mestras, o Barco Bêbado do capitão Schmidt é uma bricolage entre jogadores velhos e praticamente inúteis (Di Maria e Otamendi, por exemplo), de outros sem qualidade para vestirem aquela camisola (Cabral, Kökçü, Tengstedt), e finalmente daqueles que precisam de ser trabalhados num clima vitorioso que este treinador não lhes fornece (Bah, António Silva, João Neves, Marcos Leonardo).
Depois de ter atirado com o bote para o fundo do Atlântico que banha Lisboa, Roger Schmidt não tem condições nem para ser grumete no Benfica e a sua manutenção no cargo (ainda tem mais um ano de contrato) seria uma espécie de suicídio anunciado. Não apenas pela modéstia do seu trabalho técnico, tático e até físico mas pela forma com está a conduzir as multidões que seguem o Benfica para uma ideia de satisfação na derrota que foi, no mínimo chocante, nos dois jogos com o Sporting, Os adeptos saíram da Luz felizes da vida por não terem perdido o jogo e de Alvalade com uma satisfação mal disfarçada de terem visto a sua equipa dar luta e de evitar, com certamente esperariam, de não a ver esmagada como aconteceu nas Antas. Esta filosofia que, diria eu, é completamente anti-Benfica, anti-tudo aquilo que representaram homens de antanho que se envergonhavam das derrotas, por escassas que fossem, é mais um motivo para que este capitão deixe de vez o comando de um navio que foi sempre demasiado grande para ele. O bote foi ao fundo! Será preciso recordar-lhe quantas vezes? Talvez lhe fizesse bem bem um banho de humildade e a dignidade de ser ele próprio a perceber que um ano para o outro transformou o Titanic numa espécie de Kon-Tiki. Com a diferença que Kon-Tiki não se afundou.