Camões: 500 anos. O Gama d’Os Lusíadas: herói não-heróico

Apesar dos sérios concorrentes na chamada galeria dos heróis do Oriente, Vasco da Gama foi o eleito para conduzir as naus à Índia. E também o eleito de Camões quando outros candidatos à epopeia se perfilavam. Hoje, com um pé na história, outro na literatura, é impossível recordá-lo à margem de Camões.

«E lembrou-se de quando o chamaram ao Paço, lhe entregaram uma frota e o mandaram à Índia, oferecendo-lhe, para o ajudar, um maço de mapas de continentes inventados, pilhas de relatórios mentirosos de viajantes pedestres». Imediatamente antes de rumar ao Oriente, é num quadro de arbitrariedade, nas tintas para a fase preparatória da viagem, que Vasco da Gama nos surge no romance As Naus, de António Lobo Antunes, essa síntese ao avesso do percurso português na História. Tudo parece não ter passado de uma obra de acaso, esse elemento escassas vezes ponderado mas tantas vezes decisivo e a condicionar o sentido da História. A existência desta figura, não envolvida nos contornos míticos que hoje lhe conhecemos, surge ali marcada pela imprevisibilidade. Na verdade, nada a apontava para tão alta missão. Seguindo de perto a opinião de alguns dos mais recentes biógrafos da figura histórica, houve já quem dissesse que, de algum modo, Vasco da Gama «está nesta história um pouco como Pilatos no Credo».

É curioso observar que a dimensão do inesperado, do imprevisto, de que As Naus tiram óbvios dividendos de significado aviltante, não se encontra ausente d’ Os Lusíadas, um dos mais firmes e seguros esteios da fama de Vasco da Gama. A epopeia camoniana, ao contrário de outros textos épicos, omite o cerimonial da eleição do comandante-mor da frota – momento para um cenário de madura ponderação – e confronta-nos com a imagem de um Gama surpreso, senão mesmo perplexo, quase boquiaberto pela escolha do rei D. Manuel (ainda hoje contestada) ter recaído justamente sobre si: «Não sei por que razão, por que respeito,/ Ou por que bom sinal em mim se via,/ Me põe o Ínclito Rei nas mãos a chave/ deste cometimento grande e grave» (L. 4. 77). Em Peregrinação de Barnabé das Índias, romance de Mário Cláudio, fica claro, aliás, que Paulo da Gama, cujo retrato se agiganta sobre o do irmão, o chefe da armada das Índias, seria, para tanto, o mais preparado, aquele que, pela experiência tangenciadora da morte, apresentaria especial sensibilidade no trato humano.

De Eneias o Gama não toma apenas a fama mas também os longos e espinhosos trabalhos de um tal cometimento. Ao contrário de Eneias, que começa por ser um “trabalhador” a contragosto, preso à fatalidade do seu papel de herói («Demando a Itália não por minha vontade»), a verdade é que o Gama camoniano, logo se afirma pela firmeza e voluntarismo exigidos por uma viagem que se adivinhava longa e arriscada. N’ Os Lusíadas, vemo-lo desempenhar, com alegre sacrifício e com a escrupulosa fidelidade de um exemplar funcionário régio, a tarefa de que foi incumbido. Mas, ao serviço da dilatação do império e da fé, ao Gama é por vezes difícil perceber o desamparo a que parece ser votado no limiar final dos trabalhos, nesse momento decisivo em que a expedição estava prestes a chegar à Índia: «No fim de tantos casos trabalhosos,/ Porque somos de Ti desamparados,/ Se este nosso trabalho não te ofende,/ mas antes teu serviço só pretende?» (L. 6. 82).

Vasco da Gama não é o herói impecável, longe disso. Como embaixador de Portugal é uma nódoa que não pára de alastrar, mostrando desconhecer as mais elementares regras da diplomacia. E não é também propriamente um «sábio Grego». Tem as suas fraquezas, as suas fragilidades, entre elas a tão notada ausência de amor às letras que o coloca numa situação de favor para com quem o canta. E também não é, como Ulisses, o lutador incansável, o que tem a capacidade de muito suportar, o homem astuto e prudente. Vasco da Gama, que nada deve ao princípio da precaução, cansa-se, deixa-se tentar pela facilidade, comete erros, cai em ciladas, desespera. Tal como Eneias, também o Gama d’ Os Lusíadas tem comportamentos de entrega, também ele, a um passo de ver cumpridos os trabalhos que dirigia, parece desejar morrer a ter de enfrentar a tempestade.

A debilidade de carácter e de acção do herói da viagem lusíada levou António José Saraiva a traçar do herói um extenso retrato, disperso por vários livros, que Hélio Alves, ressalvando embora «o ligeiro tom de paródia» reuniu de modo sintético: «O herói de Camões não se arrisca, não se molha na água, não se livra das intrigas, não se mancha de sangue e, pior, não só não age como não tem sequer vontade de agir. A sua existência não chega sequer a desenhar-se. O herói encontrado é afinal um herói que não existe.»

Se para uns a dita “inacção” do Gama fica a dever-se a uma ausência de entusiasmo, para outros, o Gama não age, não tanto por falta de vontade, de vigor ou de audácia, mas porque estes requisitos ou lhe são surripiados por Vénus – que tanto bem lhe quer, que se lhe substitui –, ou pela presença opressiva do narrador, que tantas expectativas deposita no seu herói que o apaga.

Também não o vemos, como queria A. J. Saraiva, e aos seus homens, a lutar contra as coisas do mar (que cansam, fatigam e fazem adoecer), por nos serem dadas através de um cortejo de referências a fenómenos. Mas o chefe da frota portuguesa mostra, durante a estada em Calecute, que é capaz de agir autonomamente, sem as providenciais ajudas de Vénus. É certo que aqui as manobras rápidas (e nocturnas) a que assistimos configuram um quadro de fuga. Mas que faria outro em seu lugar?

A sua conduta é pontuada pela incerteza, pela hesitação, pelo medo, pelo cansaço, por um sentimento de impotência. Afastado dos luzeiros de Homero, o Gama será, não «o herói que não existe», mas o herói não-heróico. Cravejado de marcas anti-heróicas inverte, a espaços, a imagem exaltada e fulgurante dos heróis do mundo homérico. De medida humana, amolece, treme face à adversidade, como tremeu Eneias, como veremos tremer o «homem do leme» de Pessoa.

Agente involuntário de um destino a que se oferece, este herói dá-nos, por vezes, a imagem de um vencido porque, também por vezes, as sombras e o sofrimento que o atingem parecem ser superiores à sua capacidade de superação. Entregue (quase sempre) a si próprio, aos caprichos, invejas e insídias de uma máquina mitológica e à avaliação de quem o observa – que tenderá a atentar nas suas escolhas quando a opção se lhe apresenta – o herói de Camões vive, porém, as contrariedades da navegação marítima, as suas dificuldades imprevistas e hostis – obstáculos superlativos que o destino lhe reservou e que ele, embora de forma não propriamente gloriosa, defronta e supera. A chave do seu carácter encontramo-la na obediência às exigências da execução heróica. Mais que o medo, mais que a vontade de abandono, mais que a tentação da morte, manda a missão que o ata ao leme. É uma concepção de heroísmo de matriz virgiliana acessível, em teoria, a todo aquele que deseje conquistar o próprio valor. Basta querer.

Este “novo herói” mantém ainda os qualificativos físicos dos heróis de Homero («fortes navegantes»/«gentes tão possantes», «fortíssimos barões», «valeroso Capitão»), mas não dispõe já das suas qualificações físicas: «Três marinheiros, duros e forçosos,/ A menear o leme não bastaram» (6.73). Convém recordar, com Borges de Macedo, que Camões não anunciou façanhas correspondentes a «mais do que permitia, mas sim, mais do que prometia a força humana».

Ao contrário de alguma crítica, Camões não esquece nunca que o seu herói é humano. É por isso que se lembra de lhe preencher o tempo de travessia de mares, em que pouco se passa, fazendo-o olhar as estrelas. É por isso que lhe oferece um bom contador de histórias, como Veloso.