As voltas que a vida dá! É talvez a expressão que melhor se aplica ao facto de Rui Teixeira, juiz do processo Casa Pia que tanto tumulto causou no PS, ser agora um dos desembargadores que assinou o acórdão arrasador para o Ministério Público e que iliba António Costa na Operação Influencer, confirmando ainda as medidas de coação mais leves para os arguidos, como o seu ex-chefe de gabinete e o seu melhor amigo.
Mais de 20 anos separam estes dois casos judiciais que, a par da Operação Marquês, tiveram os mais demolidores efeitos no PS. Mas as coincidências não ficam por aí.
António Costa foi uma das figuras mais decisivas, assim como Ferro Rodrigues, na altura secretário-geral do PS, para que o juiz Rui Teixeira determinasse a prisão preventiva do ex-ministro e então deputado Paulo Pedroso no âmbito do processo de pedofilia da Casa Pia. Terão sido as conversas de bastidores, apanhadas em escutas, que deram a justificação ao magistrado para invocar tentativas de perturbação no caso.
Mas, como se a mera detenção de um deputado, cuja imunidade parlamentar teve de ser levantada, não fosse suficiente, Rui Teixeira decidiu, num tempo em que ainda não estávamos habituados à ‘espetacularidade’ de uma investigação criminal – com as quais estamos agora mais do que familiarizados –, irromper pela Assembleia da República para entregar em mão, ao então presidente do Parlamento, Mota Amaral, o mandado contra Paulo Pedroso. A detenção do socialista acabaria por ser acompanhada em direto pelas televisões. Este mediatismo pode ter sido pago caro e houve mesmo quem considerasse que a carreira do magistrado foi prejudicada pelo caso, e que o juiz terá sido preterido por outros em cargos de progressão profissional.
Rui Teixeira foi promovido para o Tribunal da Relação de Lisboa em 2018, ironia das ironias, apenas cinco dias após o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ter condenado o Estado português a indemnizar Paulo Pedroso, considerando que não havia indícios suficientes para a sua detenção preventiva, determinada pelo então juiz do Tribunal de Instrução Criminal e agora desembargador.
O ‘ódio’ do juiz ao acordo ortográfico
Mas a carreira do juiz não ficou marcada apenas pela polémica da Casa Pia. Em 2013, o Conselho Superior de Magistratura abriu um processo disciplinar a Rui Teixeira, na altura colocado no Tribunal de Torres Vedras, que resultou na sua condenação, por violação dos deveres de obediência e correção, a uma ‘advertência registada’, pena disciplinar que viria a ser confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em 2015.
Em causa estava a recusa do magistrado em receber relatórios, no caso da Direção Geral de Reinserção Social do Pinhal Litoral, escritos à luz do novo acordo ortográfico. Perante um pedido de esclarecimento da equipa daqueles serviços prisionais, o juiz respondeu de uma forma que mereceu também a crítica do STJ. «O pedido de aclaração deriva mais do que do desconhecimento das Leis que nos regem da incapacidade de leitura de quem subscreve o pedido de aclaração», afirmou Rui Teixeira. «Nos Tribunais, pelo menos neste, os factos não são fatos, as actas não são uma forma do verbo atar, os cágados continuam a ser animais e não algo malcheiroso e a Língua Portuguesa permanece inalterada até ordem em contrário», acrescentou.
Outro episódio digno de destaque é o facto de o líder do Chega, André Ventura, ter desafiado o juiz para ser mandatário e coordenador da sua campanha eleitoral para as presidenciais em 2020, como reação ao facto de Ana Gomes, sua adversária nessas eleições, ter convidado Paulo Pedroso.
Mais recentemente, em janeiro deste ano, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) decidiu abrir um processo de ‘averiguação’ aos factos na origem do pedido de inquérito disciplinar ao juiz, feito por dois jornalistas condenados por violação do segredo de justiça, no âmbito dos casos dos ’emails’ do Benfica, E-toupeira e Operação Lex. Os jornalistas alegam que Rui Teixeira devia ter pedido escusa, por já ter tido intervenção anterior no mesmo processo.
‘Deduções e especulações’
Quatro meses depois da abertura de um novo processo pelo CSM, o nome de Rui Teixeira, e, claro está, de mais duas juízas desembargadoras que assinam o acórdão [curiosamente sem adoção das regras do acordo ortográfico] do Tribunal da Relação de Lisboa, volta a saltar para as notícias.
Ora, o mesmo juiz que considerou que as movimentações de António Costa, antes da detenção de Paulo Pedroso, ameaçavam influenciar o processo judicial defende agora que o ex-primeiro-ministro não se deixaria influenciar pelo antigo chefe de gabinete e pelo melhor amigo, ambos arguidos no caso Operação Influencer. Sublinhe-se que o acórdão da Relação, assinado pelos desembargadores Cristina Almeida e Sousa, Hermengarda do Valle-Frias e Rui Teixeira e conhecido na quarta-feira, confirmou as medidas de coação mas leves para Diogo Lacerda Machado e Vítor Escária.
Para os juízes, não foi «descrito algum comportamento objectivo do Primeiro-Ministro passível de mostrar alguma receptividade ou predisposição para ouvir e acatar o que o seu melhor amigo teria para lhe dizer, fosse em matéria de decisões sobre políticas públicas e medidas legislativas no ambiente». Recorde-se que um dos negócios visados pela investigação é a construção de um centro de dados na zona industrial e logística de Sines pela Start Campus, empresa da qual Lacerda Machado era consultor. Os desembargadores entendem que «o único facto concreto protagonizado pelo Primeiro-Ministro foi ter estado presente num evento de apresentação do projeto».
O Ministério Público não apresentou qualquer prova de uma «circunstância concreta» relativa à interação de António Costa com Lacerda Machado «de que possa retirar-se, ainda que só por dedução lógica, que o Primeiro-Ministro alguma vez tenha pedido opinião ao seu melhor amigo para escolher ou demitir Ministros ou Secretários de Estado dos seus governos, ou que alguma vez tenha mostrado alguma abertura ao arguido Diogo Lacerda Machado para ouvir as opiniões que este porventura tivesse sobre o elenco governativo», lê-se no acórdão.
Mas os juízes vão mais longe, ao dizer que o «plano criminoso» invocado pelo MP na acusação é baseado em «meras proclamações assentes em deduções e especulações», que não passam de «afirmações vagas, genéricas» proferidas em chamadas telefónicas entre arguidos e membros de Governo. «Não há, pois, indícios, nem fortes, nem fracos, da prática do crime», acrescentam.
Costa a caminho de Bruxelas? Marcelo acha que sim
A posição do Tribunal da Relação não tardou a gerar reações, e para todos os gostos. A Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, garantiu que a investigação vai prosseguir; os socialistas, por pouco, não rasgaram as vestes, indignados com o facto de o antigo primeiro-ministro ainda não ter sido ouvido no caso, que precipitou a queda do Governo, e exigindo esclarecimentos do MP aos portugueses.
Já o Presidente da República reagiu à Marcelo Rebelo de Sousa: não quis comentar, comentando. “Tenho a sensação de que começa a ser mais provável haver um português no Conselho Europeu, neste próximo outono, em Bruxelas”, disse o chefe de Estado pouco depois de ter sido conhecido o acórdão que afasta as suspeitas sobre António Costa, pelo menos do crime de tráfico de influências.
Sublinhe-se que Marcelo Rebelo de Sousa tem sido tudo menos tímido em relação ao seu apoio a uma possível ida do ex-primeiro-ministro para Conselho Europeu. Posição essa bem diferente da que tinha quando António Costa era líder do Governo. Nessa altura, não faltaram avisos do Presidente da República sobre eventuais sonhos com Bruxelas.
A decisão do Tribunal da Relação caiu que nem uma bomba e os estilhaços atingiram, claramente, o Ministério Público, que pode ver o tiro, que deitou abaixo o Governo, a sair pela culatra.