Campeões da liberdade

O Sporting foi o primeiro campeão nacional do pós-25 de Abril. Num país marcado pela revolução dos cravos vermelhos, assistiu-se a uma verdadeira onda verde no plano desportivo.

A revolução pôs fim ao Estado Novo, mas também à hegemonia do Benfica, que, na década anterior, tinha sido campeão por oito vezes. O futebol sempre fez parte da vida dos portugueses e nem o 25 de Abril parou o jogo da bola. Já antes, o golpe falhado conhecido por Intentona das Caldas aconteceu no dia de um clássico – “Na manhã do jogo vinham os tipos das Caldas, e disse aos responsáveis do Exército que não se fazia uma revolução num dia de Sporting-Porto”, afirmou na altura o presidente do Sporting, João Rocha. Dois dias depois de os militares terem deposto o regime fascista realizaram-se os primeiros jogos em liberdade para os oitavos de final da Taça de Portugal. No Boavista-Famalicão (5-1) verificaram-se os primeiros sinais de mudança, o presidente boavisteiro agradeceu publicamente aos militares que, entretanto, tinham sido enviados por Otelo Saraiva de Carvalho para garantir a segurança no Estádio do Bessa. 

O primeiro campeão nacional de futebol em liberdade foi o Sporting, que terminou com dois pontos de avanço sobre o Benfica de Eusébio, e impediu os encarnados de chegarem ao tetra. O Sporting, treinado por Mário Lino, tinha uma linha avançada demolidora, liderada por Yazalde; venceu 23 dos 30 jogos, liderou desde a 13.ª jornada, marcou 96 golos e deu duas valentes goleadas (8-0) ao Montijo e ao Oriental. Curiosamente, só passados 50 anos (2023/24) é que o Sporting voltou a vencer por essa margem. O Vitória de Setúbal de Pedroto era muito forte e foi terceiro classificado, à frente do FC Porto. No final da época, seis pontos (a vitória valia dois pontos) separaram os quatro primeiros classificados. Ao invés, Barreirense, Beira Mar e Montijo foram despromovidos ao segundo escalão. A época ficou também marcada pela morte do portista Pavão, nas Antas, no jogo frente ao Vitória de Setúbal e pelo recorde de golos de Yazalde (46). Importa salientar que a maioria das 16 equipas que disputaram a época 1973/74 eram de Lisboa e da região abaixo do Tejo. Das equipas que disputaram a 1.ª Divisão (era assim que se chamava a competição), apenas seis participam na Liga 1: Sporting, Benfica, FC Porto, Guimarães, Boavista e Farense.

A Taça de Portugal, considerada a competição rainha do futebol português, teve um Sporting-Benfica na final. Os leões venceram no prolongamento (2-1) e conseguirem aquilo que na linguagem futebolística se chama a “dobradinha”. Nessa época, a competição contou com equipas das colónias portuguesas em África, caso do Moxico (Angola), Textáfrica (Moçambique) e Sporting Bissau (Guiné-Bissau), mas ficaram todas pelo caminho na quinta eliminatória. Foi uma das melhores temporadas da história do futebol do Sporting, que conseguiu a quarta “dobradinha”, além de vencer o Campeonato Regional de Reservas e o Campeonato Nacional de Juniores.

A segunda divisão estava dividida em duas zonas, com 20 clubes em cada. O Sporting de Espinho ganhou na zona norte, onde competiam emblemas como o Braga, Chaves e Gil Vicente que estão agora na Liga 1, e o União de Tomar foi campeão na zona sul, onde competia o Portimonense.

O processo revolucionário deixou alguns clubes em dificuldades e outros desapareceram já que eram suportados financeiramente por grandes grupos industriais e empresas ligadas ao governo anterior, caso da CUF, Barreirense e Riopele, onde jogou Jorge Jesus.

E depois do adeus 

Curiosamente, o 25 de Abril de 1974 foi uma quinta-feira, tal como o 50.º aniversário, ou seja, no dia seguinte a uma jornada europeia. Quem ficou de fora da revolução foi o Sporting, já que no dia 24 estava na República Democrática da Alemanha (RDA) a disputar a segunda mão das meias-finais da Taça das Taças com o Magdeburgo. Depois do empate (1-1) em Alvalade, os leões foram derrotados (2-1) e acabaram eliminados. Este foi o último jogo europeu de uma equipa portuguesa debaixo do regime fascista. Depois da eliminação, o Sporting passou por uma verdadeira odisseia para regressar a Portugal, uma vez que todos os voos para Lisboa tinham sido cancelados. A solução foi voar para Madrid e depois seguir de autocarro até Badajoz, só que as fronteiras portuguesas estavam fechadas. Só mais tarde o presidente João Rocha recebeu autorização para a comitiva seguir de autocarro para Lisboa, foi uma longa viagem de regresso que demorou 50 horas. Sem conseguirem contactar com Portugal, os jogadores só tomaram conhecimento do golpe militar quando chegaram à fronteira da RDA, mas só acreditaram quando pararam em Frankfurt e os noticiários falavam do golpe de Estado.

O ambiente no futebol português antes da revolução era de medo e pobreza. A atividade sindical e associativa era quase nula, mesmo assim foi criado o primeiro Sindicato de Jogadores Profissionais, em 1972, presidido por Artur Jorge. Recorde-se que, nessa altura, nenhuma equipa fazia descontos para a Segurança Social e muito menos havia Fundo de Desemprego, o futebol era um negócio à parte e nada transparente. O processo de sindicalização só ganhou força com a queda do regime autoritário. Foi então que se verificou a mobilização dos jogadores para criar um novo estatuto e, a partir de 1976, já tinham direito à Segurança Social. Igualmente importante foi o fim da Lei de Opção, que colocava o jogador numa situação de dependência e de grande desigualdade face à sua entidade patronal, a partir desse momento os jogadores puderam escolher livremente o seu clube no final do contrato. 

Eusébio e Coluna foram dos primeiros a lutar pelos direitos dos futebolistas nos anos da ditadura. “O profissionalismo no futebol português não era vincado, era um profissionalismo de miséria. Eusébio e Coluna foram os maiores exemplos. E esses eram mesmo profissionais. Nos clubes da margem sul, os treinos eram ao final da tarde porque muitos trabalhavam para sobreviver”, disse António Simões a O Jogo. Além disso, o sistema era muito apertado, “era tudo na base da obediência, regras muito apertadas, diretores muito difíceis. Qualquer coisa que fugisse do controlo ou que não gostassem, estávamos feitos num oito”, reconheceu Lemos, antigo jogador do FC Porto. 

Além do futebol

Na transição para a democracia, o Sporting manteve a senda vitoriosa e foi campeão nacional de atletismo de pista, de luta greco-romana e, no ciclismo, venceu o nacional de velocidade com Manuel Gomes. O Benfica venceu em hóquei em patins, no voleibol feminino o foi campeão nacional de fundo de ciclismo com Fernando Mendes. O Leixões triunfou no voleibol masculino, o Belenenses ganhou no andebol, o CDUL superiorizou-se no râguebi e o Malhangalene venceu o campeonato metropolitano de basquetebol. O Clube Desportivo da Malhangalene era da cidade de Lourenço Marques, atual Maputo, fazia parte das filiais do FC Porto e atingiu o estrelato no basquetebol e hóquei em patins.

A seleção portuguesa era uma potência do hóquei em patins e foi em plena liberdade que Portugal conquistou o campeão do mundo pela 11.ª vez, Livramento e Rendeiro eram as referências da equipa. O Mundial estava marcado para Luanda, só que a mudança política obrigou a transferir a prova para o Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, em julho de 1974. Era num ambiente profundamente revolucionário que a seleção nacional entrava no ringue ao som de “Grândola, Vila Morena” de Zeca Afonso.