Fernando Peres! Assim mesmo, com ponto de exclamação. Querido amigo, gente de princípios e de coragem, homem de convicções. Jogador por inteiro. Do lado esquerdo. Sempre do lado esquerdo. No dia 25 de Abril de 1974, o Fernando era o único jogador português que estava fora de Portugal. Ou seja, de certa forma estava no exílio. Tinha embarcado no dia 19 de Março para o Rio de Janeiro. Deixara para trás oito meses muito difíceis da sua relação com o Sporting. Numa entrevista que me concedeu no tempo em que eu trabalhava em A Bola, explicou-se: «Tinha pedido à direcção do Sporting a actualização do meu ordenado. Estava há três anos no clube e continuava a ganhar o mesmo embora me tenha tornado uma das figuras da equipa. (Peres foi um dos convocados para o Mundial de 1966, em Inglaterra, n.d.r.). Fui considerado o melhor jogador da Minicopa (torneio que em 1970 comemorou os 150 anos da Independência do Brasil, n.d.r.), e uns tempos antes, quando o Sporting se deslocou a Boston, para um jogo particular, o empresário exigiu a minha presença e a do Damas para elevar o cachet. Nessa altura o meu pagamento mensal era de 35.500 escudos e pedi 50 contos/mês para continuar. Ninguém quis sequer ouvir-me. Impuseram-me a Lei da Opção e exigiram que continuasse no Sporting. Algo que me custou a engolir já que tinha propostas bem melhores do Anderlecht, do Vasco da Gama, do Benfica, do FC Porto e até do Boavista!». Cinco anos antes da revolução, Fernando Peres da Silva, nascido em Algés a 8 de Janeiro de 1943, fazia a sua própria revolução. Obrigado a ficar ligado ao Sporting, pura e simplesmente… não ficou. «Ou jogava onde queria ou não jogava em lado algum!», exclamou. E, sublinhou em seguida: «Era a única forma de combater a prepotência daqueles dirigentes!». A guerra passou a ser sem quartel. «Fizeram tudo para denegrir a minha imagem! Mas tudo!». Fernando Peres tinha iniciado a sua carreira no Belenenses. Passou para o Sporting. Fez um ano de vivência na Académica – o de 1968-69. Voltou para Alvalade. «Acusaram-me de querer ganhar tanto dinheiro como o Yazalde. De que não lhe passava a bola. Olha lá, quanto é que ganhava o Yazalde? Tu sabes? É que eu não», e ele desabafava e eu ouvia. Ouvia sempre porque o Fernando não se deixava arrastar pelas emoções sem boas razões para isso.
A «prisão» de Peniche…
Fernando Peres saiu do Sporting revoltado. Deixou de jogar futebol, logo ele que foi um jogador maravilhoso, e dedicou-se a ser treinador. No Peniche. Ganhava 17.500 contos por mês e ficou oito meses. Entretanto o Sporting elegeu João Rocha como presidente e este teve a preocupação em resolver o Caso Peres. «Não me libertou do contrato», contava o Fernando, «mas teve a sensibilidade de me procurar e tentar encontrar uma saída para uma situação que se tornava insustentável. Pedi-lhe para que me libertasse da Lei da Opção e me deixasse tratar da minha vida mas, infelizmente, na direcção do clube havia muita gente que não tinha simpatia por mim e não o deixaram à vontade com a matéria. O assunto resolveu-se aquando da transferência do Dé do Vasco da Gama para o Sporting. João Rocha incluiu-me no pacote e acabei por assinar um contrato com o Vasco da Gama».
No Brasil, Fernando Peres era pago ao nível do seu valor: 65 contos mensais. Além disso pagavam-lhe casa, comida e roupa lavada. No dia 25 de Abril de 1974, Peres era o único português a jogar no estrangeiro. Curiosamente, o Sporting, que tinha ido jogar a segunda mão das meias-finais da Taça das Taças a Magdeburgo, também se viu fora e desejou voltar ao Portugal de pantanas que era o da pós-revolução. As fronteiras estavam fechadas e os leões do lado de fora delas.
Estádio de São Januário, 25/4/1974: o Vasco da Gama acabara de disputar um jogo para o Campeonato Carioca e uma multidão de jornalistas pedia para falar com Fernando Peres. Fernando estranhou. Afinal não fizera assim uma exibição tão esplendorosa que valesse a atenção coletiva da imprensa. Alguém lhe explicou que, em Portugal, tinha rebentado uma revolução. Deixemos que seja ele a contar como foi, mesmo que já tenha partido para o seu eterno sossego no maldito 10 de Fevereiro de 2019: «Fiquei absolutamente espantado. Não sabia nada de nada do que se passava em Portugal. Houve uma pessoa que veio ter comigo com um cravo na mão a pedir-me que tirasse uma fotografia com o cravo. Achei esquisito. A que propósito? Recusei. Depois alguém explicou-me o que estava a acontecer, como as pessoas em Portugal andavam pelas ruas com cravos vermelhos, que a Ditadura tinha caído. Aí percebi o significado do cravo. Tirei várias fotografias com o cravo. Era o símbolo de uma liberdade que sempre quis para mim e para os meus compatriotas. Senti-me profundamente feliz!».
Cinquenta nos passam agora sobre esse dia em que Fernando Peres, o único emigrante do futebol português, ficou a saber que Portugal era um país livre, embora pelos vistos ainda hoje ande com a cabeça à roda para tentar perceber o que fazer com essa liberdade. No Rio de Janeiro havia um homem atento a todos os pormenores: «Saí de São Januário com um grupo de amigos para festejar mas queria estar sempre atento ao que se dizia na rádio e na televisão. Se íamos para um restaurante pedia para ficar perto do aparelho e que lhe pusessem o volume no máximo. Era excitante e ao mesmo tempo frustrante não estar em Lisboa, no centro dos acontecimentos. Quis viajar para Portugal, nem que fosse por uns dias, mas os dirigentes do Vasco da Gama não me deixaram, justificaram que estávamos na decisão do campeonato e que precisavam de mim com a equipa. Se calhar tiveram medo que eu fugisse, ou algo do género. Só pude voltar a Lisboa em Setembro. Vim encontrar um país cheio de ideias e, ainda por cima, conhecer o meu filho que já estava com dois meses de idade!».
Foi preciso esperar por Novembro de 1975 para que a liberdade chegasse ao futebol e se pusesse fim à profundamente fascista Lei da Opção. Fernando Peres sentia-se finalmente livre de corpo e alma, ele que fora um lutador incansável contra a injustiça praticada pelos clubes sobre os jogadores, obrigando-os a contratos longos e mantendo-os com os ordenados que mais conviessem às direções. Nesse mesmo mês de Novembro, assinou contrato com o FC Porto. Não durou. Em breve estava de regresso ao Brasil para jogar pelo Sport Club do Recife no Campeonato Pernambucano. Estava com 32 anos e cansado de futebol. Despediu-se no ano seguinte, como jogador do Treze FC, da cidade de Campina Grande, Estado da Paraíba. Ainda voltou a ser treinador, no União de Leiria e no Vitória de Guimarães, mas sem sucesso nem brilho. Muitos esqueceram-no. Eu faço questão de o lembrar: foi um jogador fora do comum e um ser humano de profunda dignidade. Sonhou sempre com a liberdade.