E nunca um ser humano foi capaz de fazer um golo ao Rei

Pelé era tão bom guarda-redes que geralmente funcionava como suplente da baliza do Santos.

Nelson Rodrigues, um dos maiores mestres da crónica universal, era de um exagero quase ultrajante. Tanto insultava sem medida como elogiava sem medida. Por isso, certo dia resolveu escrever sobre Pelé: «Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: – a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônia. Já lhe perguntaram: – Quem é o maior meia do mundo? Ele respondeu com a ênfase das certezas eternas: – ‘Eu’. Insistiram: – Qual é o maior ponta do mundo? E Pelé: – ‘Eu’. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé…». Há, apesar de tudo, uma falha grave nesta sua crónica sobre Edson Arantes do Nascimento, por extenso Pelé. Ninguém lhe perguntou: – Quem é o maior guarda-redes do mundo? Então ele, na sua insustentável modéstia, responderia: – ‘Eu’.

No dia 14 de novembro de 1969, cinco dias antes de marcar o milésimo golo da sua carreira, o Santos fez um jogo amigável contra o Botafogo da Paraíba no Estádio José Américo de Almeida Filho, o Almeidão, na cidade de João Pessoa. São nomes a mais para fixar de cor, mas esqueçam os nomes, o que interessa mesmo é Pelé. Nesse momento tinha somado o total de 998 golos e o Santos vencia por 2-0. Houve um penalti a favor do Santos e Pelé fez o golo n.º 999. Cabalístico, no mínimo. Então, Jair Estevão, o guarda-redes do Santos aleijou-se. Ou fingiu que se aleijou, a história está um bocado mal contada mas acaba da mesma maneira em cada uma das versões – Pelé fazia questão de marcar o golo mil no Maracanã e mais nada. Ora, Pelé era tão, mas tão bom goleiro, que nesse tempo de ainda não haver substituições, era ele que ia para a baliza. A malta que enchia o Almeidão não gostou e abriu as goelas. Tinham comprado bilhete convencidos de que iam ver o milésimo golo do Pelé e, de repente, o Pelé vai para a baliza, o mais longe possível da baliza do lado de lá. Diz a estatística que se eu comer um frango e o leitor não comer nenhum comemos meio frango cada um. Não se preocupe que não vou cobrar esse frango. Mas, por falar em frango, Pelé era um daqueles guarda-redes que não dava frangos. Aliás, a estatística também diz que Pelé foi à baliza em cinco jogos e nunca sofreu nenhum golo. A primeira vez, com 19 anos, já era campeão do mundo e tudo, foi chamado para fazer de goleiro no Campeonato Paulista, frente ao Comercial. Já tinha marcado dois golos, estava satisfeito, substituiu o seu colega que já tinha sofrido dois. O resultado ficou em 4-2. Depois, cinco anos mais tarde, foi para a baliza contra o Grêmio, num jogo para a Taça do Brasil. Estava 4-3 para o Santos, com três golos de Pelé, e vai daí e ele defendeu tudo o que havia para defender. Outra vez, numa digressão por África, na Nigéria, os dirigentes do adversário pediram se Pelé podia jogar a primeira parte no ataque e a segunda parte debaixo do poste. Pelé fez-lhes a vontade, mas não deixou ninguém com a alegria de fazer um golinho que fosse. Pelo caminho, lá fez o seu milésimo golo, num Maracanã ajoujado, frente ao Vasco da Gama, de penalti. Foi um penalti meio frouxo mas a bola entrou e o guarda-redes do Vasco, o argentino Edgardo Norberto Andrada, ficou furioso e desabafou com um amigo jornalista: «Como goleiro, não gostei de ter levado o milésimo gol do Pelé. Ia contra os meus princípios». Depois pensou melhor e riu-se: «Por outro lado, se não tivesse sofrido aquele gol, hoje não estaria dando esta entrevista». Já o nosso Edson Arantes do Nascimento tinha outro tipo de princípios que não os de Andrada. Se jogava na frente marcava golos; se jogava na baliza recusava-se a sofrer golos. Fazia sentido. Zaluar, por seu lado, era um tipo atarracado que defendia a baliza do Corinthians de Santo André. No dia 7 de setembro de 1956, no Estádio Américo Guazelli, o Santos fez o que quis da defesa do Corinthians. Zaluar estava furioso. Já tinha sofrido seis golos. Então Pelé, que só tinha 15 anos, entrou para o lugar do veterano Del Vecchio. Seis minutos depois, passou a bola por cima do central Schank e por entre as pernas de Zaluar que ficou mais bera ainda. Com o tempo passou-lhe o amuo. Chegou a fazer cartões de visita dizendo: «Zaluar Torres Rodrigues, goleiro do 1.º gol de Pelé». A última vez que Pelé foi à baliza já estava no Cosmos de Nova Iorque e defrontou o Baltimore Bays. Marcou um golo e aos 73 minutos passou a guarda-redes. Nunca ninguém conseguiu fazer um cartão dizendo: «Fui o 1.º a fazer um golo a Pelé». Ele não estava para brincadeiras lá na sua grande-área. Nem na dos outros…