Paul Auster (1947-2024). Tabaco para aspirantes a escritor

O autor de bestsellers que se inscrevem num pós-modernismo às três pancadas, como “A Trilogia de Nova Iorque”, “Palácio da Lua” e “O Livro das Ilusões”, morreu na terça-feira, aos 77 anos, vítima de cancro.

Paul Auster foi uma grande marca literária, uma das últimas que concentrou um apelo e alcançou uma expressão internacional, oferecendo um produto confiável, ainda que de segunda categoria. Um crítico que, a dada altura, submeteu a sua obra a um exame rigoroso, e que destroçou de vez o seu mito, notou como a generalidade dos seus romances se apoiam numa mesma fórmula, que designou sardonicamente como l’eau d’Auster. Ou seja, a sedução era a de uma subtil fragrância, uma água de colónia. Trata-se de congeminar uma síntese a partir de lugares comuns e produzir um sucedâneo para as grandes e infaustas explorações literárias, de modo a que aqueles que preferem o cinema americano não se sintam excluídos dessa outra trama. Num sublinhado que fez de Bataille num dos seus ensaios, Auster apontava para a força instabilizadora da literatura, adiantando que esta não se oferece num registo contínuo, mas como uma série de deslocações. Assim, os livros que mais nos dizem acabam por ser esses que seguem na direcção contrária à ideia de literatura que prevalecia no momento em que foram escritos. “Bataille fala nesse ‘momento de fúria’ como a ignição que está presente em todas as grandes obras, adiantando que este não resulta de um mero empenho ou voluntarismo, uma vez que a sua origem está num plano extra-literário. ‘Porque é que haveríamos de nos demorar’, pergunta ele, ‘em livros que não nos parece que o autor se tenha sentido obrigado a escrever?’” No fundo, Auster nunca foi outra coisa senão esse empenho em construir uma obra, captando em segunda mão uma vaga essência a partir das obras desses poetas que viram a sua lenda afiada a partir de experiências de desolação muito particulares, seres que levaram as suas investigações sobre o desastre até ao limite, existências em carne viva, e ele captura tudo isso numa fragrância, com a vantagem de não provocar qualquer tipo de repulsa. Isto permite-lhe flirtar com a tragédia sem ficar refém desta, entregando as suas obras a esse consumo delirante e presunçoso dos turistas culturais. Tendo sido um prolífico romancista, foi sobretudo no ensaio que revelou a sua desenvoltura nessas visitas aos quartos fundos como crateras onde se encontram algumas das mais improváveis matérias da literatura. Como um diligente estudante que vai tomando notas, Auster soube fazer da sua obra um observatório e uma fórmula que captura certos tiques e variações entre o abate irónico que distingue a relação pós-modernista, e assim pôde cativar uma vasta audiência, gozando de um estatuto de celebridade nos anos 80. Ele encarnou o charme e uma certa ideia de vitalidade cosmopolita, tendo-se destacado entre a geração dos escritores que fizeram de Nova-Iorque a sede dessa operação com vista a produzir um olhar que tudo amalgama na sua melancolia. Se levarmos em conta o ponto de vista triunfante do leitor medíocre e confortavelmente genérico que gosta de alinhar com as tendências, Paul Auster era um escritor de primeira grandeza. Como assinala o obituário do The New York Times, com aqueles olhos entrincheirados, um perfil pesaroso e elegante, basta uma consulta pelas tantas fotografias que lhe foram tiradas para perceber a forma como ele encarnava idealmente a imagem que se tem geralmente do escritor, parecendo menos o artigo original do que o actor escolhido para o representar num filme. Tantas vezes era referido como uma “superestrela literária”, mas já sabemos como as modas acabam por ser cruéis, e a sua morte aos 77 anos surge numa altura em que mesmo esses que cresceram ansiando por se fazer escritores, e que se enfiaram num avião para ir colher alguma da mística nova-iorquina, hoje reconhecem que Auster já só se aguenta enquanto uma emulsão nostálgica.

Para um descritivo dos elementos invariáveis da sua ficção, vale a pena relembrar algumas passagens da crítica de James Wood, que apareceu em 2009 nas páginas da revista The New Yorker, e que deixou claro que aquele lote não podia já sobreviver às pressões do multiculturalismo que, a partir de agora, era um elemento crucial para fazer sintetizar o exotismo que se esperava que a literatura oferecesse aos conscienciosos leitores no novo século. Wood notava como nos romances de Auster o protagonista, quase sempre um homem, e normalmente um escritor ou um intelectual, leva uma existência monástica, acariciando alguma perda ou tragédia pessoal. “Acidentes de ordem violenta perfuram as narrativas, tanto como forma de insistir na contingência da vida como num estratagema para capturar o leitor”, isto através de quadros dramáticos que se adequam ao regime do thriller, seja seguindo os passos de uma mulher que dá por si capturada e esquartejada num campo de concentração alemão, um homem decapitado no Iraque, uma mulher espancada brutalmente pelo homem com quem se preparava para ter sexo, um rapaz mantido num quarto escuro ao longo de nove anos e alvo de regulares castigos corporais, uma mulher acidentalmente atingida por um disparo no olho, e assim sucessivamente. “As narrativas parecem progredir de acordo com uma engrenagem que gera quadros realistas, não fosse uma certa leviandade que lhes retira convicção e uma atmosfera geral de um filme manhoso”, refere Wood. Depois há normalmente essa tentação de recorrer a algum texto ou obra de outro autor – seja Chateaubriand, Rousseau, Hawthorne, Poe, Beckett – o que vai invadindo de forma sugestiva o enredo, e é nestes momentos que Auster revela alguma sofisticação, à semelhança do que vão fazendo tantos desses escritores que entretecem os seus apontamentos, a sua marginália, sob a forma de ficção autónomas, daí todo esse quadro de espectros, duplos, alter egos, doppelgangers, e as aparições de um tal de Paul Auster. São esses truques que passámos a associar ao quadro referencial das composições pós-modernas e que, em tempos, pareciam engenhosos e cativantes, mas que, passados três ou quatro décadas, mesmo quando podemos reconhecer-lhes uma certa mestria, enfadam-nos como números de malabarismo. Mas o pior é mesmo a prosa de Auster, quase sempre roçando o desleixo, dando a sensação de que resultou de uma encomenda, e abusando de todo o tipo de clichés. Neste universo abundam as frases feitas, aquela marca de água dos enredos produzidos nas oficinas de escrita criativa, e mesmo se Auster gosta de copiar à vista certos elementos das grandes obras literárias, as suas narrativas são concebidas para uma leitura compulsiva, e em vez de termos a sensação de corresponderem àquele ideal de uma necessidade absoluta, de um modo de sobrevivência, o que nos parece é que estamos diante de um repertório. Os romances tornam-se envolventes pela forma como precipitam o leitor, como o fazem ‘ver a acção’, tantas recorrendo aos dispositivos cinematográficos, com uma gramática meramente competente, e introduzindo sempre essas reviravoltas e sobressaltos ou violentas irrupções próprias de uma fita hollywoodesca. “Não há obstáculos de ordem semântica, dificuldades lexicais ou sintácticas”, vinca Wood. Os livros parecem ir-se desenrolando como quem improvisa um assobio à margem de uma composição clássica, insistindo nos pontos mais reconhecíveis e tomando balanço para cumprir certos desvios, e tudo soa, sustenta o regime da passada e uma ideia de harmonia entre o caos urbano. Contudo, e apesar da lucidez do seu sombreado, a estrutura narrativa oferece-se margem para encadear todo o tipo de situações no sentido de promover aquele engodo que mantém o leitor refém, e aqui percebe-se a descolagem face a qualquer intuito sério de investigar a composição da própria realidade. E vale a pena retomar outra das citações a que Auster recorre num dos seus ensaios, referindo uma nota de Meyer Schapiro a propósito da noção de realismo que se respira na obra de Van Gogh. “Não me refiro a esse realismo que é tido como repugnante, essa estreita noção que hoje se vulgarizou, mas sim o sentimento que sentimos de que a realidade exterior é o objecto de um desejo profundo ou de uma necessidade, como uma possessão e um meio de se corresponder com esses anseios decisivos à noção de si, e que por isso estabelecem o espaço exemplar no qual a arte emerge.”

Retomando a leitura crítica de Wood, que logo no título nos fala de “túmulos pouco profundos”, em referência às personagens que Auster insufla para os propósitos daquela sua acidentada dramaturgia, aquele leitor diz-nos que o problema passa precisamente pela sensação de que aquilo que motiva as figuras que comparecem nesta obra é apenas de ordem reflexa face à acção. Ou seja, ninguém ali parece realmente existir, mas são apenas personagens à boleia de uma narrativa, e que se dissolvem mal esta cumpre a sua função. “Auster é um contador de histórias cativante, mas as suas histórias são asserções e não formas de persuasão”, diz-nos Wood. “Estas declaram-se a si mesmas, perseguindo a revelação que se segue. E uma vez que nada é orquestrado de forma persuasiva, a inevitável desconstrução pós-moderna acaba por ser de algum modo indolor. (Além de que consegue ser muitas vezes irritantemente explícita, sendo soletrada em letras garrafais.) A presença falha no momento de ceder a uma ausência impressiva, porque a presença não foi verdadeiramente tocante. Este é o fosso que separa Auster de romancistas como José Saramago, ou o Philip Roth de O Escritor Fantasma. O realismo de Saramago surge como que arrepiado por uma boa dose de cepticismo, e por isso o seu cepticismo parece-nos verdadeiro. Já na narrativa de Roth o elemento lúdico desta emerge naturalmente a partir da sua atenção ao lado irónico ou ao elemento cómico presente nas mais comuns atitudes humanas. Estes autores não nos entregam representações da vida enquanto quadros alegóricos que se adequam ao regime da mimesis, ainda que possam assumir essa condição alegórica. Tanto Saramago como Roth montam e desmontam as suas histórias de formas que nos parecem ganhar uma tonalidade realmente grave. Apesar de todas os seus jogos, Auster é o menos irónicos dos escritores contemporâneos.”

Sendo um nativo de New Jersey, este escritor parece ter-se tornado um elemento tão natural da cidade que adoptou que nenhum postal nova-iorquino parece estar completo sem que um duplo seu surja encostado a alguma esquina a conjurar com um cigarro uma dessas nuvens que testemunham o peso da interioridade de qualquer ser adaptado aos ritmos da mais icónica de todas as grandes metrópoles. Uma verdadeira homenagem a Auster seria dar o seu nome a uma marca de tabaco que se vendesse exclusivamente a quem frequentasse os cafés de Brooklyn. Esta zona para onde ele se mudou na década de 80, com aquelas ruas ladeadas de carvalhos e os prédios castanhos do bairro de Park Slope, acabou por tornar-se um dos personagens da sua obra, e no verso do postal poderá sempre ler-se essa citação decisiva e que ainda hoje atrai os aspirantes que buscam ali um impulso para as suas futuras proezas em letra de forma: “Andava à procura de um sítio sossegado para morrer. Alguém me recomendou Brooklyn.”

E, no entanto, Auster foi bem mais do que uma dessas figuras excêntricas do folclore local, tendo a sua obra alcançado uma irradiação estupenda, tornando-se um bestseller em Paris, onde viveu alguns anos na juventude, em Londres e em outras capitais europeias, e pelo mundo fora, sendo hoje quase impossível passar pelos alfarrabistas sem nos depararmos com uma infinidade de exemplares da sua Trilogia de Nova Iorque, Palácio da Lua, Mr. Vertigo, O Livro das Ilusões, Leviathan ou outro dos seus tantos títulos. Entre aquela década e a primeira deste século, a literatura perdeu muito do prestígio de que gozava então, e o género de fantasias escapistas ou de nevróticos enredos produzindo incessantes análises históricas tomaram conta, num momento em que só toda a arte é uma forma de medicação, seja como distracção ou compulsão. Neste quadro, aqueles volumes que iam saindo todos os anos, esses livros em edições bastante sóbrias, levezinhas, com a sua prosa ordeira, bem pontuada, e que mesmo quando relatava uns disparates e dramas alucinados, conseguia sempre dar uma sensação de que estava tudo bem, pois tudo podia ser moldado e compreendido nuns quantos parágrafos, todo esse quadro solene e ritual da prosa de ficção que fazia os seus leitores sentirem-se parte de uma elite conscienciosa, tudo isso ardeu. Havia uma certa segurança e tranquilidade naquela prosa, na sua narrativa fracturada, nesses narradores pouco fiáveis e que iam submetendo tudo, incluindo a noção de identidade, a um efeito de estremecimento, e mesmo se podia relatar as coisas mais devastadoras, pela forma como tudo surgia modulado, fácil de entender, conseguia fazê-lo transmitindo essa segurança e tranquilidade. A simplicidade era o calmante com que nos compensava dos abusos da realidade. No fundo, as suas ficções eram postais que nos chegavam de um lugar onde se vai para morrer. Mas agora que Paul Auster sucumbiu por fim ao cancro que há vários anos o afligia fica claro que a ilusão que ele soube produzir há muito se perdera.