Literatura de Centro Comercial

Uma forma mais penetrante de observar sintomas da coisa literária em autores sujeitos ao engodo publicitário é ignorar os romances e olhar para outro tipo de textos, mais pequenos, onde as intenções estão mais à flor da pele.

Uma parábola sobre os tempos do fim dizia que, depois da chegada do Messias, o mundo seria como é agora, só que um pouco diferente. O tempo que nos coube em sorte – poderíamos chamar-lhe de capitalismo tardio, mas isso continua a ser uma terminologia obscura – gosta muito de encenar o mundo tal como é, mas apenas um pouco diferente: a humanidade redimida, triunfante e apoteótica, num espaço concentracionário como a Disneyland (onde toda a história mundial, incluindo aí todas as espécies que ocupam o planeta, comparece, dança e se celebra a si própria), um certo cinema norte-americano, que não deixa de nos mostrar que não existe nada que escape à sociedade (não há exterior, nem mesmo o grande criminoso escapa à reafirmação dos valores) ou  o espaço asséptico do centro comercial, onde todos os produtos dos lugares mais distantes do mundo se reúnem em cores e luz e tudo se encontra à mão de semear – tirando esse pequeno pormenor, cheio de subtilezas teológicas, do capital. Em todos estes casos, é a redenção, sob uma forma secularizada, que encontramos, uma utopia concreta onde se consegue ver em actuação um desejo bastante terreno.

Algo de semelhante acontece no espaço restrito da literatura, que viu nascer, nos últimos anos, uma nova figura, que vai muito além de qualquer análise meramente literária, de qualquer análise que diga apenas respeito à relação com o texto – o livro, aliás, tornou-se um fenómeno bastante secundário. Encontramos aqueles casos, como o de Matilde Campilho, em que já não é sequer necessário escrever o que quer que seja para ir ocupando o espaço público literário (a escrita, neste caso em concreto, devia permanecer em estado de pura potência, de promessa constantemente adiada), encontramos um outro subconjunto de argumentistas que se tornam críticos e, posteriormente, escritores, sem nunca deixarem de escrever argumentos para telenovelas e séries americanas, ora dando-se ares exóticos e actuais, como Ana Bárbara Pedrosa, ora cheios de autocomiseração sob a forma de olhar vagamente irónico, como João Pedro Vala; ou, então, encontramos casos onde a celebração ocupa a própria matéria literária, como se fossem escritos, já não para a recensão (sempre superlativamente afirmativa), mas para as múltiplas festas de lançamento, como Rui Couceiro, por exemplo, comparado a Juan Rulfo, García Márquez e – porque não? – Homero, ou Anabela Mota Ribeiro. Em todos estes casos, bastante diferentes entre si, sem dúvida, o que encontramos é a literatura tal como sempre foi, mas apenas um pouco diferente – e até os velhos e arcaicos modos de mediação, a crítica literária e a universidade, foram arregimentadas para esta estado apoteótico. Podemos chamar, a toda esta figura nova que foi surgindo nos últimos decénios, de “literatura de centro comercial” (não confundir com literatura de aeroporto, bastante mais despretensiosa na sua pobreza).

Um espécime bastante interessante desta nova literatura de centro comercial, cheia de amor à coisa literária e carregada de boas intenções (mas lá dizia o outro senhor que não se fazem livros com bons sentimentos), é Afonso Reis Cabral, que já fez uma série de coisas, inclusive escrever uns livros, um deles provando, aliás, que uma página do Correio da Manhã vale mais que muito do que passa por literatura portuguesa contemporânea. E antes que o rubor se instale, é preciso lembrar que há toda uma tradição venerável que olha para fenómenos como o Correio da Manhã, cuja prosa seca, pouco dada a malabarismos psicológicos e profundidades existenciais, estabelece um domínio onde a história humana se cruza incessantemente com a história natural, a partir de um ponto de vista onde o que conta é a rarefacção e não a tagarelice incessante do romance de centro comercial, com o seu gosto por escrever bem – seja lá o que isso for -, pelo estilo – seja lá o que isso for –  e por compreender aquelas palavras vazias, como Humanidade e Homem, com que se é diariamente massacrado pelas boas consciências (para o Correio da Manhã, pelo contrário, um terramoto está ao mesmo nível que o mais macabro assassinato, ambos desprovidos de causalidade psicológica, ambos reduzidos à mera contabilidade e ao gesto sem sentido. Toda a sua prosa cristais literários).

Mas uma forma mais interessante de observar sintomas da coisa literária como Afonso Reis Cabral é ignorar os romances (que não deixam de cumprir as regras e os protocolos dos cursos de escrita criativa) e olhar para outro tipo de textos – mais pequenos, onde as intenções estão mais à flor da pele. Um desses, especialmente engraçado, é um pequeno texto cujo título é “Razões para abandonar um livro” e onde nos deparamos com a biblioteca enquanto tema vagamente literário (há toda uma tradição sobre isso, que passa necessariamente pelo mais que conhecido Warburg, do qual, diga-se, já estamos todos um bocadinho fartos). E ficamos a saber, logo de início, que Afonso Reis Cabral tem livros em número suficiente para constituírem uma biblioteca e que, invariavelmente, quem os vê pergunta se ele já os leu a todos. A pergunta, inenarrável de tão néscia e que devia levar Afonso Reis Cabral a pensar bem sobre quem recebe em casa, poderia ser respondida da forma bem-humorada com que Jacques Derrida respondeu a semelhante pergunta inane: só um, mas muito bem. Mas Afonso Reis Cabral, como aliás todos os burocratas da literatura, só pode levar uma pergunta dessas a sério, porque a própria literatura é séria e compromete toda a existência do escritor e do leitor (é a vida, mas apenas um pouco diferente). Eis então que explica que não, que não leu todos, mas que também os leu mais ou menos porque os viveu, o que é mais ou menos como ler, mas apenas um pouco diferente: eles foram “vistos, usados, manipulados, lidos, relidos, estragados, dobrados, estudados”. É uma vida fraca, que nunca chega a sair do literário, para quem a transgressão é estragar o livro. A poesia, neste caso, é para comer, mas a literatura de centro comercial, na ânsia de se celebrar enquanto literatura, aparentemente só come letras e palavras. Uma pobreza.

Mas continua, e agora em modo interioridade. É a biblioteca enquanto familiarismo: temos os livros que se aproximam uns dos outros por contágio, o amor (é incrível como nunca têm em casa livros que odeiam), “distante, mas contínuo”, e os “interesses passageiros”, presume-se que algo da ordem da paixão efémera, vagamente nostálgica, “anéis de um tronco, que assinalam o crescimento da árvore”. A passagem em questão faz lembrar a descrição que Walter Benjamin (outro nome que também salta em todos os lugares e a propósito de tudo) faz de uma casa burguesa de início de século XX, que está de tal forma atulhada de tralha, com o nome do proprietário inscrito em todo e qualquer objecto, que, se lá entrássemos, só poderíamos sonhar com uma vida sem vestígios, da mesma forma que perante a descrição de tanta familiaridade, de tanto amor e paixão sóbria pelos livros, se fica a invejar as casas que não contêm um único. O onanismo de índole familiar, que se vê constantemente a si mesmo e trata os livros como se fossem parentes (o Édipo é a épica pobre da burguesia, onde nem o desejo chega a sair da família), continua: afinal, quando observa os livros fica com a sensação de que se observa a si mesmo, chegando a descobrir que também ele, como a biblioteca, é um ser inacabado e que “terei sempre algo por descobrir”. Este tipo de sentimentalismo onanista e autocomplacente, que não consegue ir além da banalidade mais corriqueira que se encontra em qualquer programa de televisão (não é preciso uma biblioteca para se descobrir que se é um ser inacabado), é um dos lemas colocados no frontispício da literatura de centro comercial: o seu amor à literatura, à coisa literária em todas as suas dimensões, o familiarismo com que se instala no centro dos livros, contamina tudo. Ela é a auto-celebração da apotesose literária que é, agora, o mundo (para lembrar uma outra biblioteca, bastante mais interessante), mas apenas um pouco diferente.

Depois da família, os amigos. E Afonso Reis Cabral tem um, também ele escritor, como não podia deixar de ser, que “instituiu um sistema aleatório de sorteio de leituras: uma app gera um número que corresponde ao livro a ser lido. A aleatoriedade impede-o de se perder num ciclo de leituras aparentadas, num longo penar dos mesmos interesses.”. Alguém suficientemente maldoso poderia ver nesta figura um não muito digno sucessor de uma personagem construída por Jean-Paul Sartre em A Náusea, livro que fez sucesso, mas que felizmente hoje já ninguém lê (sublinhe-se o felizmente): o autodidacta, herdeiro da tradição humanista que contava ler todos os livros por ordem alfabética. Como Afonso Reis Cabral é moderno e digital, o amigo tem uma app para, no fim, poder exclamar a famosa frase de Terêncio e chegar exactamente ao mesmo lugar do autodidata: homo sum: humani nihil a me alienum puto. É Terêncio, sem dúvida, que coordena de longe essa app aleatória, mas com uma mistura de Bouvard et Pécuchet, na ânsia baixa de conseguir abarcar todos os assuntos, sem o humor desta conhecida dupla e sem a perversidade, infelizmente, da personagem de Sartre – que a boa consciência tenha fins perversos é o que torna interessante o autodidata e ridículo o amigo de Afonso Reis Cabral.

No entanto, não se fica por aí, porque “cada um não lê como quer, também”:

“Porque queremos reatar o livro que antes abandonámos. Porque a obra foi recomendada por um influencer como forma de atingirmos um espírito mais esclarecido. Porque já o lemos tal e qual noutro livro. Porque foi escrito por E. L. James ou autor semelhante. Porque ainda não estamos à altura do que podemos encontrar. Porque é a quarta vez que tentamos. Porque não vale a pena o sacrifício só para, tratando-se de um clássico, dizermos que o estamos a reler.As razões são infinitas como as bibliotecas. Mas a mais perfeita – aquela que num leitor veterano se tornou em intuição à custa de muita experiência – é que abandonamos um livro porque temos vontade de o abandonar.”

Esta retórica contra uma certa cultura do espectáculo, trai, na realidade, uma proximidade que Afonso Reis Cabral nunca poderá admitir (mas sabemos que também nos livros recomendados por um qualquer influencer somos confrontados pela descoberta completamente banal de que somos seres incompletos e inacabados). A atitude quixotesca contra E.L. James – quem lê este género de para-literatura não quer saber do que acha um escritor menor e medíocre de quem, felizmente, muito provavelmente nunca ouviu falar -, dando-se ares de grande defensor da cidadela literária, esconde uma dicotomia bafienta que se limita a dividir o campo literário entre Grande Literatura e Má Literatura. O burocrata é aquele que guarda, zelosamente, o posto fronteiriço.

A literatura de centro comercial está de tal forma imbuída de tradição literária – o que significa, também, de si mesma -, conhece tão bem o humano, que, assegura-nos, é sempre inacabado e interminável, dando-nos todas as suas variações (inclusive o mal!), está de tal forma à vontade dentro da sua biblioteca que a transgressão última, radical, o seu revolucionarismo conservador e burguês é, no limite, abandonar um livro “porque temos vontade de abandonar”. É a Grande Literatura, mas apenas um pouco diferente.