Beleza. Da Vénus do Paleolítico à ditadura das dietas

Como se foi moldando o ideal de beleza que vigora no Ocidente? O culto atual da magreza contrasta com as formas voluptuosas de tempos remotos.

O cabelo é ondulado, as ancas largas, os seios enormes. Mede uns meros 11 centímetros de altura e, ainda assim, constitui um verdadeiro paradigma de feminilidade.

Achada em 1908 por um arqueólogo austro-húngaro, a Vénus de Willendorf (aldeia da Baixa Áustria onde emergiu a estatueta) é uma das mais antigas representações humanas conhecidas. O nome que lhe foi atribuído configura, obviamente, um anacronismo grosseiro, uma vez que os homens do Paleolítico que produziram esta obra de arte estavam longe de sonhar com as divindades do panteão greco-romano. E o contraste com os padrões de beleza clássicos também não podia ser mais pronunciado. Olhando para a Afrodite (equivalente grego de Vénus) de Cnido, feita por Praxíteles no século IV a.C. e uma das estátuas mais célebres da Antiguidade, vemos uma mulher esguia, com curvas suaves e feições delicadas, enquanto a sua homóloga austríaca exibe carnes flácidas, formas avantajadas e não tem rosto. Mas também não surpreende que haja diferenças, e das grandes, entre a Afrodite grega e a Vénus paleolítica. Afinal, entre uma e outra passaram mais de 20 mil anos. Quanto à que melhor combina com a sensibilidade contemporânea, não resta sombra de dúvida.

Castigar o corpo No que respeita aos ideais de beleza, somos ainda filhos da civilização greco-romana, que nos legou estátuas de mármore de homens e mulheres (por vezes deuses e deusas), atléticos e bem-proporcionados, que continuam a parecer-nos perfeitos.

Claro que, ao longo dos séculos, o cânone tem sofrido alterações consoante os ventos que sopram em cada época. Se os gregos e romanos tinham o culto do corpo, que tentavam esculpir pelo exercício da mesma forma que o escultor trabalha o mármore, o Cristianismo trouxe consigo uma grande desconfiança pela dimensão física do ser humano. O corpo, para os pensadores cristãos, era o lugar onde residiam as paixões terrenas que conduziam ao pecado e rebaixavam o espírito. Era o lugar da gula, da preguiça, da luxúria e da vaidade. E, como tal, devia ser desprezado, se não mesmo castigado. S. Francisco de Assis, depois de renunciar aos bens do pai, fez para si uma túnica do tecido mais grosseiro que encontrou, para estar em permanente sacrifício. Muitos frades, durante e depois da sua vida, seguiriam o seu exemplo.

É também essa recusa da dimensão corpórea que leva os dois grandes poetas medievais italianos, Bocaccio e Dante, a descrever as suas musas, Laura e Beatriz, quase como puro espírito. Sem contornos bem definidos e certamente fora do alcance do toque.

Contemplar a nudez Com o Renascimento, que desponta na Itália do século XV, o ideal de beleza da Antiguidade clássica é recuperado – e com ele a sua dimensão carnal. Quando representa, n’O Nascimento de Vénus (1483), a deusa a sair da concha, Sandro Botticelli não se contenta com uma abstração e usa como modelo uma mulher de carne e osso, Simonetta Vespucci, considerada a maior beldade italiana do seu tempo.

A dimensão sensual, do pintor que se deleita a contemplar e a representar a nudez da mulher, continua pelos séculos fora.

O flamengo Peter Paul Rubens gostava delas mais rechonchudas – não ao ponto das estatuetas da fertilidade do Paleolítico, mas com uma abundância de carnes que faz torcer o nariz a muito boa gente.

O cadáver e a moribunda Enquanto Rubens, na primeira metade do século XVII, pintava mulheres rosadas e sadias, na França de oitocentos surge uma corrente oposta, o decadentismo, que exprime uma atração pela morte e pelo macabro. Charles Baudelaire publica em 1861 As flores do mal, livro em que se encontra o poema ‘Une charogne’ – que descreve um cadáver em putrefação.

Ao mesmo tempo, em muitas partes da Europa a pele bronzeada pelo sol é frequentemente conotada com o trabalho braçal nos campos. Em certos meios, a palidez mais doentia, aliada a uma magreza que é confundida com delicadeza, torna-se um fator de distinção. “E, como uma mulher moribunda que pálida/ e macilenta envolvida num véu/ diáfano sai vacilando do seu quarto…”, escrevia o poeta inglês Percy Bysshe Shelley em 1820.

O “Politeísmo da beleza” O ideal de beleza do mundo atual parece herdeiro destas várias tendências.

“Mae West e a graça anoréctica das últimas manequins, a Beleza negra de Naomi Campbell e a nórdica de Cláudia Schiffer, […] a mulher fatal de muitas transmissões televisivas ou de tanta publicidade e a rapariga água-e-sabão à Julia Roberts ou à Cameron Díaz, Rambo e Platinette, George Clooney do cabelo curto e os neo-cyborg que metalizam o rosto e transformam o cabelo numa floresta de picos coloridos ou que o cortam à máquina zero”, enumera Umberto Eco nas páginas finais da sua História da Beleza (ed. Difel). “O nosso explorador do futuro nunca poderá identificar o ideal estético difundido pelos mass media do século xx em diante. Deverá render-se perante a orgia da tolerância, diante do sincretismo total, do absoluto e imparável politeísmo da Beleza”.

Uma expressão curiosa: “politeísmo da beleza”. Em todo o caso, no Ocidente parece haver um denominador comum – pelo menos se atendermos aos cânones da moda, do cinema e da publicidade: uma certa obsessão pela magreza. Será exagero que vivemos na ditadura das dietas? Talvez por isso a Vénus de Willendorf choque tanto com os nossos padrões. Nos anos 60 e 70, as atrizes que faziam sucesso eram muitas vezes mulheres voluptuosas, mas em finais do século XX as modelos de uma magreza impossível começaram a impor a sua lei.

Porquê esta obsessão? Talvez seja um resultado da nossa sociedade da abundância. Onde há escassez, gordura é formosura, mas onde há abundância, o difícil é manter a linha. E o ideal de beleza é isso mesmo, um ideal. Ou seja, tem de ter o seu toque de artificialidade.