Roer o fruto da História até ao seu paradoxal caroço

Nascido em Moscovo, Wladimir Kaminer escapou à paranoia soviética, mas trouxe o seu sentido de escala e a ironia das gerações desgastadas pelos grandes mitos trágicos, e daí que a derrocada do Ocidente não deixe de lhe saber a um pequeno-almoço abundante com vista sobre o tal apocalipse

Contar histórias, abocanhar o mundo, isto não significa submeter a realidade a uma ordem do discurso imparável, a uma ficção que desmoraliza o próprio elemento paradoxal da existência. Cioran diz-nos que a certa altura a História morre porque já não tem paradoxo. E, no entanto, vemos essa espécie de infestação do novo espírito sobre os documentos do passado, a forma como se procura trazer tudo de novo à luz e sujeitá-lo a uma alucinação ideal, a esse efeito de revisionismo, que finge compreender melhor, mas que, na verdade, passa ao lado precisamente daquilo que dá substância aos grandes mitos. Vemo-los revirar as bibliotecas em busca dessas partes íntimas dos mitos, procurando exumar pequenos detalhes, produzir ficções ingénuas e pífias formas monstruosas a partir de cadáveres que, na sua substância, permanecem intocados. Esta fórmula tornou-se um dos grandes desígnios de uma certa literatura que obtém o favor dos leitores, talvez porque lhes vende uma ideia de que o segredo que estamos a perseguir diria o suficiente. Assim se prende o leitor, procurando superar outras distrações, enredando e envolvendo-o numa teia mais poderosa. Isto obriga a esforços absurdos, desde logo porque a tendência geral, como nos diz Wladimir Kaminer, é para cada um tomar como realidade os seus próprios sonhos, ilusões e fantasias, e vice-versa. “Bem vistas as coisas, aquilo a que chamamos realidade resulta das perceções absolutamente individuais dos nossos órgãos sensoriais – tal como as ilusões.” Há muito que se reconhece como a cotação da experiência baixou, abrindo caminho à desintegração da realidade, que, doravante, se adapta às imposturas que cada um carrega num esforço de adaptação a sociedades marcadas pela paranoia. Talvez por isso seja difícil encontrar aqueles que são capazes de converter a realidade que lhes é próxima, tão familiar, em algo que seja iluminador, e que possa escapar desse todo despropositado e que vai sendo salvo pela velocidade do naufrágio. Face ao mundo como ele hoje nos aparece, e isto quando sujeito a essa pobre articulação e à fraseologia dos órgãos que prometem divulgar factos, mas que nos soterram em narrativas bastante voláteis, percebe-se como elas mesmas respondem a esse naufrágio, a uma espécie de loucura que, à medida que nos submete à sua atração, parece que nos vai engolindo numa distração após a outra, incapaz já de reproduzir qualquer experiência. “Se não se consegue entender algo na vida real, ou se parece incompatível com o restante, declara-se sem mais delongas que se trata de uma ilusão”, nota Kaminer. “O tempo é uma ilusão, terá afirmado Albert Einstein. Também tomava a realidade por uma ilusão, mas especialmente obstinada.” Parece que, em alguma medida, se substituiu esta obstinação pelos próprios elementos paradoxais que nos oferecem um vislumbre da verdadeira trama que compõe a realidade. Não deixa de ser curioso notar como nessas concisas fórmulas através das quais uma geração procurava passar à outra uma certa experiência, nos provérbios ou nos contos morais, tantas vezes o que exprimem parece um contrassenso, um desafio à lógica. Como se a autoridade que só chega com a idade o que nos conferisse fosse uma capacidade de estar apto a abandonar as nossas expectativas e ilusões de forma a acolher uma lição de vida. Há muito Benjamin questionava-se: “Onde é que se encontram ainda pessoas capazes de contar uma história como deve ser? Haverá ainda moribundos que digam palavras tão perduráveis, que passam como um anel de geração em geração? Um provérbio serve hoje para alguma coisa? Quem é que ainda acha que pode lidar com a juventude invocando a sua experiência?”.

Wladimir Kaminer goza de uma tremenda vantagem de perspetiva enquanto contador de histórias. Nascido em Moscovo, em 1967, obteve formação em engenharia de som para o teatro e para a rádio, e é hoje um dos mais populares cronistas a escrever em alemão, tendo conseguido que a RDA lhe concedesse asilo humanitário (devido a uma norma que abria essa possibilidade para russos de origem judaica) e lhe desse um passaporte uns meses antes da queda do Muro. Com a reunificação, pôde manter a nacionalidade, mudou-se para Berlim já em 1990. Chegou à escrita de forma um tanto acidental, primeiro vieram as suas Russendisko, festas que animaram a vida noturna da capital alemã, em que Kaminer era o dj de serviço, e passava música que vinha do frio para descongelar os ossos, cativando outros exilados bem como a fauna local. A popularidade dessas festas abriu caminho para que assinasse na rádio um programa bastante popular, Wladimirs Welt [O Mundo de Wladimir], e é já neste século que começa a registar tantas das histórias e anedotas ou parábolas a que o seu acidentado percurso o preparou para compreender e atesourar. Há sem um elemento sinistramente burlesco nesses episódios que ele vai organizando como contas de um rosário profano, e pressentimos como a cultura e o humor, a couraça desses povos submetidos à absurdidade e à loucura sistemática do quadro soviético, tudo isso informa estas crónicas. Desde 2000, Kaminer publicou dezenas de volumes como este Pequeno-Almoço à Beira do Apocalipse, e antes da Zigurate, Carlos Vaz Marques já incluíra um dos seus livros na coleção de Viagens que coordena na Tinta-da-China, Viagem a Tralalá. Mas foi com o selo da Cavalo de Ferro, em 2003, que o autor se estreou entre nós, com Militärmusik, seguindo-se, dois anos mais tarde, Russendisko. Em vez de um tratamento de ordem noticiosa, ou de se servir das convenções da reportagem, Kaminer parece dedicar-se a estudar os elementos do paradoxo, e serve-se de uma ironia cáustica para retratar cenas de existências que tantas vezes parecem guinar neste ou naquele sentido apenas para servir de entretenimento a deuses chanfrados. Os emigrantes de Leste são muitas vezes os protagonistas das suas narrativas, falando-nos da adversidade e das desventuras dessas existências que trazem a herança de uma sabedoria obtida num universo sordidamente fabuloso e mergulham na realidade alemã, um tanto alheios e desinteressados do quadro dos valores e ilusões europeias. Com mão leve, com uma sábia e poética leveza de toque aliada a uma atração pelos elementos picarescos, Kaminer consegue captar nas suas crónicas algum desse resíduo das antigas parábolas, esse luxo de condensar o essencial do significado, desligado da sua épica integração no concreto histórico da realidade, humana, social e política. As suas crónicas são devaneios em que o intuito de Kaminer parece ser o de confrontar-se com a vazia insensatez que sorve a vida, captando-o esses elementos insólitos que configuram a realidade quotidiana, nas relações familiares e sociais, na História que há muito abdicou de fazer qualquer sentido. Um dos exemplos mais poderosos deste modo de submeter a exame a feição paradoxal da realidade surge em Viagem a Tralalá, quando lembra como para aqueles que vinham das sociedades da antiga União Soviética, a ideia de visitar outros países era a de participar numa verdadeira viagem temporal e entre dimensões, uma possibilidade de se aventurar e compreender esse fenómeno de contração e expansão dos sentidos obtido através do eixo das ilusões de cada sociedade, capazes de produzir um mundo à sua imagem. Paris surgia como um “quase inatingível paraíso” para estes nativos daqueles infernais labirintos burocráticos. É entre uma série de derivas, enquanto bebe cervejas em Berlim com um amigo e os dois gozam a perspetiva da sua liberdade de circulação como um incomensurável cardápio, que Kaminer conta como o seu tio Boris, depois de viver por uns anos deportado para uma colónia penal no Cazaquistão, mais tarde se viu reabilitado pelo regime, que agora já o exaltava como um herói do trabalho, e que, como prémio, lhe viu ser concedida a oportunidade de ir visitar “Paris”. Estamos no início da década de 70, e por essa altura, o governo soviético premiava “cem proletários, de entre os melhores”, todos membros do partido, naturalmente, com uma viagem ao estrangeiro. Com um horizonte bastante limitado no que toca ao que ficava para lá da terra-mãe, a cidade do amor e da Torre Eiffel dominava largamente as preferências. Mas para não permitir que os seus trabalhadores se perdessem realmente de amores, as autoridades decidiram que o melhor mesmo era condicionarem o próprio paraíso, e assim mandaram “construir o seu próprio estrangeiro nas estepes do Sul da Rússia (…). Durante o Verão, fazia de Paris. À chegada do Outono, quando as nuvens se juntavam e começava a chover, era rapidamente transformada em Londres. O objeto estava classificado como segredo de Estado, e só funcionários do KGB podiam viver e trabalhar lá com as suas famílias. Recebiam a instrução necessária ao desempenho das suas funções, e no Verão só conversavam em francês, no Outono em inglês.