Naquela segunda-feira, 19 de maio de 1954, na aldeia de Baleizão, freguesia do município de Beja, o sol de primavera dava uma estranha profundidade aos campos prontos para as ceifas. Às nove e picos da manhã, depois de várias balas cruzarem o espaço, Catarina Eufémia, à frente de um grupo de 14 ceifeiras, dá dois passos na direção do atirador.
Era um dia excecional, histórico, nada por aquelas bandas voltaria ao normal. Excecionalmente, também, José Adolfo Baleizão do Carmo, de oito meses, ia ao colo da mãe, enquanto o irmão António, mais velho três anos, era levado pela mão. «Eu estava agarrado ao pescoço de minha mãe e o tenente Carrajola levantou-me o corpo e deu-lhe três tiros à queima-roupa. Ela caiu, eu caí. Ainda fiquei com feridas na cabeça», diz hoje José – que na ginástica da vida cresceu com memórias emprestadas.
António vem em seu socorro. Durante muito tempo, a falta de recordações próprias povoaram-se das histórias do pai, avós, e do povo de Baleizão: «A minha mãe disse ao tenente que estava ali porque queria trabalhar para dar de comer aos filhos. Ele deu-lhe dois estalos na cara, apontou a arma e descarregou-a. O meu irmão cai e uma das outras ceifeiras apanha-o. A roupa que a minha mãe levava nesse dia, e que a minha avó guardou numa caixinha de papelão, ainda tem pólvora e o seu sangue agarrado. O vestido tem três furos. Por causa de um tostão, matou-se uma mãe de três filhos. E o assassino ainda veio dizer que tinha sido um acidente e safou-se sem ser condenado».
‘Eu estava a uns dez metros dela’
A história e a vida são um emaranhado de fios, nunca se sabe onde se cruzam. Francisco Costa, à beira de dobrar as 92 páginas de vida, é, de todas as testemunhas vivas daquela época, a única que assistiu à morte de Catarina. Sentado numa poltrona, com uma manta rosa a cobrir-lhe o corpo que tirita de febre, e a corrida das palavras entrecortadas pelo catarro da infeção pulmonar que o atormenta, pretende recorrer a todos os pormenores capazes de dar brilho, verosimilhança, àquele capítulo: «Eu trabalhava na propriedade onde ela foi morta. Ela e as outras ceifeiras que iam com ela estavam de greve. Eu estava a uns 10 metros dela. O Carrajola aproximou-se dela, ela dele. Primeiro ele deu-lhe um sopapo, o corpo dela rodou, a criança que tinha ao colo caiu, depois o assassino disparou. Depois, quando fui à GNR de Beja para ser ouvido, o comandante disse-me: ‘Mas ele disparou sem querer, não foi?’». Francisco engasga-se com a tosse, o olhar atiça-se como brasas: «E eu disse que vi o tenente chegar ao pé dela e dar-lhe os tiros! Não foi só um, foram vários. Ora, não foi sem querer, porra!».
O Alentejo, naquela época, era um caldeirão político em ebulição, em particular nas zonas a sul do Guadiana, onde o Partido Comunista Português, fortemente implantado, dava gás aos camponeses que viviam numa miséria medieval. Francisco partilha o ideal do partido desde os 16 anos. Datava também daí o conhecimento com António do Carmo e Catarina Eufémia: «Ela casou com o Carmona, era assim que o marido era conhecido. O pai dele era sapateiro da aldeia, também era comunista. Nessa altura éramos todos comunistas».
Catarina tem doze anos, o namorado dezoito
O romance entre os dois começara cedo. Catarina estava com doze anos, ele com 18. O amor surgia como uma revelação. Carmona sentiu-o na carne, como se sentem todas as paixões: «Comecei a enlevar-me nela, tinha físico, já com os peitos um pouco salientes, até parecia que tinha mais idade», foi ele escrevendo em pedacinhos de papel que sobreviveram à ação demolidora do tempo. Para a rapariguinha, que nessa idade apenas conhecia a aspereza dos trabalhos no campo, a afeição amorosa é recebida com uma grande carga de surpresa e começa por o ignorar. A ele e a outros três que também andavam a rondá-la.
O rapaz anda na monda. Trabalha do nascer do sol até ao astro estar por um fio. Era aí que corria para a fonte onde Catarina, de enfusa na anca, se ia abastecer de água. Durante meses, para consolidar a sua posição entre os outros candidatos, Carmona teimou nas esperas. Mas um dia, dirigiu-se mesmo a ela. Respeitosamente. «Eu sou um bocadinho mais velho do que a menina mas também não é assim tanta a diferença e a menina não quererá também um rapaz de 12 anos, estava-lhe até mal. Você é corpulenta, tem corpo, é linda e formosa. Eu estou interessado na vossa pessoa e seria um prazer para mim se também comigo simpatizasse. Sei que andam outros rapazes perseguindo-a e eu, certamente, continuarei no mesmo enquanto não souber definitivamente se simpatiza comigo e me quer para seu namorado e mais tarde esposo».
No dia seguinte, sem resposta à declaração, Carmona, como sempre, madruga para pegar no trabalho a uns quilómetros de marcha. Ali vivia-se abaixo da penúria. Vai acabrunhado, com o mal de amor. Mal chega à propriedade, junta-se ao rancho. De corrida, trata da ração para os animais, dá-lhes água e prende as parelhas aos carros que ele e os camaradas carregam de adubo e cereais para a sementeira. Chovia que Deus a dava. E ele, sem tostão para comprar manta de lã ou de ceifão, protege-se com a saca de serapilheira do adubo. Ao serviço do almoço, o patrão dá pão com azeitonas e três figos; ao serviço da ceia, um caldo de grão. Do pai recebera as primeiras lições de marxismo-leninismo, e encara a realidade em que vive como uma etapa passageira. Escreve: «Muitos pensavam que a vida tinha de ser assim mas eu não. Desde tenra idade que tinha um socialista em casa que era meu pai».
As primeiras células do Partido Comunista
Adolfo Baleizão, o progenitor do rapaz, era sapateiro e tinha uma pequena oficina. Nos anos vinte, com a fundação do PCP em Portugal, organizou as primeiras células do partido nas aldeias dos arredores. Conspirava-se pela calada, tentando não atrair a curiosidade. Mas em 1936 não escapa às malhas da polícia do Estado e grama dois anos nos calabouços do Aljube e do Forte de Peniche. Na curta biografia prisional, que hoje repousa na Torre do Tombo, fica a razão da condenação: «Por pertencer ao Partido Comunista de Baleizão.»
Com a família a cargo, António, um grão de gente, sentiu a opressão da fome, aquela que não deixa ninguém dormir. Anda a esmolar pelos montes. Entre as mulheres dos lavradores, sempre receosas do destino das suas almas, lá consegue um ou dois panitos com que a mãe faz as açordas que os aconchegam. No regresso pelos campos, o rapaz ainda apanha uns figos, uns tomates e umas bolotas que, cozidas, substituem os caldos de pão aguado. E disso tomou notas: «Quando a PIDE vai rabiscar a nossa casa a ver se encontravam matéria, panfletos subversivos, tínhamos mais de um alqueire de bolotas e os canalhas disseram: ‘Com que então têm bolotinha?’ E a minha mãe respondeu: ‘Pois. Temos de ir à bolota para não morrermos de fome’».
Catarina não tardou em ir na conversa do camponês que tinha mais palestra do que os outros rapazes. Passado pouco tempo sobre a última abordagem, Carmona sabe – caprichosamente, através de um dos outros candidatos que a moça rejeitara –, que era ele o eleito. No terreno sentimental, saia-lhe a sorte grande. Ao outro, a rapariguinha avisara: «Não se meta comigo, nem você nem nenhum, o meu namorado é o Carmona».
Na terra, a doutrina do partido é acolhida como mensagem dos profetas. António vivia o ideal romântico com abnegação, e, rapidamente, Catarina abre as comportas da mente às causas do namorado. Tinha, no entanto, um handicap: era analfabeta. Não aprendera a ler nem escrever. Algo que o namorado, com o tempo, pretendia corrigir. A 18 de Abril de 1944, Carmona escreve-lhe de uma das então colónias, para onde o serviço militar o tinha atirado: «Não digo mais porque não sabes ler nem escrever […]. Quando eu regressar e casarmos então vais aprender coisas que desconheces.» Logo de seguida, trata da correspondência com os pais, a quem avisa: «Eu tenho conhecimento que as cartas são censuradas. Em não agradando a conversa cortam a tinta encarnada, são os feitos da ditadura de Salazar.»
Marido de Catarina emprega-se como cantoneiro
No ano em que os Aliados punham termo ao ideário aberrante de Hitler, e Salazar, de forma irracional, se mantinha afastado do tecido europeu, Carmona e Catarina dão o nó. A arquitetura da sociedade portuguesa mantém-se inalterável. Na base da pirâmide cabia toda a gente, no topo a coisa era bem diferente. O atraso do país era politicamente voluntário. No Alentejo, os proprietários enriqueciam a bem ou a mal.
Carmona, para não se tornar numa réplica dos seus antepassados, arranja emprego como cantoneiro na Junta Autónoma das Estradas. O casal aluga um antigo celeiro em Quintos, aldeia com apenas duas ruas, a uns 10 quilómetros de Baleizão. O antigo camponês escapa dos ciclos da monda e das ceifas, passa a ganhar quinhentos escudos mensais, mas os filhos vão nascendo, e a vida ganha maior aperto: «A salvação de não passar fome era os cem escudos de cada filho que era o abono de família. Vivia-se mal, mas o dinheiro era certo. No trabalho da agricultura não havia abonos, foi mais por este motivo que fui para cantoneiro».
O homem mantém a mesma fidelidade ao partido e passa a ter como aliada a companheira que, ao contrário do mito que em torno dela se edificou, nunca chegou a ser militante. Era mais uma comunista platónica do que de ação. As reuniões conspirativas são feitas noite cerrada e apenas os homens correm o risco. O Camponês, um jornal clandestino editado pelo partido desde 1946, que tem como objetivo unificar a luta e estabelecer os cadernos reivindicativos dos trabalhadores rurais, é distribuído.
António recebe as publicações e panfletos, esconde-os debaixo do colchão, e é a mulher, que levantava menos suspeitas, quem os passa de mão em mão. Maria Catarina Baleizão do Carmo, a cara chapada da mãe, era, dos três filhos do casal, a mais velha. Hoje, aos 76 anos, o sentimento de amputação que desde pequena a acompanhou espalha-se no rosto quando empreende a viagem ao passado. «Lembro-me de ir, pelo lusco-fusco, com a minha mãe à fonte. Ela tinha os panfletos dentro duma bilha que levava ao quadril e dava-os às outras ceifeiras».
GNR: atuar com ‘cuidado’ mas ‘sem fraqueza’
A década de cinquenta foi atribulada naquelas paragens. Camponeses, fartos do entendimento da miséria como direito, rebelavam-se. Dias de greve geral e agitação feriam o regime salazarista. A GNR, a força policial implantada no interior, suja as mãos. A vigilância é total. Em 1954, Manuel António Xavier, chefe do posto da Guarda de Baleizão, já conhecia aquele povo como as linhas que se cruzam na palma da sua mão. Os camponeses saiam da atrofia coletiva que dominava o país – e o cabo, conforme testemunharia mais tarde, recebe ordens superiores para os manter sob apertada vigilância: «As ordens eram no sentido de comparecer em todos os lugares em que houvesse ajuntamentos e proceder sempre com o maior cuidado e prudência perante as atitudes do povo, mas sem fraqueza, para garantir a todo o custo a liberdade de trabalho a quem quisesse trabalhar».
Em março desse ano, O Camponês incita à revolta. Os salários tinham chegado a extremos intoleráveis e, na primeira página da publicação, as reivindicações por uma melhoria substantiva das condições de vida no campo são claras: os homens só deveriam aceitar trabalhar à jorna por cinquenta escudos, se fosse «a seco», e por quarenta, com «boa comida». Para as mulheres, a tabela é bastante inferior: trinta e dois escudos ou vinte e seis, conforme fosse ou não servida a refeição.
A luta do campesinato ganha fôlego, exige-se outro horário: «Enregar [pegar ao trabalho] com uma hora de sol, três horas e meia de descanso e cinco a seis fumaças, aguadas ou cigarros durante o dia. Um quartel ao sábado e outro à segunda-feira, com o salário por inteiro e sem prejuízo das horas de descanso».
Na segunda semana de maio, Catarina – que, com um filho de meses, tinha estado uma boa temporada longe dos trabalhos do campo – faz uma escolha. Não fora um gesto decidido sob o impulso do momento: a miséria e a dignidade tornavam-se de difícil conciliação. Mas o preço da decisão sair-lhe-á demasiado alto.
Na véspera da tragédia passa a noite a amassar pão
Reconstituir a história é como andar por gelo estaladiço. Um puzzle tem muitas peças – é preciso optar.
Nas vésperas da tragédia, Catarina passa a noite a amassar a pouca farinha de centeio que lhe resta. Na manhã seguinte, terá de ir deixar os filhos em casa dos pais em Baleizão, e pegar uma ceifa de favas nos arredores da sua aldeia para não chegar lá de mãos vazias.
Custódia Joaquina, talvez com 91 anos – pouco importa para ela nem interessa para o caso –, de corpo direito, foice na mão ágil, monda a nesga de terra que envolve a casa de um dos filhos, enquanto dá trela aos jornalistas. Segue a rota dos pensamentos que a atiram para muito longe. A fita do tempo suspende-se no dia em que, pela última vez, viu Catarina, sua vizinha: «Ela não tinha forno e foi à minha sogra com o panito num tabuleiro para cozer. O pão, nesse tempo, tinha de dar para a semana. Era até chegar à côdea! Depois abalou a pé com os três filhos por esses atalhos. Baleizão ainda ficava longe, a uns dez quilómetros! Nunca imaginei que aquilo fosse acontecer!».
No campo, a labuta não conhece fins-de-semana ou feriados. Quinta-feira, 15 de maio, Catarina, que integra um rancho de 14 mulheres, apresenta-se na propriedade de Fernando Nunes Ribeiro, um veterinário de Beja, dono de outras herdades na zona. Tudo fora previamente orquestrado. Bastava seguir o plano. Para não se denunciarem, agiam com descrição.
Na época das ceifas, os proprietários estavam mais dependentes da mão-de-obra. Se os trabalhos no campo falhassem, a seara queimava. A aldeia em peso está com as mulheres. Não seria ali que o patrão encontraria apoio se as negociações que levavam em mente falhassem. No sábado, ao terceiro dia de empreitada, finda a apanha da fava, Catarina, eleita porta-voz das ceifeiras, encosta o feitor à parede. Só voltariam ao trabalho se aumentassem a jorna dos vinte para os 32 escudos.
Mais tarde, nos autos do inquérito que irá abrir-se, o feitor confirmará esta versão: «Na véspera do dia em que se deu o acontecimento em Baleizão, a manajeira [mulher que dirigia a ceifa] o havia informado de que, se aparecesse na região trabalhadoras de fora, seriam corridas e levantadas do trabalho, porque o povo não consentiria que ninguém ali trabalhasse a não ser pelos preços que o povo de Baleizão queria».
Nunes Ribeiro, o patrão, dirá porém outra coisa nos mesmos autos: «Vi-me obrigado a deslocar mulheres que tinha no Monte Curral porque as trabalhadoras de Baleizão, e habituais da casa, se recusaram a trabalhar sem que fizessem qualquer exigência de salário, apesar dos esforços que fiz e dos recados que lhes enviei a perguntar quanto queriam ganhar».
Não queriam trabalhar pelo que lhes pagavam
A história desses tempos não se escreve por linhas direitas. É feita de omissões, mentiras, evidências muitas vezes montadas a posteriori, e outras, menos interessadas, mas que a química do tempo pode diluir. Na segunda-feira, com a greve a correr, as ceifeiras levantam-se de madrugada. Um pequeno proprietário da zona, que se encontrava hospitalizado em Lisboa, não tem como fazer a seara nesse ano e as ceifeiras partem para ajudar a família do doente.
Eram seis da manhã, mais coisa menos coisa, quando Catarina se junta às outras. Estava com 26 anos, mas já era uma ruína de gente, como revelaria a sua autópsia. A fraca alimentação e os esforços que a terra exigia tornaram-na subnutrida, debilitada. De rosto fino muito branco, quase translúcido, lábios miúdos, que o cabelo escuro realça, Catarina veste-se. Por cima da pele leva uma camisola do marido, um colete branco e umas meias de linha lilases. Sobre isto, coloca a combinação e uma saia branca. Por fim, um vestidinho de chita azul e um avental branco, onde, num dos bolsos, guarda os canudos de cana seca para proteção dos dedos na ceifa.
Manuel Xavier, o chefe do posto da GNR, cruza-se com ela à saída do povo. Desde as quatro da manhã que o cabo, discretamente, percorre a aldeia. Panfletos, colados nas paredes das casas caiadas, convidavam os camponeses à revolta. As notícias correm velozes, e o traquejo dizia-lhe o que iria passar-se: «Tinha a certeza que entre a população e os proprietários existia uma grande animosidade. Mesmo ódio. A agitação era motivada pelo facto de a população não querer trabalhar pelas importâncias que lhes estavam a pagar». E, não concordando os proprietários com as importâncias que lhes pediam, «transportariam para a povoação pessoal de outras localidades». E «haveria forte oposição e mesmo distúrbios» logo que esse pessoal chegasse ali «para trabalhar».
Cada aldeia tinha um ‘bufo’ ou mais
Duas horas depois, Xavier recebe um recado do plantão. Um soltado pedia-lhe que se deslocasse rapidamente ao posto. Cada aldeia tinha um ‘bufo’, ou mais. Um aldeão mete-o a par da intriga: «Disse-me que o povo se preparava para ir levantar umas mulheres de fora da povoação que estavam ceifando no Monte do Olival. Imediatamente, para lá me dirigi».
A novidade correra como pólvora trilhada pelo fogo. Às oito da manhã, as ceifeiras, inteiradas da manigância do patrão, regressam à aldeia. A reação é explosiva. Catarina volta a casa dos pais. Procura uma arma simbólica. Pega nos filhos mais pequenos e junta-se às camaradas, que fazem igual.
Baleizão enchera-se de uma vibração pouco usual. Na retaguarda das mulheres, unidas pela lealdade de classe, seguem cerca de três mil pessoas. A aldeia em peso. O feitor foi o primeiro a avistá-las, rente à estrada onde confina a herdade. A história pode ser contada como uma inspiração de momento. Artur Bagulho, o feitor, relata: «As mulheres à frente gritavam: ‘Fora putas, fora maganas, que isto é nosso!’ Pelo menos uma trazia uma foice. Ouvi na aldeia dizerem que era intenção delas cortar as goelas às outras».
José Joaquim Vedor – motorista do dono do Monte do Olival, e quem por ele fazia os pagamentos aos trabalhadores – fora nessa madrugada de furgoneta buscar a outra herdade do patrão, no conselho de Beja, quinze trabalhadoras para substituírem as grevistas. E quando vê o grupo de Catarina chegar, tem a visão da tragédia: «Elas entraram gritando, ameaçando todo o pessoal presente, ainda me empurraram e apertaram o pescoço».
Os momentos decisivos
Francisco Costa, passados quase setenta anos, coloca o cérebro a funcionar a uma velocidade vertiginosa. Tem todo o empenho em corrigir a história, até porque, na altura, lhe pediram para mentir. Não sabia ler nem escrever, mas sabe o que disse. Se ficou escrito, é outra conversa. Porque o inquérito não espelha com rigor o que se disse, e os depoimentos contêm descrições que parecem cópias umas das outras.
A tosse não lhe dá tréguas. Francisco tenta vencê-la, enquanto pedaços inteiros do passado saem da toca das suas memórias. O relato encaminha-se para uma compreensão possível: «Chegou a altura da ceifa e as mulheres aqui da aldeia começaram a ceifar mas fizeram uma greve. Queriam mais dinheiro. E o Vedor, que era de Beja, monta-se no jipe, e vai buscar a Penedo Gordo meia dúzia de mulheres para acabarem de ceifar as favas. E as mulheres aqui da terra foram ao pé das outras e disseram: ‘Se vocês vêm ganhar mais dinheiro está certo, mas se vêm ganhar o mesmo não há direito de tirarem o trabalho à gente!’ Falaram bem».
O relato completa-se no testemunho de uma dessas ceifeiras. Maria Ernestina Serafim era apenas uma rapariguita de 15 anos quando foi empurrada para aquele palco. Eram 8h30, quando chegou com as outras mulheres: «Vi o povo de Baleizão todo revoltado a invadir a propriedade. Não queriam que trabalhássemos sem ser pelo preço que eles estavam a pedir. Apanhei muito medo e, com os outros, escondi-me na casa do monte».
Manuel Xavier, o cabo da GNR que adivinhara que isto podia acontecer, chegou ao local num pulo: «Com bastante esforço, consegui a tempo acalmar e dispersá-los, pouco a pouco, para fora da propriedade». Mas mal o cabo vira costas, Vedor toma as rédeas da situação. O homem pertencia a uma classe de gente servil, sempre à coca de uma oportunidade para furar na vida. Mete-se no carro e galga a Beja, para avisar o patrão. Este, na excitação de manter as suas prerrogativas, prepara-se num instante e parte para Baleizão. Mas, temente a Deus e ao canastro, incumbe o motorista de avisar o comandante da GNR de Beja.
Patrão tentou deitar água na fervura
A partir deste momento, a narrativa assume a perspetiva do auto de notícias assinado nesse dia pelo tenente João Carrajola, que, a seguir à conversa com Vedor, segue para o local: «Uma vez ali chegado, deparei com algumas pessoas na estrada, contidas pelo pessoal do subposto local, com as ceifeiras paralisadas e em casa, e com a propriedade limpa de rebeldes».
Carrajola, 53 anos, tinha um físico peculiar. Era ruivo, sardento, e as pernas demasiado altas e finas pareciam adiantar-se ao resto do corpo. Do topo da propriedade ao local onde o povo permanecia distam uns seiscentos metros. Observado o terreno, ordena aos três praças que o acompanham que desçam e instalem a metralhadora ligeira da guarnição atrás da linha da estrada – onde, Manuel Xavier, com dois praças, estão de atalaia.
A intuição popular fareja que algo de irregular está para acontecer. No tom gélido que costuma anteceder o combate, o tenente diz ao proprietário: «Ordene às ceifeiras que retomem o trabalho!». Nunes Ribeiro tem pela frente um levantamento popular e receia pela sua pele: «Ó senhor tenente, isto está a tomar mau aspeto. Prefiro perder a seara da fava a ter de mandar de novo as mulheres ceifarem, tenho medo que se dê uma desgraça». Mas era nestas arenas que o militar se sentia realizado: «O senhor tenha paciência mas uma vez que requisitou a Guarda, tem aqui de ser garantida a liberdade de trabalho».
Mal as mulheres regressam à faina, o povo de Baleizão invade a propriedade. Através da grande angular do tenente, a coisa é feia: «Sem que fosse possível evitar-se, constituíram dois importantes grupos distintos e distanciados cerca de quarenta metros, que se deslocaram em gritaria ensurdecedora em direção às ceifeiras».
Quase sem fôlego, Carrajola continua a cinematográfica descrição: «O grupo da frente, constituído por mulheres que, desgrenhadas, de braços no ar, em atitude agressiva, algumas com filhos de tenra idade que elevavam acima da cabeça, não paravam na sua tresloucada marcha, seguidas pelo grupo dos homens». Para o feitor, o momento tem a mesma carga apocalíptica: «O povo tornou a invadir a propriedade gritando de tal maneira e fazendo gestos que pareciam pretos selvagens, tal como vi na fita Gungunhana».
Catarina vinha à frente do grupo
Francisco, que parece ter assistido a outro filme, num golpe de memória do presente para o passado arruma a história: «A Catarina Eufémia vinha à frente, mas vinham muitas famílias atrás dela que gritavam: ‘Paz, paz’. Só queriam falar com o patrão. Mas o Carrajola deixou passar três ou quatro, para ir atender o que é que queriam. O Dr. Nunes Ribeiro queria que as outras mulheres de fora se fossem embora. E o Carrajola disse-lhe: ‘Doutor, aqui não vai ninguém embora, para o povo de Baleizão não achar que tivemos medo das mulheres’».
Catarina, com o filho ao colo, ergue-o, enquanto avança: «Queremos pão para os nossos filhos!». O militar sente a afronta como uma humilhação: «A onda de aspeto revolucionário continua crescendo na minha direção e depois de várias intimidações para que parassem e nada ter conseguido, apontei-lhes a pistola-metralhadora». E continua: «Todas essas tentativas foram vãs, e quando já se encontravam a cerca de cinquenta metros fiz umas rajadas de tiros para o ar na direção do grupo».
Catarina, de género voluntarioso, mantém o sangue-frio. Concertadamente, os homens, para darem voz às grevistas, permaneciam na retaguarda; mais recuada ainda, e contida pelos praças, o resto da população. O tenente exercita o seu poder perante um adversário em clara desvantagem: «As mulheres continuaram avançando, até que uma delas, a uns três metros de distância de mim, coloca o filho, que até ai trouxera à sua frente, e eleva-o acima da cabeça rugindo-me raivosamente, e repetidas vezes, que o mate. Foi o momento crítico».
Ao tenente, com 33 anos de serviço, diploma de mestre atirador militar, naquele momento – a acreditar nas suas palavras – falhou-lhe a experiência: «Adiantei-me mais uns dois passos, segurei a pistola-metralhadora com a mão esquerda e, com a direita, pretendi agredi-la com uma bofetada. Mas ela, num natural movimento de defesa, voltou-me as costas. Ato contínuo, segurando a arma com ambas as mãos, dei-lhe uma pontuada, momento em que, inesperada e involuntariamente, a arma, não sei se pelo mau funcionamento, se por o gatilho se prender em qualquer peça do uniforme ou do cinturão, disparou».
Catarina resiste. A agressão fizera-a tombar. Ergue-se para apanhar o filho que caíra com ela e, no restolho das favas, chora. Mas é empurrada. O tenente, numa rajada, despeja o resto do carregador. O impacto de quatro balas na zona do tórax provoca-lhe lesões catastróficas. Em segundos, esvai-se em sangue.
Autor dos tiros diz-se ‘perplexo’
O passado tem o seu secretismo. Para evitar outra catástrofe, e amainar a fúria do povo, espalha-se que a ceifeira está apenas ferida. No carro de Nunes Ribeiro, o corpo segue para o Hospital da Santa Casa da Misericórdia sem qualquer impedimento do povo que, na estrada, abre alas. Carrajola escreve a história da forma conveniente: «Conduzida em automóvel ao hospital civil de Beja faleceu ao ali chegar. Em presença deste lamentável acidente, que me deixou perplexo, os amotinados pararam e lentamente foram saindo da propriedade».
E há pedaços da história que forçosamente tinham de ser baralhados. A defesa do homem que matara a ceifeira começava a ser urdida. Das 18 testemunhas presentes – com exceção das ceifeiras do rancho da vítima, que nesse dia foram detidas sem que alguma vez fossem chamadas a depor –, do patrão aos empregados e praças da GNR, ninguém conseguira acompanhar a trajetória da arma que a matara.
Vedor, com balas a cruzarem os ares, e o povo sem arredar pé, está tranquilamente em cima de um trator a amanhar a terra. Explica: «O senhor tenente deu-lhe um sopapo que ela se torceu e virou costas. Não vi totalmente a cena porque me encontrava a cerca de vinte metros, em cima de um trator em que andava lavrando. Logo a seguir ouvi tiros e vi a mulher caída».
Bagulho, o feitor, que por norma quase se afoga em prosa e descrições ultra-realistas, é sucinto: «Chegou junto da mulher que vinha na frente dando-lhe uma bofetada na cara. Do local onde estava mais não vi. Ouvi tiros e a mulher caída».
E o patrão, esse, que estava no máximo a 15 metros da vítima, pelos vistos, fica surdo: «Deu-lhe um sopapo, a mulher torceu o corpo, foi empurrada e caiu não se tornando a levantar. Dirigi-me para ela verificando que se encontrava ferida o que estranhei por não ter ouvido tiros».
Multidão acorre a casa dos pais de Catarina
O estado psicológico do tenente, que os praças validaram ser de grande aborrecimento, observado de outro ângulo mantinha-se inabalável. Por esta, Francisco não esperava. Depois de novo ataque de tosse, cala-se como se de repente se lhe esfriasse o espírito de confiança. A raiva sobrepõe-se: «Eu estava a uns dez metros dele. Vi tudo. Depois até me escondi na casa porque tive medo que me fizesse o mesmo. Esse assassino matou-a cara a cara, foi um ou dois tiros já não me lembro bem. E depois de a ter matado, o bandido ainda foi pedir a folha de trabalho para ver o nome delas e teve a lata de as multar a todas. O meu nome estava lá, também fui multado porque queria à viva-força que lhe disséssemos quem eram os autores da greve, como não sabíamos multou-nos. Foi o Dr. Nunes quem pagou depois as multas aos trabalhadores».
A notícia da morte de Catarina corre a uma velocidade vertiginosa. A reação na aldeia é explosiva, uma corrente elétrica que se espalha de Baleizão a Beja. À casa dos pais da ceifeira acorre uma multidão. Praças a cavalo tentam impor o terror. José, o filho mais novo da vítima, de cabeça ensanguentada, fora levado aos avós.
Maria Catarina, a filha mais velha, de olhar concertado com os gestos, mantém uma expressão tranquila na viagem ao passado. Quando se mete o dedo nas recordações e se remexe, elas giram, afastam-se e regressam, trazem fantasmas: «Lembro-me de chegar o meu pai, de haver muita gente lá em casa. Foi um grande alvoroço. O meu avô queria ir para a rua para protestar, mas não o deixaram, porque a GNR andava na rua». Da mãe, entre o que dela recebeu e as pedras que se ergueram em torno do mito, ficaram meia dúzia de memórias: «Lembro-me de uma vez, quando tive sarampo, ela me ter vestido umas roupas vermelhinhas. Dizia-se que curava. Lembro-me também que me levava ao barranco quando ia lavar a roupa».
António, atordoado pela vozearia, também já está com a família que lhe resta. Tinha apenas quatro anos, o passado é vago, mas teima que há lembranças, poucas, que parecem boiar na sua mente: «Lembro-me de ver pela fresta da porta muitos guardas e cavalos. Ainda levaram o meu avô preso, porque ele virou-se à porrada aos guardas. Nunca mais pôde ver uma farda».
Corpo sai pelas traseiras do hospital
No dia seguinte à morte da ceifeira, milhares de pessoas aguardam em frente ao hospital a saída do corpo para acompanharem o funeral até Baleizão, onde nascera. Mas trocam-lhes as voltas. O acontecimento ganhara vulto, merecera a atenção de jornais regionais e lisboetas que, sem escaparem à censura, relatam o crime. Com as dificuldades próprias da época para recolher e cruzar informação, as notícias saem truncadas. Nem o nome da vítima bate certo, mas a publicitação do facto já é uma afronta ao regime. O Diário de Lisboa relata: «Constituiu uma impressionante manifestação de pesar o funeral da jornaleira Maria da Graça Sabino, morta a tiro numa propriedade agrícola perto de Baleizão, durante conflitos rurais […]. O tenente Carrajola, comandante da secção da GNR de Beja, cuja pistola metralhadora causou a morte da infeliz, […] seguiu para Évora sob ordem de prisão».
Em Beja, um corrupio de gente consternada e em fúria mantém a vigília. Temiam-se tumultos e trocam-lhes as voltas. Às autoridades que sustentam o regime não falha a ginástica mental. António concentra-se na evocação da crónica familiar: «Eles fugiram com ela pela porta de trás do hospital. Meteram o corpo num jipe e abalaram para Quintos. Penso que a única pessoa que foi ao funeral foi a minha avó. Nós morávamos lá apenas porque o meu pai estava a trabalhar na aldeia, mas a família era toda de Baleizão, onde a minha mãe tinha de ficar».
Quando a multidão dá pelo logro, abre o peito às autoridades. Num relatório da PIDE de 22 de maio, fica registada a temperatura do momento: «Juntaram-se na cidade de Beja algumas centenas de pessoas de Baleizão com o pretexto de assistirem ao funeral, e junto do citado hospital, depois de terem provocado a PSP que policiava as imediações, agrediram à pedrada dois guardas, tentando ao mesmo tempo desarmá-los, o que não conseguiram, mantendo a polícia a perfeita ordem, seguindo o referido funeral para a Povoação de Quintos».
Uma manobra de diversão
A notícia de que o tenente Carrajola fora detido não passa de mais uma manobra de diversão para acalmar os ânimos. Na mesma informação confidencial que seguira da polícia secreta para o Governo, com uma ponta de orgulho, o escriba restabelece a ordem das coisas: «O senhor oficial da GNR com quem o incidente descrito ocorreu continua em Beja, de onde não saiu, pelo que a versão publicada pelos jornais, que aliás é a que corre, não é verdadeira». A resenha, despachada para Lisboa três dias depois da morte de Catarina, revelava a charada jurídica que se iniciara. A súmula dos acontecimentos era em tudo semelhante ao auto de notícia assinado pelo tenente: «Neste momento, um grupo de mulheres, à frente das quais seguia a Catarina Sabino, que conduzia nos braços uma criança de tenra idade, coloca-a no chão e dirige-se para o senhor tenente Carrajola, em ar de ameaça, de forma que este, para a conter teve de dar-lhe uma bofetada, à qual ela se furtou, e por isso este senhor oficial, ao pretender empurrá-la com a metralhadora, esta repentinamente disparou-se, sendo aquela atingida mortalmente».
A PIDE assumia a tese do acidente proclamada pelo tenente, apesar de a autópsia declarar que a morte da ceifeira resultara de três tiros, ainda antes de se conhecer a peritagem à arma do crime pedida pelo capitão da GNR que dirigia a investigação. Para os peritos, que se esforçam para cumprir o protocolo, a arma estava de boa saúde: «Como nada foi notado de anormal, procedeu-se seguidamente à montagem de todas as peças que haviam sido desmontadas e executou-se uma série de 15 tiros em rajadas de cinco tiros e disparos de tiro a tiro. Tudo funcionou normalmente, não se verificando qualquer disparo prematuro, apesar de se ter tentado provocá-lo».
A tentativa de ‘amenizar’ o crime
A verdade e a ciência nem sempre correm em vias paralelas. É a um manual, de 1948, da escola Central de Sargentos, que os especialistas, um capitão e um 2.º sargento, recorrem para salvar um dos seus. A teoria substituía o trabalho de campo. Havia, afinal, várias circunstâncias em que a arma se poderia portar mal: um movimento brusco, um empunhamento incorreto, até um botão da farda se poderia ter intrometido entre o dedo do atirador e o gatilho, e por aí fora. Conclusão, após o valente esforço: «Contudo, o conhecimento que se tem de arma deste tipo leva-nos a admitir a possibilidade de um disparo prematuro».
De nada serviriam os esforços de Carmona que, antes de se aferrar à sua solidão, ainda tenta inverter as manigâncias de um sistema de justiça que anda de braço dado com os interesses do regime. No mesmo dia em que se despedira de Catarina, com a raiva ainda a correr, envia um recado para o tribunal da comarca de Beja. Os telegramas são pagos à letra. Economiza: «Comandante Secção Guarda Beja Matou Ontem Minha Mulher. Baleizão Povoação Quatro Mil Habitantes. Aguardo Vexa Averiguação Digna Máximo Respeito».
Entretanto, no comando distrital da GNR em Beja, Camilo José Delgado, capitão, ouve as testemunhas. Francisco está no rol. Desse tempo, recorta algumas sequências privilegiadas que ajudam a acompanhar a farsa. Como se de repente se reencontrasse com a sua anatomia de jovem, reconstitui o cenário do dia em que foi interrogado: «Eu fui para lá com o feitor e o filho, mas fomos ouvidos à vez. O capitão queria que eu dissesse que tinha sido sem querer. E o Carrajola estava lá sentado a ouvir tudo o que dizíamos».
Juízes de Sta. Clara fazem acórdão caricato
A pantomima dura seis meses. O juiz da comarca de Beja decidira que não tinha competência para julgar o tenente e o processo é despachado para o 2.º Tribunal Militar territorial de Lisboa, ali ao Campo de Santa Clara, que acabaria por ilibá-lo. Os juízes, três militares, que assinam o acórdão, merecem um lugar de destaque na ópera-bufa. Recorrendo a poderes mediúnicos, fica para a história que Carrajola, após a atitude ameaçadora da vítima, lhe bateu «levemente com a mão na cara» e, como ela continuasse a avançar, lhe «bateu levemente com o cano da pistola nas costas». É grande a gentileza do réu que, «segurando a arma com as duas mãos e com grande cuidado e atenção, tendo, porém, sido despejados três tiros que atingiram a infeliz pelas costas». E assim o oficial e cavalheiro foi mandado em paz.
Em redor de Carmona instala-se um vazio pavoroso. Agora, a única preocupação do cantoneiro era o destino dos filhos, a quem quer abrir os horizontes. «Nos primeiros tempos dormia com o meu pai e irmão na mesma cama, cada um virado para cada lado, até irmos para o colégio. O meu pai não quis que ficássemos com os meus avós porque achou que ficávamos melhor na Casa Pia, onde não faltava nada. E podíamos estudar», recorda António.
Mas o homem não encontrava sossego. Sem Catarina, não sabia defender-se. Em nesgas de papel que colecionava – e que mais tarde a família compilou –, ia desabafando. A imagem da mulher persegue-o. Está sozinho em Quintos. Uma noite, sem pregar olho, pensa: «Morro aqui». Olha para o relógio: uma e trinta. Levanta-se, bebe dois golos de aguardente. O cemitério é a um pulo. Trepa o muro. No fundo, procura-se: «Chego ao pé da minha Catarina que amei em vida e idolatro na sepultura. Disse algumas palavras. Certamente se as ouvisse ficaria comovida. Estava prestando-lhe homenagem. Sentia-me tranquilo. Ali ninguém me podia fazer mal».
Filhos vão para a Casa Pia
Os filhos foram, entretanto, separados. Ficam à guarda da Casa Pia, mas os dois rapazes em Beja, onde não havia internato feminino, e Maria Catarina em Lisboa. Esporadicamente, sobretudo nas férias grandes, encontram-se em Baleizão. Como se lhe tocassem num ponto doloroso, José parte à sua procura no tempo: «Consegue-se viver sem mãe. Mas custa. Mas sempre senti a presença da minha mãe. Uma vez, apanhei tinha. Dizia-se que aquilo era pegadiço e fiquei isolado dos outros. Não sou de religiões, nem superstições, mas sempre senti a presença da minha mãe. Acordei e lembro-me de uma coisa a olhar para mim na cama. De olhos a brilhar, disse-me: ‘Sou a tua mãe, não tenhas medo’. Quase fiquei gago com o susto!».
Estavam por sua conta. Por detrás de cada interno, havia uma história. Umas piores do que outras. A vida podia ser uma selva. António, o mais velho, cuida do José como uma leoa da cria: «Uma vez um dos mais velhos deu uma tareia ao meu irmão e não o matei porque não calhou!». Na travessia pela vida fora, tornaram-se inseparáveis. António recorda esses tempos sem rancor: «Lá dentro, só havia estudos até à quarta classe. A professora preparava os melhores alunos para o exame de admissão na escola industrial. Eu fiz o exame de admissão, mas reprovei. O meu irmão chorava, sentiu mais ele do que eu. Ele era o meu pilar».
Excluídos do percurso estudantil, aos 12 anos já trabalham. José numa pedreira e o irmão numa serralharia. O mais novo traça o cenário: «Ganhava 48 escudos por semana. O meu irmão trabalhava perto, num serralheiro. Eram trabalhos duros. Só ficávamos com cinco escudos para as nossas extravagâncias, o resto ia para uma conta na Caixa Geral de Depósitos. Quando saí, tinha mil e tal escudos. Fomos para casa de uma tia no Barreiro, que era uma grande comunista. Chegou a esconder em casa um casal que estava na clandestinidade. Mas depois alugámos um quarto. Com esse dinheiro, pagou-se a renda durante algum tempo».
Fugir ‘a salto’para França
Mal completam 16 anos, António e José saem da instituição. É no Barreiro, onde o PCP está em força, que, por influência da tia, os dois arranjam trabalho numa pastelaria. No meio da classe operária, o nome de Catarina Eufémia é uma lenda: «A pastelaria era da D. Zulmira. Não precisava de ninguém para trabalhar, mas, quando soube quem éramos, arranjou logo lugar para os dois. Eu era pasteleiro e o meu mano servia às mesas».
A irmã também se junta a eles no Barreiro. A sorte tinha vindo em sua ajuda: concluíra o Curso Complementar de Aprendizagem ao Comércio na Casa Pia e conseguira emprego num escritório. Em 1967, o país, cansado e míope, não abria mão das colónias. Catarina não tem no sangue o acinte da expiação que tolhia os portugueses e em breve diria adeus a Portugal: «Já namorava o meu marido. Entretanto, ele, para não servir a tropa, fugiu para França e foi dado cá como desertor. Decido ir ter com ele e saio de cá a pulo. Estava para sair por Vieira do Minho com um casal amigo dele, mas perdi-me deles. O meu pai tinha-me passado uma autorização para sair do país. Mas eu só podia ir até Espanha. Então fui de comboio. Aí, estive no hotel dois dias até aparecer o passador que o meu namorado tinha contratado. Fiz a travessia pelos Pirinéus, a noite toda, uma luzinha aqui outra ali… não se via nada. Não tive medo nenhum e sabia falar francês. Acho que era aventureira como a minha mãe. Depois fiquei a trabalhar numa fábrica com o meu marido».
‘Dei um beijo na caveira descarnada’
Os três filhos de Catarina continuaram a sua navegação pela vida. Dispersaram-se. É a Revolução de Abril, que retira o país da teia de aranha onde asfixiava, que os volta a reunir em Baleizão. Para a família, endireitar a História e ajustar contas com o passado é a única forma de escapar ao sentimento de amputação que os perseguia. Trazer de volta a Baleizão o corpo de Catarina Eufémia, que fora sepultado em Quintos às escondidas da aldeia onde nascera, é um imperativo. Mas o PCP, que saíra finalmente da clandestinidade e precisa de se afirmar, tem igual necessidade de apropriação e adianta-se. No cemitério de Baleizão compra um talhão para trasladar os restos mortais da ceifeira – e, no local onde ocorrera o homicídio, começa a construir um monumento em sua homenagem, onde não falham a foice e o martelo.
Em maio de 1974, a aldeia vive novo acontecimento histórico. Milhares de pessoas, daquela e doutras bandas, fazem um cordão humano do cemitério de Quintos até ao cemitério de Baleizão. O viúvo de Catarina, seguido pelos filhos, encabeça a marcha até à sepultura onde a mulher fora enterrada à sorrelfa. Nos seus manuscritos, anota o momento: «Fomos a caminho do cemitério, desmanchámos a campa e tirámos os restos mortais de Catarina para um caixãozinho pequeno… Dei um beijo na caveira descarnada e senti-me consolado».
A família preenche à sua maneira a cratera criada após o homicídio de Catarina. António, que naquele dia estava ao colo da mãe e escapara por um triz, acrescenta um traço novo ao quadro: «Impressionou-me muito ver o meu pai com a caveira nas mãos. Eu tirei três dentes e mandei fazer um fio de ouro para os três irmãos».
Em Quintos, onde Catarina vivera quatro anos, a população reage como se lhe tivesse sido arrancado um pedaço – e não permite que retirem da campa a lápide original. Custódia Joaquina, vizinha e ceifeira do seu tempo, ainda por lá passa a deixar umas flores e acender uma velinha. Hoje já olha para aqueles tempos sem rancor: «A campa, depois do 25 de Abril, ficou aqui porque foi aqui que ela foi enterrada! Só levaram os ossinhos…».
Cunhal quer‘ficar na fotografia’
O pequeno caixão chega a Baleizão aos ombros da multidão. Eram tempos de mudança, de festa. A 25 de maio, Álvaro Cunhal, recém-chegado ao país depois de um longo exílio, está presente para homenagear Catarina Eufémia. Com ele, um exército de fiéis. O discurso, citado no Diário do Alentejo, ainda vem embrulhado do espírito de abnegação e imolação que se exigia a um comunista quando era preso ou na clandestinidade: «Catarina morreu como deve saber morrer um membro do PCP: à frente das massas populares»..
Entre as massas, Carmona espera que o deixem também discursar. Quer dizer umas palavras sobre a sua mulher. Mas o dia estava por conta do ‘grande guia do proletariado’ e não lhe é permitido. Uma afronta que não esquece – e que o leva a afastar-se do PCP e a aproximar-se da UDP, um jovem partido maoísta que acabara de se formar. Para as suas memórias, deixa escrito: «Depois, quem se apoderou dos restos mortais da Catarina foi o Partido Comunista Português. […] Se os meus filhos me quisessem sepultar na mesma sepultura da mãe, não podiam. Tornou-se num bem privado do partido».
Passados 70 anos, os filhos de Catarina Eufémia mantêm-se dispersos mas vivem na expectativa de notícias uns dos outros. António, depois de casar, partiu com a mulher para o Minho, sendo dono de um restaurante sempre à pinha. José, que viveu no Barreiro cerca de 40 anos, juntou-se a ele quando enviuvou. Continuam inseparáveis.
Maria Catarina é a única que reside atualmente em Baleizão. Os assuntos da política nunca lhe interessaram, mas guardou os ressentimentos do progenitor. Vive no largo que foi batizado com o nome da mãe, mas recusa-se a fazer fotografias junto à placa toponímica gravada com a foice e o martelo. A história também é feita de emoções: «O Partido Comunista é que interferiu tanto que tem lá a lápide a dizer que a minha mãe era comunista».
Naquela época, nos pequenos meios rurais, poucos eram – e eram todos. A memória também tem as suas leis. Traz-nos as imagens como quer, não como foi. Francisco, a quem a tosse não larga, ainda tem fôlego para fazer a sua última intervenção: «Antigamente era tudo comunista».
Ficará sempre um biombo de fumo entre o passado e o presente. Mas quem foi afinal Catarina Eufémia? Ninguém melhor para definir a ceifeira do que o homem que a matou: «As mulheres continuaram avançando, até que uma delas, a uns três metros de distância de mim, coloca o filho, que até aí trouxera à sua frente, e eleva-o acima da cabeça, rugindo-me raivosamente».
O Nascer do SOL agradece ao Arquivo Histórico Militar, onde consta o processo sobre a morte de Catarina Eufémia, com os procedimentos judiciais e o acórdão que absolveu o oficial da GNR João Carrajola.