É um receio comum em quem vigia a linha entre o fim e aquilo que resta, esses ecos absorventes que alguns são capazes de produzir. A morte entranha-se, sobretudo quando se torna um registo vulgar, depois de uma certa idade e de tanto ver os outros transporem esse limite. Bernard Pivot já sentia aproximar-se essa inversão dos papéis: «Ainda vou acabar por atender um telefonema da imprensa a convidar-me a comentar a notícia da minha morte». Tinha-se tornado um hábito receber essa chamada sempre que morria um escritor. A importância da sua intervenção cresce com o passar do tempo, e o seu desaparecimento vem já numa altura em que o seu perfil e as coisas que realizou parecem recortar-se num contraste fabuloso contra este tempo. Seria hoje utópico imaginar que pudesse surgir na televisão, em horário nobre, um programa literário, trazendo para a sala de estar de um país figuras como Nabokov, Yourcenar, Simenon, Solzhenitsin, Barthes ou Levi-Strauss. E é como artefactos de uma outra época que perduram as emissões de Apostrophes ou de Bouillon de Culture em plataformas como o YouTube, exigindo um esforço de arqueologia para se compreender como foi possível que esse outro registo possa ter chegado a definir um horizonte de aspirações culturais antes de este e outros meios de comunicação de massas se entregarem ao processamento de todo o lixo e dessa saturação de clichés própria de um ambiente de consumo desenfreado e esterilizador do juízo e da perspectiva contemplativa. Não vale a pena fingir que a fronteira não nos provoca um sobressalto como uma despromoção da própria existência. Em algumas décadas, o grau de exigência da literatura forçou-a a uma espécie de clandestinidade face aos meios de comunicação de massas, e seria impossível imaginar hoje que seis milhões de pessoas pudessem formar uma audiência capaz de exigir uma alternativa a esses motivos e horizontes supérfluos que infestam o espaço televisivo. Foi perante ele, perante esses milhões que Bernard Pivot reunia nesse exercício de reflexão à volta dos livros, que, no início da década de 80, Yourcenar vincava isto: «O conformismo é uma doença miserável, pois impede-nos de viver. As pessoas conformistas na verdade não vivem.» Pivot tinha até essa última decência de dar sinal da distância entre si e aqueles que entrevistava, o sinal de uma admiração, de uma lucidez, ao reconhecer que carregava, apesar de todo o sucesso e projecção dos seus esforços enquanto jornalista cultural, essa tristeza, «uma velha ferida, profunda, camuflada» por não ser verdadeiramente um escritor. Morreu na passada segunda-feira, aos 89 anos, em Neuilly-sur-Seine, Paris, sendo coroado enfim como «o rei leitor» pelo Le Monde. Por sua vez, o Libération conseguiu dizer tudo ao reconhecer que a sua morte se impõe como o «Epílogo de uma época». «Com a morte de Bernard Pivot, a era do livro enquanto acontecimento público chega ao fim. O livro como uma oportunidade de conquistar posições, criar momentos televisivos, ainda que isso significasse esbarrar ou mesmo ultrapassar linhas vermelhas.» Ele estabeleceu o valor-padrão, e tornou-se uma das figuras mais imitadas, surgindo como o líder de um pequeno pelotão para, nas noites de sexta-feira, deixar a sua audiência estarrecida ou perplexa, divertida, curiosa, para engrandecê-la sem deixar de entreter. A fórmula que logo saltou fronteiras, admitia riscos hoje intoleráveis, tratando-se de programas de entrevistas em directo, realizados num estúdio diante de um público, em tertúlias em que os livros eram abordados e discutidos, abrindo margem a cumplicidades e ao conflito, com o álcool e as luzes a incitarem um estado de embriaguez. O que os salões literários de Paris foram no século XIX, Apostrophes conseguiu capturar e irradiar esse efeito aurático dos escritores, sem ceder demasiado aos constrangimentos de um formato televisivo. Assim, os seus programas – Apostrophes entre 1975 e 1990; Bouillon de culture entre 1991 e 2001 – conseguiam mobilizar um público que tinha verdadeiras pretensões culturais, não se limitando a consumir esses ordinários detritos que, enquanto merchandising, extravasam na forma de livro o registo mais inane desses conteúdos redundantes excretados diariamente em doses industriais. Havia um grau de exigência que não se compadecia com os imperativos do mercado. Ao longo de um quarto de século, Pivot forneceu à sua audiência um modo de atenção, e fê-lo colocando-se do lado do público, exercendo o seu ofício como um «intérprete da curiosidade pública, não como um intelectual mas como um homem comum», disse ao El País o escritor, Pierre Assouline, um amigo do jornalista.
Filho dos donos de uma mercearia em Lyon, cidade onde nasceu a 5 de Maio de 1935, Pivot passou os anos da guerra na região de Beaujolais, e viria depois a estudar jornalismo em Paris. Aos 23 anos conseguiu um cobiçado lugar na equipa do Le Figaro Littéraire, suplemento do diário francês, onde esteve até 1971. «A minha chegada ao Figaro Littéraire foi um pequeno acontecimento, era a primeira vez que uma pessoa tão jovem estava a ser contratada — os outros redactores poderiam ser meus pais», referia o Le Figaro esta segunda-feira. Apesar de o seu foco ter sido a literatura, foi a desenvoltura enquanto comunicador que o levou a uma rápida ascensão da imprensa escrita para a rádio e depois para a televisão. Pelo meio, foi ainda um dos elementos fundadores da revista literária Lire. Nunca se considerou um crítico literário, vendo-se antes como um «gazeteiro» cultural, e essa humildade permitiu-lhe sempre ser rigoroso, criando limites claros para o seu ofício. Fazia perguntas curtas, e partia do princípio de que, «qualquer resposta, ainda que decepcionante, era mais importante do que a pergunta». Procurava ser um mediador informado, lendo 12 horas por dia, de forma a não perder o pé, mas recusava o papel do intelectual, preferindo fazer esse esforço de ligação entre aqueles que não estão por dentro e aqueles que procuram ter uma noção profunda dos assuntos de que se ocupam. Era, assim, uma figura ao mesmo tempo «popular e exigente», como assinalou o presidente francês Emmanuel Macron.
Depois de se jubilar da televisão, ainda foi capaz de manter um papel relevante à frente da Academia Goncourt, o mais prestigiado dos prémios literários franceses, organizando também os concursos de ditados que foram também um retumbante sucesso em França.
Contava que a pergunta que mais vezes lhe faziam quando ia ao estrangeiro era: «Porque razão não temos por cá um programa como o Apostrophes?» A sua resposta não variava: «Porque não querem.»