Conheço Aguiar-Branco há 50 anos. Sei que tem experiência, prudência e elegância para desempenhar bem o seu cargo numa fase conturbada da política portuguesa, em que a agressividade parlamentar exige um maestro que evite que o debate redunde em cacofonia. O novo presidente da Assembleia da República faz parte de uma linhagem de advogados liberais do Porto, ferrenhos defensores da separação de poderes e dos invioláveis domínios da Justiça como pilares da democracia. Não é por eles que corremos o risco de interferência do poder político no judicial. Mas há, isso sim, sobejas razões para nos questionarmos se não é o poder judicial, ou alguns dos seus agentes, quem está a violar essa fronteira e para temermos que, se não garantirmos a sua impermeabilidade, ocorra um efeito boomerang. Ou seja, que um dia voltemos a ter uma politização, partidarização ou condicionamento da Justiça. Por muito que os partidos pareçam indisponíveis para tal e que a classe política seja pouco corporativa, e às vezes autofágica, não tardará, com a acumulação de casos, a haver a tentação de controlar politicamente a Justiça. Aliás, o manifesto subscrito por 50 personalidades, que recomenda a reforma do sistema de Justiça, é sintomático desta reação em cadeia. No atual contexto, os agentes políticos devem compreender que ser escrutinado e investigado são ossos do ofício com que devem conviver. Falo por mim, que resisti às pressões da comunicação social – recordo que João Miguel Tavares escreveu que, com a minha candidatura, ‘se perdia toda a moralidade’ – e às insinuações de Rui Rio, essa mistura fina de paladino e de Frei Tomás, durante uma campanha eleitoral marcada em cada debate pelo ‘caso Selminho’. Isto demonstra que há políticos que usam como arma de arremesso aquilo de que se queixam… Fui reeleito, apesar de todos os impactos sobre a minha vida pessoal e política, e obviamente absolvido, perante o silêncio dos fariseus. Segui a minha consciência, a única que nos deve guiar. Aguiar-Branco não quererá convocar a Procuradoria-Geral da República (PGR) para falar de um caso, mesmo invocando a sua influência política. Mas o Parlamento pode ouvir a PGR sobre eventuais excessos nas detenções, a metodologia das escutas, a execução do Ministério Público (no âmbito da sua autonomia) da política criminal (que só pode ser definida pelos órgãos de soberania), a preocupante morosidade nos inquéritos, o segredo de Justiça e a relação com os media. Quanto aos casos políticos que abalaram o país, deve ser o Presidente da República a agir, enquanto garante do funcionamento das instituições democráticas. Quando aceitou a demissão do primeiro-ministro, ouviu a PGR, convocou o Conselho de Estado e dissolveu o Parlamento. As suas declarações sobre António Costa e a Europa levam-nos a concluir que está convicto de que decidiu com base num pressuposto errado. Sendo assim, não deveria convocar de novo o Conselho de Estado? Não podemos viver debaixo de uma permanente autossuspeição, ao sabor das teorias da conspiração, da crescente desconfiança, dos rumores de que tudo resulta de cabalas, de que a operação na Madeira foi uma compensação. Não gostaria que, daqui a 50 anos, o livro de História deste país de brandos mas cada vez piores costumes – que tratará Camarate como um mistério inexplicado – questionasse se o que se passou no final de 2023 em Lisboa e inícios de 2024 na Madeira decorreu de violações da lei por parte dos agentes políticos, se foram erros judiciais ou processuais ou se houve ingerência do poder judicial na esfera da política. Hoje, como há 50 anos, a verdade é revolucionária. E é essencial para a nossa convivência em liberdade.
Pela Justiça livre e independente
Não podemos viver debaixo de uma permanente autossuspeição, ao sabor das teorias da conspiração, da crescente desconfiança, dos rumores de que tudo resulta de cabalas…