Adamastor, o escorbuto e as ondas de Neptuno furibundo

‘As coisas árduas e lustrosas/ Se alcançam com trabalho e com fadiga’, escreveu Camões. A Armada de Vasco da Gama já conseguiu dobrar o temível cabo. Mas outros perigos espreitam.

E is-me, de repente, já bem avançado na leitura d’Os Lusíadas. Até aqui, os nossos marinheiros têm conseguido superar as terríveis provações que o mar e o traiçoeiro Baco lhes vão colocando no caminho. Os homens comandados por Vasco da Gama sofreram horrores, mas, como Camões põe na boca do Rei D. Manuel: «… As coisas árduas e lustrosas

Se alcançam com trabalho e com fadiga».

Estamos no Canto V. A armada portuguesa acaba de passar o Cabo das Tormentas. A descrição do Adamastor, que personifica este acidente geográfico, é um dos pontos altos da Epopeia.

«O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados e a postura

Medonha e má e a cor terrena e pálida;

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos».

Começamos por ver nele o detestável inimigo que ameaça os marinheiros lusitanos. Mas o gigante humaniza-se quando nos revela que foi o amor não correspondido pela bela ninfa Tétis que o reduziu àquela triste condição.

Ouçamos o seu lamento:

«Converte-se-me a carne em terra dura;

Em penedos os ossos se fizeram;

Estes membros que vês e esta figura,

Por estas longas águas se estenderam.

Enfim, minha grandíssima estatura

Neste remoto cabo converteram».

Como castigo determinado pelos deuses, o gigante foi convertido no «remoto cabo»; por força do seu discurso, é o nosso mal-querer que se converte rapidamente em compaixão.

A Armada do Gama conseguiu dobrar o temível Cabo, mas outros perigos espreitam.

Chegados a este ponto da viagem, as provisões já perderam toda a frescura, os alimentos tornaram-se intragáveis.

«Corruto já e danado o mantimento,

Danoso e mau ao fraco corpo humano».

O escorbuto penetra na tripulação já fragilizada como faca em manteiga quente.

«E foi que, de doença crua e feia,

A mais que eu nunca vi, desampararam

Muitos a vida, e em terra estranha e alheia

Os ossos para sempre sepultaram.

Quem haverá que, sem o ver, o creia,

Que tão disformemente ali lhe incham

As gingivas na boca, que crescia

A carne e juntamente apodrecia?»

Primeiro o Adamastor, depois o escorbuto – e finalmente, no Canto VI, a tempestade. Afinal, é sempre de navegações arriscadas que estamos a falar.

«Agora sobre as nuvens os subiam

As ondas de Neptuno furibundo;

Agora a ver parece que desciam

As íntimas entranhas do Profundo».

Ora erguendo-se acima das nuvens, ora mergulhando nas entranhas do oceano. É uma imagem poderosa. E uma metáfora não menos certeira dos altos e baixos, qual montanha-russa, da vida aventurosa de Luís Vaz de Camões.